terça-feira, 2 de novembro de 2010

UM POEMA INESQUECÍVEL

Gerana Damulakis


Um poema inesquecível, o mais belo poema da literatura inglesa do século XX, “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”, em versos livres que carregam uma angústia palpável, está no livro de T. S. Eliot (1888-1965), Prufrock e outras observações, de 1917. O poema é um monólogo, clama por imagens burguesas, às vezes marginais, ao mesmo tempo em que se mostra algo erudito ao trazer Michel Ângelo, o Princípe Hamlet etc. Assim, o chá com torradas, os hotéis baratos e a conversa sobre Buonarroti, querem mostrar um mundo onde, na verdade, o que reina é o vazio. A canção é uma canção de amor, como reza o título, só que ela traduz a angústia do amor que todavia vacila entre ousar e não ousar, haja vista a disparidade: há o que é refinado e há o que é burlesco, extravagante. O mundo é retratado de forma quase caricatural. Será que vale a pena arriscar?

A CANÇÃO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK
----------------------T. S. Eliot


----------------------------------S’i credesse che mia risposta fosse
----------------------------------A persona che mai tornasse al mondo,
----------------------------------Questa fiamma staria senza più scosse.
----------------------------------Ma però che già mai di questo fondo
----------------------------------Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
----------------------------------Sanza tema d’infamia ti rispondo.

---------------------------------
Dante Alighieri, La Divina Commedia, Inferno

Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre a mesa;
Vem comigo por certas ruas semi-desertas
Que são o refúgio de vozes murmuradas
De noites sem repouso em hotéis baratos de uma noite
E restaurantes com serradura e conchas de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável...
Oh, não perguntes “Qual será?”
Vem lá comigo fazer a tal visita.

Passeiam damas na sala para além e para aqui
E falam de Miguel Ângelo Buonarroti
A névoa amarela que esfrega as costas nas vidraças
O fumo amarelo que esfrega o focinho nas vidraças
Passou a língua dentro dos recantos da noite,
Demorou-se nos charcos que ficam na sarjeta,
Deixou cair nas costas a fuligem solta das chaminés,
Deslizou pelo terraço, de repente deu um salto,
E, ao ver serena aquela noite de Outubro,
Deu uma volta à casa, enroscou-se e dormiu.

Haverá por certo um tempo
Para o fumo amarelo que desliza pela rua
E esfrega as costas nas vidraças;
Haverá um tempo, tempo
De compor um rosto para olhares os rostos que te olharem;
Tempo de matar, tempo de criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias, de mãos
Que se erguem e te deixam cair no prato uma pergunta;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para cem indecisões
E outras tantas visões e revisões
Antes de tomar o chá e a torrada.

Passeiam damas na sala para além e para aqui
E falam de Miguel Ângelo Buonarroti.

Haverá por certo um tempo
De pensar se corro tal risco. “Corro tal risco?”
Tempo de virar costas e descer as escadas
Com esta clareira calva no meio do cabelo –
(Hão-de dizer: “Este já tem pouco cabelo!”)
Com a casaca, colarinho hirto subido até ao queixo,
Gravata distinta e discreta mas ornada de um sóbrio alfinete –
(Hão-de dizer: “Que magro está, nos braços e nas pernas!”)
Vou correr o risco
De perturbar o universo?
Num só minuto há tempo
Para decisões e revisões, a revogar noutro minuto.

Pois já as conheço todas bem, conheço todas –
Sei as noites, as tardes, as manhãs,
Às colheres de café andei medindo a minha vida;
Sei que em breve agonia se esvaem as vozes
Abafadas na música de um quarto mais além.
Como havia eu de ousar, assim?

E já conheço os olhares, conheço todos –
Olhares que te reduzem a fórmulas e a dizeres,
E quando eu for apenas fórmula, esticado em alfinete,
Quando estiver na parede, trespassado, contorcido,
Como haverei então de começar
A cuspir as pontas de cigarro dos meus dias e jeitos?

E como havia eu de ousar, assim?
E já conheço os braços, conheço todos –
Braceletes nos braços brancos e nus
(Mas com uma penugem loira à luz do candeeiro)
Será pelo perfume de um vestido
Que sou levado assim a divagar?
Braços estendidos na mesa ou envoltos num xaile.
E havia eu de ousar assim?
Por onde havia eu de começar?

E se eu disser que dou passeios por becos quando anoitece,
E vou fitando o fumo que sobe do cachimbo
De homens em mangas de camisa, à janela, solitários?...

Eu devia ter sido um ferro de duas garras
A rasgar o fundo desses mares de silêncio.

E a tarde, a noite, a dormir tão sossegada!
Afagada por dedos esguios,
A dormir... exausta... ou a fingir,
Estirada aqui no chão, à beira de nós dois.
Depois do chá, dos bolos, dos gelados, eu tinha ainda
Aquela força que provoca a crise do instante?
Mas apesar de lágrimas e jejuns, lágrimas e preces,
E apesar de ter visto a minha cabeça (um tanto calva já) ser entregue numa salva,
Não sou nenhum profeta – e isso pouco importa;
Já vi tremer o meu instante de esplendor
E vi o eterno lacaio agarrar-me a casaca, rindo sorrateiro,
E bastará dizer que tive medo.

E tinha valido a pena, depois de tudo isto,
Depois da geleia, das xícaras, do chá,
Entre porcelanas, a meio de qualquer conversa de nós dois,
Tinha valido a pena
Ter rematado o assunto com um sorriso,
Ter estreitado o universo numa bola
E fazê-la rolar, rumo a qualquer questão inevitável,
E dizer: “Sou Lázaro e venho de entre os mortos.
Voltei para vos contar tudo, vou contar-vos tudo” –
Se alguém, ajeitando a cabeça dela numa almofada,
Dissesse: “Não era nada disso que eu queria dizer
Não é isso, nada disso.”

E tinha valido a pena, depois de tudo,
Tinha mesmo valido a pena,
Depois dos pátios, dos poentes, das ruas chuviscadas,
Dos romances, das xícaras de chá, das saias arrastando pelo chão –
E depois disto e tantas coisas mais? –
Não é possível dizer mesmo o que quero dizer!
Mas se uma lanterna mágica mostrasse na tela a imagem dos nervos:
Tinha valido a pena
Se alguém, compondo a almofada ou tirando um xaile,
Dissesse, ao voltar-se para a janela:
“Não é isso, nada disso,
Não era nada disso que eu queria dizer.”

Não! Não sou o príncipe Hamlet e nem tinha que ser;
Sou um fidalgo da corte, desses que servem
Para aumentar a comitiva, abrir uma ou duas cenas,
Dar conselhos ao príncipe; instrumento dócil, é claro,
Reverente, satisfeito por ser prestável,
Político, meticuloso e avisado;
Cheio de sentenças doutas, um tanto obtuso todavia;
Às vezes, por sinal, quase ridículo –
Quase o bobo, às vezes.

Estou a ficar velho... Estou a ficar velho...
Hei-de andar com a dobra da calça revirada.

E se eu puxar atrás o risco do cabelo? Arrisco-me a trincar
um pêssego?
Hei-de vestir calça de flanela branca e passear na praia.
Já ouvi as sereias cantando, umas às outras.

