quarta-feira, 17 de setembro de 2008

DO 71 AO 80

Gerana Damulakis

71- Travessuras de uma menina má, de Mario Vargas Llosa

72- Presença de mulher, de Saul Bellow

73-A normalista, de Adolfo Caminha

74- Uma escola para a vida, de Muriel Spark

75- As horas, de Michael Cunningham

76- O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde

77- Um velho que lia romances de amor, de Luis Sepúlveda

78- O perfume, de Patrick Süskind

79- Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca

80- O castelo, de Kafka


TRECHOS DE Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca (foto).

A arte faz a gente ver melhor as coisas.

"Qual o seu sonho de consumo?", ela perguntou.
"Acreditar em Deus", eu disse.
"Isso mudaria alguma coisa?"

"Talvez o meu estilo. Minha linguagem é assindética, cheia de elipses de conjunção. A fé tornaria meu estilo hiperbólico, polissindético". Etc. Na época pensei que estava brincando.

Meu sonho de consumo, eu sabia agora, era a liberdade. O ser humano se caracteriza, na verdade, por uma grande estupidez. Ele só descobre que um bem é fundamental quando deixa de possuí-lo. Preso naquele porão, eu descobria que a liberdade mais importante que existia era a liberdade de ir e vir, a liberdade de movimento. Eu tinha todas as outras liberdades, preso no porão - de pensar, de xingar meus captores, de ter uma religião (caso quisesse uma), de escolher minhas convicções políticas. Tinha liberdade de sonhar. Mas de que me adiantava isso, se estava preso dentro de um porão?

MAIS DUAS DAS FRASES QUE, LIDAS, FICAM ESCRITAS EM MIM



O sonho é o pensamento que não foi pensado quando devia(...)
em O evangelho segundo Jesus Cristo


(...) o meu cérebro sabe de mim, eu não sei nada dele, (...)
em História do Cerco de Lisboa


José Saramago - Prêmio Nobel de Literatura 1998


UM CAPPUCCINO


Luiz Britto


Rose me chama pra sair com ela: quer fazer umas compras e quer minha companhia. Vai comprar uns tecidos pra fazer umas roupas quentes, pois irá no fim do mês para os Estados Unidos, visitar os parentes, e vai enfrentar o frio do outono, no Illinois. Pego um livro --- As Palavras, de Sartre --- e vou com ela. Vamos de táxi, como sempre andamos nessa cidade maluca, sem lugar pra estacionar, esse trânsito doido e cansativo. É bom ter um chofer e um guarda-costas, nem que seja por uns instantes. O friozinho do ar-condicionado, as janelas fechadas, nós dentro daquele aquário, no bolo do trânsito, fazendo fila nas sinaleiras.
Vamos para a Pituba, uma área que tem 2 ou 3 shoppings. Andamos de um lugar para outro, procurando uma loja. Transeuntes apressados tomam uma alameda coberta com um toldo branco, que liga 2 shoppings médios. Uma gente que nunca vi, e que nunca mais verei. Uma sensação que estou em outra cidade, pois raramente ando por aqui. Numa encosta, verde com o capim, perenes emílias azuis ao lado de uma escadaria. Uma tarde de sol, três horas.
Acabamos descobrindo onde fica a tal loja, mas antes paramos num café, para tomar um cappuccino. Um lugar pequeno, 2 mesas; acomodamo-nos. Conversamos qualquer coisa, comento como aquele shopping era barulhento --- o teto baixo, os corredores estreitos. Olho-a; de alguma forma é como se fossemos muito mais jovens, e namorássemos outra vez. Um momento de intimidade e paz --- ultimamente sempre vamos a um shopping tomar um cappuccino. O café quente, o chocolate, o creme. Isso nos aproxima, e é tão barato, tão fácil. Gosto de olhá-la nesses pequenos e sensíveis momentos: amo-a enquanto a contemplo, e sempre me sinto feliz nesses momentos, é como se o tempo fosse sempre o mesmo, estivéssemos no arco da eternidade, nossa pequena eternidade.
Levantamos, enfim, vamos à loja de tecidos, pequena também. Enquanto ela escolhe os tecidos, sento-me numa cadeira e vou ler meu livro. Um livro que jamais leria, se não o tivesse comprado --- um texto confuso, uma superabundância de pensamentos e conceitos, e a vida é bem mais simples. Um livro antigo, comprado em sebo, com mais de 20 anos, as páginas amareladas, com anotações alheias, e eu gosto dele assim. Livros envelhecidos têm outro sabor, uma vida que já é deles: a marca do tempo.
Enquanto Rose escolhe seu pano, vejo-me menino, acompanhando minha mãe em outras lojas de tecidos --- a Casa Africana, a Duas Américas, que ficavam na então elegante Rua Chile.
Minha mãe uma vez me comprou uns carrinhos de ferro ingleses, e eu ia com ela na esperança de ganhar novos carrinhos. Uma esperança jamais satisfeita: ela sempre dizia que não tinha dinheiro, que eu já tinha carrinho de mais, e eu ficava muito aborrecido. As frustrações daqueles dias me voltam, e uma lembrança vaga de outra Salvador, muito mais tranqüila, de 50 e tantos anos atrás, que já vai tão longe.
Uma Salvador menor, que cabia num dedal, que não tinha cappuccino. E nem Rose.

Luiz Britto é ficcionista, tem dezenas de títulos publicados. Foto de Renata Diem, retirada do Flickr.