Creio que para mim não vão cantar.
Tenho-as visto na direcção do mar a cavalgar as ondas
Penteando crinas brancas de ondas encrespadas
Quando o vento revolve as águas escuras e brancas.

Ficámos nas mansões do mar nós dois em abandono
Entre as ondinas com grinaldas de algas castanhas purpurinas
Até que vozes humanas nos despertam e morremos naufragados.

Tradução: João Almeida Flor para a edição da Assírio e Alvim Editora, de 1985, A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock.
Ilustração: La Pâtisserie Cloppe, de Jean Béraud (1849-1935).

domingo, 31 de outubro de 2010

ILDÁSIO TAVARES (1940-2010)



Gerana Damulakis
Hoje, 31 de outubro, Ildásio Tavares morreu. Estou sem palavras.



Ildásio Tavares fez Letras na UFBA, Mestrado na Southern Illinois University, Doutorado na UFRJ, Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa. Era poeta, ficcionista, cronista, tradutor, compositor, especialista em Ernest Hemingway e em Camões. Um de seus títulos - são tantos - é O Domador de Mulheres (Imago Editora, 2003). Tenho sempre perto de mim o volume 50 poemas escolhidos pelo autor (Edições Galo Branco, 2006). É desta reunião citada que retirei o poema abaixo.


RESTOS
------Ildásio Tavares
Há um resto de noite pela rua
Que se dissolve em bruma e madrugada.

Há um resto de tédio inevitável
Que se evola na tênue antemanhã.

Há um resto de sonho em cada passo
Que antes de ser se foi, já não existe.

Há um resto de ontem nas calçadas
Que foi dia de festa e fantasia.

Há um resto de mim em toda parte
Que nunca pude ser inteiramente.

sábado, 30 de outubro de 2010

POR QUE?



Porque os outros se mascaram mas tu não
-----------------------------Sophia de Mello Breyner Andresen

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.


Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.


Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Ilustração: Life's Questions, de Paul Gauguin.

ESPERANDO NO OLIMPO


Agora é um jardim
de rosa e jasmim.
Outrora foi a pedra
sem valor a guerra medra.
Outrora foi a tramóia,
a conquista, a vitória em Tróia.
O vento é o mesmo grego
passa como apagador
em quadro-negro.
Mas se ele dobrar a esquina
e voltar com o ontem,
quem sabe traga os deuses
e eles me contem.


Do livro O Guardador de Mitos (Damulakis, G: Salvador, 1993).
Ilustração: Zephyrus, Deus do Vento Oeste, e Hyacinthque

UM LEMBRETE



Felicidade é a única coisa que podemos dar sem possuir.
Voltaire


Ilustração: Nenúfares, Claude Monet.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

FLORBELA ESPANCA: TANTAS!



Gerana Damulakis

O poeta geralmente sofre da síndrome de ser vário. Walt Whitman vociferou: "Sou vasto. Contenho multidões". Fernando Pessoa inventou os heterônimos para multiplicar-se. E Mário de Sá-Carneiro chegou a dizer: "Morro à míngua, de excesso" e, sendo tantos "já não me sou". Enquanto o nosso Mário de Andrade proclamou ser trezentos, trezentos e cinqüenta, mais precisamente. Há qualquer coisa de Iago (em Otelo, de Shakespeare): "Não sou o que sou". Florbela Espanca completa: "E neste sonho eu já nem sei quem sou...".

A poeta portuguesa não escapou a essa tendência de sentir sua personalidade multifacetada. Fez-se princesa, castelã, sóror e, cada uma - como diz José Régio em estudo crítico - "morta, ressurgirá em todas as mulheres beijadas pelo homem que a amou". Como nos contos de fada, Florbela traz a concepção de viver encantada. Por tal, Jorge de Sena atenta que a poeta se transforma em seres de outros reinos, e crê que só terá esse encanto quebrado com a vinda da morte. A poesia de Florbela Espanca, como um diário, registra os estados de espírito, os seus vários: da ansiedade à depressão, do delírio da paixão à exaltação ilimitada. Daí ser terna ou voluptuosa, daí doar-se e se sacrificar ou apiedar-se com imensa comiseração de si mesma: "Tantas almas a rir dentro da minha!".

A poeta não alcança a saciação: "Sede de beijos, amargor de fel,/ Estonteante fome, áspera e cruel,/ Que nada existe que mitigue e a farte!". Sem preconceitos, essa angústia por tamanha vontade de amar está liberta de amarras, justamente para mostrar os conflitos da alma feminina e sua volubilidade: "Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: Aqui... além.../ Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente.../ Amar! Amar! E não amar ninguém!".
Tantas mulheres em uma poeta.

Ilustração: Rafal Olbinski.

VI UMA ARANHA SILENCIOSA E PACIENTE


Gerana Damulakis

Walt Whitman (1819-1892) sempre me lembra Ezra Pound - amanhã direi a razão, muitos sabem sobre a associação entre os dois poetas -, porque hoje quero colocar um poema que é uma grande metáfora. Whitman nos mostra um outro modo de pensar a dominação, a conquista, a guerra. Resta sentir, verso a verso.


VI UMA ARANHA SILENCIOSA E PACIENTE
----------------Walt Whitman


Vi uma aranha silenciosa e paciente
Isolada num pequeno promontório
Que, para explorar os amplos e desertos arredores,
Emitia filamentos e filamentos e filamentos de seu próprio
------------corpo,
Desenrolando-os sempre, sempre velozmente.
Também tu, ó minha alma, aí onde estás, esperas
Cercada, desgarrada, em imensuráveis oceanos de espaço,
Incessantemente divagando, especulando, procurando
-------------esferas para a conexão,
Até que a ponte de que precisas se forme, que a âncora
-------------maleável se encrave,
Que o fio da teia que lances a algo se entrelace, Ó minha
-------------alma.


Tradução de Jorge Wanderley.

UM PACTO


Gerana Damulakis

Quando fiz a postagem com o poema de Walt Whitman (1819-1892), "Vi uma aranha silenciosa e paciente", prometi que faria outra postagem para trazer um poema de Ezra Pound (1885-1972). Pound, que teceu diatribes e, depois, resolveu aceitar melhor a poesia de Whitman, acabou transformando em poema, por conta disso, todo um certo modo de ler Whitman. Estava feito o pacto.

UM PACTO

----------------Ezra Pound


Eu faço um pacto com você, Walt Whitman –
Eu lhe detestei o suficiente.
Eu venho a você como um menino crescido
Que teve um pai cabeçudo;
Eu sou velho o suficiente agora para fazer amigos.
Foi você quem cortou a madeira nova,
Agora já é tempo de esculpi-la.
Nós temos a mesma seiva e a mesma raiz –
Que haja comércio, pois, entre nós.


Ilustração: Ezra Pound, painting by Wyndham Lewis, 1938-39. The Granger Colletion, New York.

A ARTE


A ARTE
----------------Gerana Damulakis


Se eu pudesse pintar
minha grande ânsia,
por certo seria
uma tela vermelha,
onde alguns
pontos negros
dariam o tom
do meu próprio
deserto.



Foto da net, sem créditos.

A PALAVRA

A PALAVRA

----------------Gerana Damulakis


Por que não a encontro?

Apalpá-la como se dura,

como quem alisa a rocha,

surpresa, por imaginá-la pura;

isso é perder-se de propósito

na floresta?



Sábia, esperando

ser colhida e viva, ela,

no monte sólido de cinzas

(donde a ave não renascerá),

parece flor, contemplativa.



Ilustração: Vendedora de flores, de Diego Rivera (1886-1957).

POEMINHA



ARRANJOS

------Gerana Damulakis


Do tempo presente

em todo canto,

esgarço o que sou

e o que não;

solitária é a noite

sem estrelas,

tão na escuridão

profunda

do abismo,

que é assim

pintada:

o absoluto, o nada;

sempre pinto

o que escravizo

dentro de mim.

Agrade, ou não.



Ilustração: Rafal Olbinski

A VIDA É SONHO


Gerana Damulakis

Pode apostar: se esses poucos versos ficarem na sua memória, em alguns momentos durante o dia, talvez durante a noite, você terá vontade de dizê-los em voz alta.

Que é a vida? Um frenesí.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonho são.

Trecho do monólogo do personagem Segismundo, na peça A vida é sonho, de Calderón de La Barca, tradução da poeta Renata Pallottini.


Ilustração: Rafal Olbinski.

QUESTÃO DE GOSTO



Metade do mundo não consegue compreender os prazeres da outra metade.
Jane Austen

Ilustração: Retrato de Jane. Imagem da Wikipedia.

A COISA MAIS INÚTIL DO MUNDO



A mais inútil coisa deste mundo é o arrependimento, em geral quem se diz arrependido quer apenas conquistar perdão e esquecimento, no fundo, cada um de nós continua a prezar as suas culpas.
José Saramago in O ano da morte de Ricardo Reis



Ilustração: Maurits Cornelis Escher, Auto-retrato.

"A VIDA SE ME É"


Gerana Damulakis

Digo e repito estas palavras escritas por Clarice Lispector. Elas moram em mim.

(...) como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.
- - - - - - - em A Paixão segundo G.H.

Ilustração: Números e constelações em amor com uma mulher, de Miró.

O QUE É UM LIVRO?



Talvez possa fazer um breve resumo da história dos livros. Até onde lembro, os gregos não faziam grande uso deles. A maioria dos grandes mestres da humanidade não foram escritores, mas oradores. Pensem em Pitágoras, Cristo, Sócrates, Buda e assim por diante.
Lembro que Bernard Shaw disse que Platão foi o dramaturgo que inventou Sócrates, tal como os quatro evangelistas inventaram Jesus.

Num dos diálogos de Platão, ele fala sobre os livros de modo um tanto depreciativo: "O que é um livro? Um livro, como uma pintura, parece um ser vivo; no entanto, se lhe perguntamos algo, não responde. Vemos então que está morto". Para fazer do livro um ser vivo, ele inventou o diálogo platônico, que se antecipa às dúvidas e perguntas do leitor.
----------------------------Jorge Luis Borges in Esse Ofício do Verso

Ilustração: óleo sobre tela do argentino Gabriel Caprav.

UM DIA E UM POEMA


Gerana Damulakis

Meu primeiro choque com a literatura foi com os versos de Manuel Bandeira. Sim, foi um choque. Habituada aos livros porque a biblioteca da minha casa era enorme e livros eram objeto de conversas cotidianas, eu já andava com fumaças de leitora desde a tenra idade de 7 anos, mas aquela coisa que me deixou estupefata e cuja sensação ainda guardo comigo, esta foi causada pelos versos de Bandeira. Queria muito saber qual era o poema. Lembro da sala de aula, lembro da carteira escolar, lembro do livro de gramática da língua portuguesa, lembro que estava folheando e parei naquele poema e tomei um choque e entendi. Cada vez que leio a poesia de Bandeira (e leio sempre, pois que me faz falta se levo algum tempo longe dos seus livros), penso se estou lendo justamente aquele poema. Nunca saberei qual foi, já que são tantos os versos, as estrofes, os poemas de Manuel Bandeira que amo.
Minha memória está repleta de versos próprios para cada momento. Agora, sei que nunca terei a certeza de qual poema me fez mergulhar sem volta para o mundo da poesia. O que me resta? Como escreveu Bandeira:
"A única coisa a fazer é tocar um tango argentino".

ISMÁLIA

Gerana Damulakis

No livro de Mônica Menezes, Estranhamentos, há um poema interessantíssimo intitulado "Como Ismália", quando a poeta parte da ideia contida no poema "Ismália", de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), para construir a sua personagem poética tal como aquela famosa, que enlouqueceu...

ISMÁLIA
-----------Alphonsus de Guimaraens

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...


Ilustração: Lua, de Tarsila do Amaral.

AS SEM-RAZÕES DA PAIXÃO



Gerana Damulakis

Nem me pergunte sobre ela, sobre ele, sobre ambos. Não sei de nada. Para explicar as razões de uma paixão que não se realiza são precisos conhecimento e muito mais arte que qualquer psicologia possa achar factível nas palavras. No poema “As Sem-Razões do Amor”, Carlos Drummond de Andrade dá um show de entendimento e a última estrofe coroa o poema, coroa o sentimento, de forma única e, para dizer melhor, de forma completa. Trata, porém, do amor. Paixão é outra coisa.
Aqui, no entanto, não há palavras, versos, estrofes. Aqui há a paixão. Certo é que por vezes arrefece, depois volta. Nunca se tocaram, nem me pergunte qual a razão, mais uma vez garanto não saber. Um dia, faz anos, ele disse que teve uma paixão enrustida por uma amiga e em oportunidade surgida, não criada, calhou de ficarem a sós. Não trocaram uma palavra sobre sentimento ou sobre tesão, apenas se tocaram. Deste toque foram direto para um amasso total. Grudaram. Tinham represado muito desejo. Bastou tocar e explodiu. Excitante, claro que é excitante.
Pensando direitinho, acho que ele contou a historinha já sabendo que ela ficaria excitada, tentada a fazer igual, e a guardaria para sempre na memória. Não deu outra. Ela guardou na memória. O que intriga é a razão da paixão no ar entre os dois. Da parte dela, acho que vem da admiração, da maneira que ela imagina que ele sente as coisas da alma. Da parte dele, não vejo qual razão poderia ser; talvez física, talvez a expansividade dela seja atraente. Quem pode atestar as sem-razões da paixão?
Os anos foram passando e nada fora acrescentado ao suposto romance. Estava ali, entretanto. Estava ali o desejo. Ele ia envelhecendo, ela também obviamente. Mas ele tem duas décadas na frente dela e seu envelhecimento é mais visível nesta etapa da vida. Os pés-de- galinha ao redor dos olhos dele estão tão profundos. O olhar, todavia belo. No total, porém, ele não emanava atração, não tinha qualquer parte ou detalhe sensual. E como despertava essa coisa invisível e poderosa? Ela fica toda contente quando sente isso. E nem pensa em explicações. Quem pensa sou eu, quem matuta razões sou eu.
Um dia tudo retorna, a tensão no ar, ele sem as rugas no rosto, só a poesia na alma. Ela, querendo flutuar nas nuvens, nas nuvens – lugar onde apenas a paixão é capaz de nos colocar. Ela entra no escritório dele, fala coisas inteligentes, tenta impressioná-lo, tenta reter aquele olhar de admiração que voltou e, pronto, ela está totalmente enamorada outra vez. Ele pensa bastante no que não houve. Não sei se pensa no que pode haver. Será? Ele está velho e ela está velha. Continuamos sem entender as razões da paixão. Ano entra, ano se vai. E a vida está passando. Mas nós, seguramente, nos apaixonamos.


Ilustração: O beijo, de Henri de Toulouse-Lautrec.

O NÚMERO SETE



Gerana Damulakis

Este romance breve de Almeida Faria é um deleite, saiu pela Rocco em 1993. O nosso Lêdo Ivo diz nas "orelhas": "Toda aventura humana é a promessa de um naufrágio". Definindo extraordinariamente a aventura de O conquistador, o poeta Lêdo Ivo escreveu um texto tão admirável quanto o romance. Acrescento que a aventura aqui é sinônimo também de uma diluição do personagem; aliás isto foi apontado. O que, de resto, resulta no mesmo. Vale embarcar com Almeida Faria: ressalto que "a sabedoria das superstições" dão um toque extra; o número sete, por exemplo, é um número muito importante.
Leitura de primeira.

(...) cuja soma dá o número sete, sinal da felicidade e dos destinos raros. Não em vão se invocam os sete dias da criação, os sete anos que Jacob serviu Raquel, os sete pecados mortais, as sete portas de Tebas, os sete muros que cercam a Cidade Celeste, as sete obras de misericórdia,, os sete andares do céu, os sete dons do Espírito, as sete maravilhas dessa terra, os sete planetas e os sete metais que se lhe referem, as sete estrelas do grupo das Plêiades, os sete braços dos sete candelabros empunhados pelos sete anjos que rodeiam o trono divino e que soarão as sete trombetas no Dia do Juízo.

O ANJO LÍRICO DOS PAMPAS


A morte é a libertação total:
a morte é quando a gente pode, afinal,
estar deitado de sapatos.
Mario Quintana

Gerana Damulakis

Foi Augusto Meyer quem disse que “a verdadeira história de um escritor principia na hora da morte”. Desde que Mario Quintana morreu aparecem mais e mais quintanólogos que chegam, a exemplo do que fizeram Meyer e Fausto Cunha, para mostrar o valor do lirismo do anjo dos pampas.

Ele estreou em livro com 37 anos, portanto, como se diz, foi uma estréia tardia. Não faltava editor. Érico Veríssimo, então secretário da Editora Globo, cobrava o livro com insistência. Mas é apenas a publicação que pode ser chamada de tardia porque a obra já estava pronta. O próprio Mario conta que os críticos dividem seus livros em três fases: a simbolista (do primeiro livro, A Rua dos Cataventos, até Sapato Florido); a realista (até O Aprendiz de Feiticeiro); a surrealista. No entanto, não houve essa evolução. Em todos os livros há poemas da época em que A Rua dos Cataventos foi publicado.

A poesia de Quintana traz sempre suas características principais: o humanismo do seu conteúdo e a simplicidade (enganosa simplicidade) de sua forma. É preciso não ser apressado para não concluir erradamente rotulando Quintana de “poeta fácil”; na verdade, essa facilidade imediata é uma ilusão, uma aparência, porque não há soluções fáceis, ele sabe ser simples recorrendo, muitas vezes, à linguagem popular através de um trabalho artesanal com as sutilezas e recursos poéticos. Mario dizia que jamais esperava que o santo da inspiração baixasse, antes puxava-o pelo pé, e isso dá trabalho: trabalho poético.

Introduzido na vida literária por Cecília Meireles quando, em 1927, enviou poemas que a poeta publicou no suplemento literário do Diário de Notícias, Mario Quintana teve aceitação imediata. Em 1966, Manuel Bandeira, em sessão da Academia Brasileira de Letras, fez uma saudação a Quintana, com um poema que se incorporou definitivamente à biografia do poeta do Rio Grande do Sul. As duas primeiras estrofes já evidenciam a admiração de Bandeira:

Meu Quintana, os teus cantares
não são, Quintana, cantares:
são, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

O título de Príncipe dos Poetas Brasileiros, em 1989, foi pouco para Quintana. Poeta presente na maioria das antologias nacionais e estrangeiras, também gravou vários discos de poemas, arrebatou muitos prêmios literários, foi muito louvado. Carlos Drumond de Andrade dizia que a lírica de Quintana “é uma tradução para o simples, de muitos mistérios”.

Mario Quintana - o Mario é assim mesmo: sem acento - nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 30 de julho de 1906. Mario morreu em Porto Alegre, aos 87 anos. Ele disse: “Não gosto que me adjetivem, eu sou um substantivo”. Portanto, vamos ler Mario, o Mario Quintana.

A escolha vai para o soneto "Da vez primeira em que me assassinaram", cuja estrofe inicial traz os versos antológicos: "Da vez primeira em que me assassinaram/ Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.../ Depois, de cada vez que me mataram/ Foram levando qualquer coisa minha..."

É o entendimento do que é comum a todos que está presente no conteúdo lírico verdadeiro, daí a perenidade do poeta, deste poeta imortalizado pelos leitores.

COMPARAÇÃO

Gerana Damulakis

Adoro observar comportamentos, ler histórias, criar histórias (criar histórias que ficam no meu imaginário, elas não chegam ao papel - para tanto, há os escritores) e vou dando mais e mais razão a Oscar Wilde com sua máxima:

A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida.


Ilustração: Salvador Dalí.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

MARCUS VINÍCIUS: O ALBATROZ DE BAUDELAIRE

Gerana Damulakis

Admiro não apenas o escritor (poeta e contista) Marcos Vinícius Rodrigues, admiro a pessoa. Amanhã é dia de festa: o contista Marcus Vinícius Rodrigues lançará Cada Dia Sobre a Terra (EPP Publicações e Publicidade, 2010), onde cada conto tem como título um dia da semana; sete contos, portanto.

Em uma das "orelhas", Marielson Carvalho atenta: "Tudo nessas histórias nos denuncia como habitantes de Salvador - nós conhecemos seus lugares, mas também nos faz desconhecê-la, porque seus personagens nos dão outra imagem da cidade a partir de suas aventuras e desventuras. Isso possibilita reler nossas próprias experiências citadinas menos como indivíduos resultantes de um censo e mais pelo senso de que nada somos se não nos sentirmos o que quisermos ser".

Local: Solar Cunha Guedes

Hora: 19 h

Data: 26/ 10/ 2010 (terça-feira)

sábado, 23 de outubro de 2010

"DESPRETENSIOSO FILOSOFAR"

Gerana Damulakis

O poema "Momento num café", de Manuel Bandeira, traz, segundo Emanuel de Moraes (em Manuel Bandeira - Análise e interpretação literária), o "despretensioso filosofar" do poeta, indicando sua crença de que, com a libertação da alma e tudo que lhe pertence - as dores, as angústias e as frustações -, a matéria, enfim, estaria livre.
Vale notar que Bandeira, neste poema, fala de uma morte que não é a dele ( coisa rara no poeta que escreveu: - Eu faço versos como quem morre, em "Desencanto").

MOMENTO NUM CAFÉ
------------------Manuel Bandeira

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.


Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

---------------------------------------iin Estrela da manhã

Ilustração:O grande bar, de Alberto Sughi (1928- ), da série temática Noturnos, 2000.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

GLÁUCIA LEMOS NA ALB



Dia 21 de outubro, quinta-feira, na Academia de Letras da Bahia , toma posse na cadeira 14, a escritora Gláucia Lemos.

Romancista, contista, poeta, Gláucia tem 34 títulos publicados, muitos deles premiados. Também autora de literatura infantil, seu mais recente título foi de poesia, e o mais recente romance, Bichos de Conchas, teve grande repercussão.

Gláucia Lemos será recebida pelo acadêmico Waldir Freitas Oliveira, às 20 horas, em noite de festa.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

OS POETAS FÁUSTICOS


Os tempos fáusticos na lírica do lugar, de Dalila Machado, cujo lançamento está marcado para o dia 20 de outubro, quarta-feira, na Biblioteca Pública do Estado, a partir das 19 horas, cria uma ponte entre três poetas baianos. Nas palavras de Dalila: " A ponte entre Luiz José Junqueira Freire, Pedro Kilkerry e Alberto Luiz Baraúna, poetas fáusticos, já existia, sempre existiu, aliás, fui lá e descobri, voltei e escrevi e agora quero dar a ler o achado, o encontrado, a riqueza do legado poético que herdamos e que temos o direito de tomar posse".

As expressões "poetas fáusticos", "tempos fáusticos", foram criadas por Dalila Machado, bem como a hipótese teórica de que existe uma vertente demoníaca na literatura ocidental, que a literatura brasileira acompanha muito bem.

Dalila explica seu interesse: "Desde o meu mestrado, defendido em 1989, na UFBA, em teoria da literatura, trabalho com essa hipótese, minha dissertação foi sobre a questão do pacto na literatura, chama-se "O pacto de Fausto e a modernidade", onde mostro a evolução desse tema, desde o Fausto de Goethe até Grande sertão: veredas, do Rosa, passando por outros dois momentos, o dos poetas malditos franceses e o do Doutor Fausto, de Mann".

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

UM TEMA, DOIS GÊNEROS


Gerana Damulakis

Contista de primeira, o norte-americano Raymond Carver (1938-1988) fez um poema para um conto seu. O conto é “Me telefone se precisar”, encontrado no volume 68 Contos de Raymond Carver (Companhia das Letras, 2010), com tradução de Rubens Figueredo. A revista serrote (nº 2, julho de 2009), uma publicação do Instituto Moreira Salles, apresentou o conto seguido do poema, “deixando claro como Carver atualizava o gênero da poesia narrativa para a sensibilidade contemporânea”. O poema, com o mesmo tema e o mesmo episódio do conto, demonstra a capacidade de Raymond Carver nos dois gêneros. A tradução do poema é de Rodrigo Lacerda.

TARDE DA NOITE COM NÉVOA E CAVALOS
----------------------Raymond Carver

Estavam na sala. Dizendo
adeus. A perda ressoando nos ouvidos.
Tinham vivido muita coisa juntos, porém agora
não podiam dar nem mais um passo. Além disso,
ele tinha outra pessoa. Lágrimas caíam
quando um cavalo pisou fora da névoa
no jardim da frente. Depois mais um, e
mais um. Ela saiu da casa e disse:
“De onde vocês vieram, cavalinhos?”.
E avançou por entre eles, chorando,
tocando seus dorsos. Os cavalos começaram
a pastar no jardim da frente.
Ele fez duas ligações: uma foi direto
para a polícia: “Os cavalos de alguém estão soltos”.
Mas teve a outra chamada, também.
Então se juntou à esposa na frente,
no jardim, onde os dois falaram e murmuraram
com os cavalos. (O que estava
acontecendo, acontecia em outro tempo.)
Os cavalos podaram a grama do jardim
aquela noite. Uma luz vermelha de emergência
brilhou quando um sedã veio rastejando pela névoa.
Vozes atravessaram a neblina.
Ao final daquela noite comprida,
quando finalmente puseram os braços em volta
um do outro, seu abraço estava cheio de
paixão e lembrança. Um evocava
a juventude do outro. Alguma coisa chegara ao fim,
outra vinha entrando com força para tomar o lugar.
Chegou a hora da despedida.
“Adeus, vá em frente”, ela disse.
E o distanciamento.
Muito depois,
o homem lembrava de um telefonema desastroso.
Um que ficara ecoando, ecoando,
feito maldição. No final das contas
foi o que sobrou. O resto da sua vida.
Maldição.

Ilustração: A Torre dos Cavalos Azuis, de Franz Marc (1880-1916).

domingo, 17 de outubro de 2010

AS FLORES DO OCASO




Gerana Damulakis

Bernardo Linhares faz o que deseja com as palavras, com os versos e com as estrofes, com seus poemas: se resolve escolher o soneto porque o conteúdo condiz com a forma fixa, então, será um soneto perfeito — sempre penso que Sosígenes Costa adoraria os sonetos de Bernardo; se quer sutilmente usar o humor e a ironia, recorre a recursos finos, para o bom entendedor; se, mais uma vez, resolve encantar totalmente o leitor, recorre ao lirismo mais envolvente.

Em quatro versos, o poema “Menina dos olhos” cria uma imagem tão rica e bela, que fiquei tentada a colocar aqui. Depois, pensei em “Sonho de valsa”, que já li várias vezes, pela criação especial. Mas, há ainda um dos perfeitos sonetos, há o "Pássaro dourado", para Hélio Pólvora etc, só que acabei escolhendo o poema que me toca mais de perto, porque antes de tudo o sentimento. De As Flores do Ocaso (Via Litterarum, 2010):

PRECE

-------Bernardo Linhares

Escutei o silêncio meu amor
da sua oração, celebrando a vida
num altar de espelhos.
Senti na sua boca
a ressurreição da carne
comungada num beijo.
Em devota posição, seu amor,
meu amor, me provaste de joelhos.

Ilustração: Cutting Origami, de Edmund Charles Tarbell (1862-1938).

SILÊNCIOS




Gerana Damulakis

Silêncios (Via Litterarum, 2010), de Gustavo Felicíssimo, é o belo volume que traz as formas poéticas: haikai, senryu, tanka, haibun, devidamente explicadas no começo de cada capítulo. Mas, há também, encerrando o volume, o ensaio “Flores de Cerejeira – Aspectos do Haikai no Brasil”, que adianta um pouco o futuro livro Dendê no Haikai, sobre o haikai na Bahia.

Particularmente, encantou-me o haibun de Gustavo para sua filhinha Flora. O haibun, como Felicíssimo explica, “contém um texto em prosa, seguido por um ou mais haikai. Escreve-se a prosa de forma simples e direta, compacta. O objetivo do haikai que acompanha a prosa é dar uma nova dimensão, provocar uma mudança de cena, tal como as duas partes de uma tanka. Um haibun também inclui um título e deve ser escrito no tempo presente”.

De Gustavo Felicíssimo:

HAIBUN PARA FLORA

A flor desprendida do galho é uma tentativa de voo, e cada voo é sempre maior que a sua distância. Há no ar, levado pelo vento, um jardim de flores múltiplas aprendendo a voar.

borboletas são flores
que afinal foram voar —
voa, minha flor!

-----------------------------------------------uma flor pousou
------------------------------------na minha vida de poeta —
-----------------------------------------------eu sorri para ela.


Ilustração: Hibiscos e pardal, de Katsushika Hokusai (1760-1849).

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

"O LEITOR TORNOU-SE O LIVRO"


Gerana Damulakis

Um poema para o leitor. De Wallace Stevens (1879-1955). Creio que outras palavras não sejam necessárias.

A CASA ESTAVA QUIETA E O MUNDO ESTAVA CALMO

--------------------------Wallace Stevens

A casa estava quieta e o mundo estava calmo.
O leitor tornou-se o livro; e a noite de estio

era como o ser consciente do livro.
A casa estava quieta e o mundo estava calmo.

As palavras eram faladas qual se não houvesse livro;
mas o leitor sobre a página se curvava,

queria curvar-se, queria muito ser
o sábio para quem seu livro é verdadeiro

e a noite de estio é como a perfeição do pensamento.
A casa estava quieta e o mundo estava calmo.

A paz era parte do sentido e do espírito:
o acesso da perfeição à página.

E o mundo estava calmo. A verdade em tal mundo,
onde não há outro sentido, ela própria,

é calma, ela própria é noite e estio, ela própria
é o leitor curvado até tarde e lendo ali.

Tradução de Abgar Renault in Poesia: tradução e versão (Record, 1994).

Ilustração: Mulher lendo, de Alexander Deineka (1899-1969).

domingo, 10 de outubro de 2010

COISAS DO DIREITO


Gerana Damulakis

O que se segue foi contado pelo poeta Sidney Wanderley por e-mail, mas é oportuno, ainda que fora do contexto da nossa conversa virtual. Gostei tanto que pedi sua autorização para reproduzir aqui.

Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um
barulho estranho vindo do quintal. Indo até lá, constatou ha-
ver um ladrão tentando levar seus patos de estimação. Apro-
ximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao
tentar pular o muro com suas amadas aves, disse-lhe:

− Ó bucéfalo anácroto! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos
emplumados bípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de pro-
fanares o recôndito de minha residência, levando meus ovíparos
à socapa e à sorrelfa. Se fazes isso por necessidade, transijo;
mas se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cida-
dão digno e altaneiro, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem
no alto de tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei
à quinquagésima potência do que o vulgo denomina a partícula in-
significante do átomo!!!

E o ladrão, sem pestanejar, respondeu ao mestre baiano:
− Doutor, não entendi: eu deixo ou levo os patos?

Conto essa história, inutilmente, para ver se consigo reduzir um
pouquinho a pedanteria e a linguagem empolada dos "operado-
res do Direito". Como disse, inutilmente.

SIDNEY WANDERLEY

sábado, 9 de outubro de 2010

CIRANDAS


Hoje seria bom dançar, seria bom lembrar uma ciranda. Hoje, um soneto de Aramis Ribeiro Costa, do livro Espelho Partido.


CIRANDAS

-------------------Aramis Ribeiro Costa

Aquele anel que tu me deste e que era
De vidro se quebrou. Aquele amor
Que tu me tinhas (tinhas? Eu quisera!)
Era pouco, tão pouco, que acabou.

Ciranda, cirandinha em primavera
Parece coisa boba, sem valor
Mas a ciranda (ah!, controlar, quem dera!)
Foi rodando, e meus sonhos me levou...

Hoje inverno cirandas de uma espera
Na amargura de tempos sem calor
(Ah, cirandas, pará-las quem pudera

Salvando o que de sonhos me restou!)
Cirandas, cirandinhas a rodar
A volta, e volta e meia vamos dar...


Ilustração: A dança, de Henri Matisse (1869-1954).

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA 2010: MARIO VARGAS LLOSA

Gerana Damulakis

E o Nobel de Literatura 2010 é de Mario Vargas Llosa: merecidíssimo! Grandes romances, grandes novelas e contos, e um ensaísta de uma lucidez ímpar.
Meus romances preferidos: Tia Julia e o escrevinhador e Travessuras da menina má.
Minha novela: Quem matou Palomino Molero? (eu considero novela, apesar de ser catalogado como romance).
Volume de contos: Os chefes, os filhotes (lido recentemente; na parte intitulada Os chefes há contos, mas Os filhotes é uma novela).
Grandes ensaios nos livros: Contra vento e maré e A verdade das mentiras (este último, ainda que não goste de releituras, leio e releio, quem sabe aprendo um pouquinho a registrar sensações de leitura com a maestria de Vargas Llosa).
Total que fiquei muito alegre com o prêmio, tanto porque admiro o escritor, quanto por ser um nome do nosso continente, a América do Sul.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

MAÇÃ


Gerana Damulakis

Manuel Bandeira (1886-1968) foi o poeta que me despertou para a apreciação da poesia. Li e fiquei tomada, assim como quem descobre o que faltava e diz É isso, é isso que me encanta. Abaixo, segue um poema pleno de ironia, sarcasmo e humor, recursos poéticos que estão em sua poesia com total consciência de como e do quanto podem ser usados. Completo Bandeira, um poeta completo.


MAÇÃ
-------------Manuel Bandeira

Por um lado te vejo como um seio murcho
pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão
-----------------------------------------------------[placentário
És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.

in Lira dos Cinquent'Anos

Ilustração: Natureza morta com maçãs, xícara e copo, de Paul Cezanne (1839-1906).

sábado, 2 de outubro de 2010

PORQUE É OUTUBRO, PAI




Ó PAI
GD
GD------------------------Por que me abandonaste?
----------------------------------Cristo


Qualquer dia, qualquer mês
e estou só.
Só as estrias de luz mostram o ar
carregando suas massas de partículas
redondas, tantas quantas são
as pessoas da multidão.
Lá fora é onde deve haver alguém.
Por que tarda?
Estou em plena tarde
sem perder o relógio de vista.
Preciso dizer-te isto, meu Pai,
que já vivo a minha tarde
e tenho medo.

Ilustração: Detalhe da Capela Sistina, de Michelangelo.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

EM ANÁLISE: LE CLÉZIO


Para os admiradores da literatura do Nobel de 2008, Jean-Marie Le Clézio: amanhã, 2 de outubro, na Biblioteca Reitor Macedo Costa, Campus de Ondina da Universidade Federal da Bahia.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

SENSAÇÃO DE LEITURA

Gerana Damulakis

Acabei de ler o volume de contos do norte-americano Charles D'Ambrosio, O museu do peixe morto (Grua, 2010), e fiquei fascinada com as narrativas, com todas elas. A atmosfera que o escritor cria nas suas histórias impregna o leitor, a ponto de ser difícil separar a dita sensação do mundo real. Mas, não se pense que são contos à la Tchekhov (pouco enredo, pouca peripécia, muito conflito existencial), pois que a atmosfera vem de outra forma - e isso é o que surpreende: há um outro modo de envolver o leitor em uma sensação - talvez através do personagem e, exclusivamente, através do personagem, estando, tal personagem, a vivenciar uma peripécia; portanto, com muito enredo. Sinto que ainda preciso pensar melhor sobre o assunto.

Separei um trecho que tem afinidade comigo, sem, no entanto, ser muito significativo do que coloquei acima.

Gosto de ler, de ficar sentado quieto na mesma cadeira, com o abajur num certo ângulo, sozinho, e de vez em quando, se tiver sorte, encontro uma bela frase ou sentimento, levanto os olhos do meu livro, sinto a harmonia e a justeza daquela ideia, e sei que já está tudo lá. Isso para mim é a vida, esses momentos de descoberta solitária. Não me contentaria com menos, mas também não espero muito mais que isso.
Do conto"Bênção", de Charles D'Ambrosio

Ilustração: Uma leitura silenciosa, de Kay Blacklock (1872-1924).

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

QUINTA-FEIRA NA ALB


Na Academia de Letras da Bahia, quinta-feira, às 17 horas, os escritores Armando Avena e Marcus Vinícius Rodrigues farão a leitura de seus textos, que serão comentados respectivamente por Andréa Hack e Gerana Damulakis.
O conto de Marcus Vinícius Rodrigues que comentarei será "A Tarde de um Fauno", do livro Eros Resoluto (Edições P55, 2010).

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

GENIAL TCHEKHOV


Gerana Damulakis

A genialidade de Anton Tchekhov está no conto que, a partir do simples, encerra um conteúdo de emoção muitas vezes torturante. "É que a intenção de Tchekhov se mascara de sutis subentendidos", segundo Herman Lima.
Penso que o sentido de seus contos está em nós, leitores. Uma frase - um trecho, uma história inteira - é como uma flecha que vai acertar o alvo, ou não. As duas frases do conto "O Bisbilhoteiro" acertam em mim:

(...) Mas não há felicidade absoluta nesta vida. A própria felicidade contém o seu veneno que vem de fora e a vulnera.
Tchekhov

Ilustração: Venus Verticordia, de Dante Gabriel Rossetti (1828-1882).

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A GRANDE CENA DE AMOR E MORTE

Gerana Damulakis

A grande cena de morte da literatura brasileira é também uma grande cena de amor. Num só instante: morte, desvendamento de um mistério, confirmação de um amor.

João Guimarães Rosa: o Rosa, o grande Rosa e, na minha opinião, a grande cena de amor e morte da literatura brasileira. Até hoje faço a leitura da cena tomada de emoção, até hoje ainda fico arrepiada com a intensidade da emoção que as linhas abaixo são capazes de transmitir.


Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; (...) Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero.
.........................................................................................................................................................
Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
— Meu amor!...
João Guimarães Rosa in Grande Sertão: Veredas

Ilustração: Detalhe de mulher diante do espelho, de Vicente do Rego Monteiro (1899-1970).

terça-feira, 21 de setembro de 2010

INÚTEIS LUAS OBSCENAS

O tumulto interior
Gerana Damulakis

O Surdo é o grande personagem do romance de Hélio Pólvora, Inúteis Luas Obscenas (Casarão do Verbo, 2010). Uma história apaixonante que reúne paixões e vinganças bajo la misma luna, como diria um poeta espanhol. O Surdo foi parar no sul da Bahia; viúvo, criou os filhos Jonas e Regina, que se transformam após a primeira das várias paixões da narrativa, quando Jonas se enamora de Celina, filha de um potentado.

Em Valise de Cronópio (Perspectiva, 2004), Júlio Cortázar entende que, para sequestrar momentaneamente o leitor, o estilo de um texto deverá conter intensidade e tensão. A intensidade da ação e a tensão da narrativa resultam do “ofício de escritor”, do que se conclui a existência de variantes tanto de intensidade quanto de tensão.

Inúteis Luas Obscenas tem estrutura plurifocal, à base de camadas superpostas: se uma delas, de dimensão filosófica e existencial, cruza todo o livro, outra, subordinada tematicamente, é circunstancial. Sob tal perspectiva a narrativa se enriquece em artifícios de montagem: os dois estratos marcham, em associação de ritmo, representam momentos num só ímpeto do trajeto. As personagens narram e são narradas entre si; e mais: passam pelo crivo crítico do narrador onisciente.

A tensão interna é mantida em patamar alto, enquanto a intensidade admite alternativa de proposta mista — privilégio este do próprio gênero romance. Na medida em que avança a narrativa da primeira camada, e as personagens se desnudam, o outro plano, como reforço harmonioso de alicerces muitas vezes alegóricos, enfoca questões, reflexões, observações propositadamente caricaturais das personagens colhidas na empreitada dos afazeres e perplexidades cotidianos. Tudo isso sob a luneta do narrador lúcido. Cada personagem do núcleo ficcional se exprime de forma a revelar suas intimidades, o que ocorre por conta dos trechos em itálico, iniciadores dos módulos narrativos da primeira e da segunda parte do romance: “Fuga” e “Purgação dos Pecados”. Tais aberturas, espécie de proêmio do coro na tragédia grega, são confissões como que ao pé do ouvido do leitor. A lua tudo banha com um fatalista palor irônico, porque o romantismo do rapto da donzela pelo cavalheiro pobre travestido de príncipe decerto prenuncia desastre.

Celina, assim nomeada com vistas à Selene grega, deusa de todas as luas, precipita a tragédia, pois é uma lua funesta. As personagens guardam representações: o Jonas bíblico engolido pela baleia e cativo de um exíguo desespero em último grau; Regina, a que rege, pois é rainha, daí o voluntarismo, a necessidade de vingança, quando da ocupação de seu espaço por Celina; e, por fim, o Surdo. Será de fato surdo como aparenta, ou a surdez funciona como anteparo? Na surdez ele se dissimula, ela o instiga a fazer perguntas, algumas perigosas. Fascinantes, todas essas personagens nas suas interações, até mesmo os coadjuvantes como Josefino Calango, ensurdecido, emudecido e cego pela pobreza absoluta.

Em romance de personagens, e que não se furta a cenas dramáticas, como é (ou era) característica do gênero, Hélio Pólvora introduz a novidade de dois epílogos, mas, ao contrário das prosas experimentais, as manobras intelectivas orientadas para as suspensões são completadas e desenredadas por desdobramentos imagéticos, como quer o romancista. Ele deseja que o leitor escolha o epílogo, segundo narração de Regina ou segundo narração de Celina, se não preferir, por acaso, um terceiro. As “leituras” se sucedem.

O romance percorre, nos dois extratos de sua complexa estruturação, a trilha por onde seguem o narrador, as personagens e o leitor, mas sempre atiçados por uma atividade dual: ajustar as interfaces, integrá-las. Finda a narrativa, sabemos que é circular: no início a filha do Surdo é informada da morte do pai, pois a história a ser narrada já fora concluída. Esta sensação de circularidade patenteia o papel do segundo estrato na estrutura. Há impressionismo e simbolismo neste romance tão rico. O impressionismo nas paisagens descritas, tal como se olhássemos um quadro de Monet. O simbolismo está no centro dual enaltecido por imagens da lua: é na lua nova que Jonas vai raptar Celina, montado num cavalo ofegante que a acolhe debaixo de sua janela.

A lua também é pintada, tem cores, a lua é vermelha e é azul. Quando há dois plenilúnios em um mês é o que se chama de lua azul, once in a blue moon, uma vez na vida, ou raramente, ou quase nunca. “Minha lua azul foi Celina”. Este pensamento-chave, núcleo da força temática, segura a narrativa rumo o fim circular, irradia elos de significações analógicas e metafóricas: “Estalou na minha vida como um relâmpago. Tomara que dure mais que um relâmpago”, outro pensamento do Surdo.

As reflexões do Surdo, acentuadas na terceira parte do romance, “No Rio-do-Braço”, abrem sendas luzentes, tão lúcidas ao ponto de rastrear a simbologia de uma viagem maior — a viagem existencial, com as suas paixões, vinganças e quimeras.

Diversos recursos técnicos propiciam um romance que pulsa de vida e imaginação, encerra substância robustecida pela veia artística inquestionável de Hélio Pólvora, mescla de escritor-poeta e filósofo. Assim, o romance evoca a Bíblia, invoca a mitologia grega, traça um conto de fadas, cita obras literárias, recheia a narrativa com ditados populares.

Esse Surdo pensador não deixa de ser o homem telúrico enroscado nas teias de uma ação forjada pelos costumes, tradições, mitos e lendas. A referência ao espaço é precisa — a região dos cacauais do sul da Bahia. No entanto, a reflexão é sobre o homem apanhado no seu espaço interior, quando o tumulto interno se avoluma. Hélio escolhe olhar o homem na proposta maior de descortinar dois mundos: o íntimo e o social, com um toque de fatalidade acumpliciada, que a cupidez, a luxúria, as paixões e as purgações ilustram.

O discurso, tantas vezes impressionista na pintura de paisagens, ao fim e ao cabo sobe a escala do romance épico, inflamado nos braseiros da avivada visão crítica que caracteriza o escritor Hélio Pólvora em todos os gêneros por ele cultivados: visão crítica do homem, de suas fraquezas, ânsias e coragens, da realidade e da sociedade que o condicionam e, muito importante, da linguagem que o traduz. Obra de grande escritor, aquele que nos torna mais impressionáveis e argutos.

Publicado no jornal A TARDE, em 18-09-2010.
Presente também na edição de setembro da Revista Eletrônica Verbo21 Cultura & Literatura: http://www.verbo21.com.br/

domingo, 19 de setembro de 2010

A FORÇA DOS SENTIDOS

Gerana Damulakis

É espantosa a força dos sentidos sobre os estados da alma. Um sensualista como Ernest Hemingway sabia usar os sentidos para saborear melhor a vida. Só para citar um exemplo: as mulheres sabem o quanto o chocolate traz felicidade. Mas, quem precisa de exemplos, se podemos ler sobre a força dos sentidos no trecho retirado de Paris é uma festa (Bertrand Brasil, 2000)?

Comi as ostras, que possuíam forte gosto de mar e um leve travo metálico que o vinho branco gelado lavava, deixando somente o gosto de mar e a suculenta textura. À medida que ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio foi me abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos.

Ernest Hemingway in Paris é uma festa, p. 21


Ilustração: Au Café, de Jean Béraud (1849-1935).

sábado, 18 de setembro de 2010

"LUXE, CALME ET VOLUPTÉ"


Gerana Damulakis

Uma leitura puxa outra. Durante a leitura do conto “O roteirista”, de Charles D’Ambrosio, no livro O museu do peixe morto (Grua, 2010), encontrei o narrador descrevendo um certo ambiente e, numa altura, ele soltou um verso: “Luxe, calme et volupté”. Como o verso está em itálico e há uma nota no final, fui (com minha excessiva curiosidade) verificar qual era o poeta.

Resultado: a citação é o verso do famoso poema “L’Invitation au voyage”, de Charles Baudelaire. Retirei da estante o meu exemplar de As Flores do Mal (Nova Fronteira, 1985), edição bilíngue, com tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira e li o poema. Outro resultado: a postagem de agora.


O CONVITE À VIAGEM
Charles Baudelaire

Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
Desse olhar infiel
Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,
Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
— Os sangüíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canais, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.


Ilustração: Girl with Sailboat, de Edmund Charles Tarbell (1862-1938).

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A SEGUNDA SOMBRA

Amanhã, 18 de setembro, no já tradicional horário matutino dos sábados na Livraria LDM, Carlos Barbosa autografará A segunda sombra, editado pela Multifoco. O livro traz 80 minicontos e, muito gentilmente, Carlos me autorizou a colocar o exemplo que segue abaixo.

EMBRIAGUEZ AMOROSA
Carlos Barbosa

Diante do abismo, recuo um passo. E me ajoelho, trêmulo. A outra margem torna-se um tênue aceno; o abismo, tudo. No profundo rio que o preenche, mergulho meu mais doce pensamento. Que por lá fica a voltear, feito isca insípida e imprópria. Não há retorno para ele nem para meus passos. Tomado pelo abismo, finco minha morada no barro da borda. À espreita, não sonho pontes nem aspiro pela outra margem. Apenas domo o desejo enquanto lapido a coragem para o inevitável salto.

Carlos Barbosa é autor de Água de cacimba, de 1998, A dama do Velho Chico, de 2002, Matalotagem, lançado em 2006, e os editados em 2010: o romance Beira de rio, correnteza e, o de amanhã, A segunda sombra.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

UM GRANDE POETA



Gerana Damulakis

Carlos Pena Filho (1929-1960) é um grande nome da poesia brasileira do século 20, contudo se pode pensar e indagar: "Como ele é grande, se não é lembrado como são lembrados e louvados Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto (só para citar poucos nomes)?"

Nem todo grande poeta alcança a notoriedade nacional, mas, ainda assim, do ponto de vista da arte literária será sempre um grande poeta.

TESTAMENTO DO HOMEM SENSATO
--------------Carlos Pena Filho


Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: “Ele era assim…”
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.


Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.


Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em vôo se arremeda,


deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.


Ilustração: Claude Monet (1840-1926). Femme assise sur un banc (Mulher sentada num banco), de 1874, National Gallery, London, UK.

sábado, 11 de setembro de 2010

A POSSIBILIDADE DE UMA ILHA


Gerana Damulakis

Um escritor implacável, com textos cortantes, que trazem o modo de ser das pessoas nos dias atuais, usando uma crueza, por vezes demasiada, mas que sabemos verdadeiras. Do romance A possibilidade de uma ilha (Record, 2006), de Michel Houellebecq:


... entre um homem e uma mulher subsistia sempre, apesar de tudo, alguma coisa: uma pequena atração, uma pequena esperança, um pequeno sonho. Fundamentalmente destinada à controvérsia e à divergência, a palavra permanecia marcada por essa origem belicosa. A palavra destrói, separa, e, quando entre um homem e uma mulher não subsiste senão ela, considera-se corretamente que a relação está terminada. Quando, ao contrário, é acompanhada, suavizada e de certa forma santificada pelas carícias, a própria palavra pode assumir um sentido diferente, menos dramático e mais profundo, o de um contraponto intelectual autônomo, sem objetivo imediato, livre.


Ilustração: Summer Evening, de Edward Hopper (1882-1967).

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

FERREIRA GULLAR: 80 ANOS

Gerana Damulakis

Uma homenagem...
porque sua poesia seguiu - e segue - lado a lado com o país desde o começo da segunda metade do século 20, porque sua poesia se fez surreal, se fez concreta, se fez neoconcreta, se fez crítica e continua sendo feita, porque seu "eu" lírico sente e versa a natureza, porque o poeta carrega também as cidades, não apenas a sua São Luís do Maranhão, mas o Rio de Janeiro, Buenos Aires, Santiago do Chile, porque Gullar vive o homem brasileiro, o homem latino-americano, porque hoje Ferreira Gullar completa 80 anos.

CANTIGA PARA NÃO MORRER

-----------------Ferreira Gullar

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.


-----------in Dentro da noite veloz


Ilustração: Hélio Oiticica (1937-1980).