terça-feira, 30 de dezembro de 2008

ESPAÇO UNIBANCO DE CINEMA GLAUBER ROCHA



Espaço Glauber – o Ouro

Ildásio Tavares

Sair de minha choupana em Itapuã onde durmo ao embalo da música das ondas que Debussy tentou captar a vida inteira; sair do meu sossego atlântico, ainda mais de noite, só mesmo por alguma coisa muito sedutora ou muito do meu afeto. Desta vez, eu ainda tive o incentivo de uma musa inspiradora, uma amiga fiel que veio me pegar em casa e, na volta, me deixou no Iguatemi na cara de um táxi. E desta vez o estímulo foi duplo – sedução e afeto.Tratava-se da revitalização do antigo Cinema Guarany, rebatizado de Glauber Rocha e agora devolvido ao público baiano em grande estilo. A inauguração oferecia, de quebra, um clássico, O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade, obra prima de nosso genial cineasta.
Este belíssimo filme ganhou, lá fora, o título de Antônio das Mortes para facilitar o público, mas para descaracterizar um aspecto da proposta do mais brasileiro dos cineastas de fazer um cordel cinematográfico, referencializado no título original. Gláuber usa, inclusive, a linguagem do cordel nos diálogos e a parodia no mis-en-scène. A película não podia ser mais nordestina, uma perfeita alegoria das relações de dominação no sertão, flagrando, de forma magistral, a catarse de Antônio das Mortes que desperta de seu letargo de matador de cangaceiros=sertanejos e parte para combater o verdadeiro mal configurado no latifúndio e nos seus coronéis - passa de dragão para santo, ao lado de Mário Gusmão feito S. Jorge. no final.
É digno do primeiro mundo, o espaço Glauber Rocha. Vi algo semelhante em Roma, um espaço multiuso onde assisti a um fabuloso concerto sinfônico. O espaço, não pretende ser uma mera casa de espetáculos. Possui variada vocação cultural – uma livraria, uma galeria, um restaurante quatro salas de projeção finamente equipadas, poltronas das mais confortáveis e com uma técnica de projeção que une o mais bem resolvido da imagem ao mais bem requintado dos sons, o que pude constatar na exibição do filme de Glauber cuja cópia, por sinal, rivaliza com o original em qualidade.
Lembro-me de que vi o filme original no Cine Capri, com Aloysio de Oliveira que aqui estava na produção do filme Capitães de Areia, (obra de Jorge Amado) de Hall Bartlett, diretor de um filme de sucesso na época, Fernão Capelo Gaivota, (Jonathan Seagull). Aloysio fora aos Estados Unidos com o Bando da Lua, acompanhando Carmem Miranda, e trabalhara com Walt Disney. O tempo todo, ele reclamou de defeitos técnicos do filme, na montagem, inclusive. Vendo o filme agora, na verdade não descobri nenhum. Acho que foi pura birra do meu amigo Aloysio que cobrava o filme fosse hollywoodiano, a última coisa que Glauber gostaria para um filme que fez com as vísceras do nordeste de fora.
Espero,que as autoridades prestigiem o esforço criativo que brindou a Bahia com este espaço. À frente da Fundação Gregório de Mattos um poeta da maior expressão, terá o desafio de rechear a praça; de Criar e recriar e de acrescentar mais ouro a este ouro que nos deram.

SPECTOR

Gerana Damulakis

O poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos leu a postagem que Kátia Borges colocou no seu blog, Madame K (http://mmeka.wordpress.com/), no dia 29 de dezembro. Trata-se de um texto de Clarice Lispector com considerações em torno de "se eu fosse eu". Não foi preciso mais: Luís escreveu o soneto seguinte. Desfrutem verso a verso, leiam e releiam.


SPECTOR

Luís Antonio Cajazeira Ramos

Clarice, “se eu fosse eu” não faz sentido.
É como se eu pudesse ser alguém.
Pois nem ser eu sei ser, quanto mais quem
houvesse além de si haver havido.

Melhor deixar aquém o ser contido
e se deixar além de todo além.
Há muito que essa vida não faz bem
a quem vive pensando ou comovido.

Melhor não ser Clarice nem ser eu,
Clarice, nem ser eu a te dizer
o que é melhor – a ti, que já morreu

em mim o que queria conhecer
o que sentia, o que queria meu
um jeito, no sem jeito de viver.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

PAISAGEM: A PONTE ESTAIADA OCTÁVIO FRIAS DE OLIVEIRA


Gerana Damulakis


A definição do Aurélio para o vocábulo ‘paisagem’ é: espaço de terreno que se abrange num lance de vista. O Rio de Janeiro é o campeão em matéria de paisagens belas, paisagens dignas de cartões postais. Tem o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, a própria Copacabana, para ficarmos nos pontos turísticos imediatamente lembrados, porque há outras belíssimas paisagens. A minha cidade vem em seguida: o Farol da Barra, o Porto da Barra, o Elevador Lacerda, uma quantidade enorme de praias, o Farol de Itapuã, para ficarmos também apenas nos lugares mais evidentes. Já a cidade de São Paulo não tem nada que nos faça querer olhar de novo. Claro está que tudo vem do meu ponto de vista, não há pretensão de plasmar verdades absolutas. Voltemos a São Paulo: o Viaduto do Chá ou a vista do restaurante Terraço Itália seriam suficientes para extasiar o olhar? Não acho, embora não esqueça as maravilhosas horas que passei no Terraço Itália em certa noite regada com paixão, por ocasião de uma Bienal do Livro de São Paulo: o manto de luzes que recobre a cidade vista lá das alturas do restaurante, a música brega apropriada para os enamorados, a boa comida e, no meu caso, a companhia do meu amor; foi inesquecível, sempre digo a Aramis o quanto adorei aquela noite já quase no final do século XX. Mas, neste dezembro, retornei a São Paulo carregando a minha tristeza, o peso da perda de meu pai, peso este que não me deixa e traz sombra ao meu olhar; contudo, eu fui com disposição suficiente para, deslocada daqui, abrir meu estado de ânimo para a música de Madonna e acabei me encantando com a vista do meu quarto de hotel no Morumbi: o novo cartão postal de São Paulo, a Ponte Estaiada Octávio Frias de Oliveira, inaugurada no dia 10 de maio deste ano. Achei, num lance de vista, um espaço tão belamente ocupado, me alegrei tanto ao admirar a arquitetura e a grandiosidade da ponte, que aí está a foto tirada do hotel. De noite ela estava iluminada para o Natal, cheia de estrelas, mas as fotos não estão tão boas. Posso dizer agora que a minha paisagem preferida em São Paulo é a visão da Ponte Estaiada.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

LIVRARIA CULTURA

Gerana Damulakis

Na postagem de 30 de novembro último, intitulada “Livraria Cultura”, José Saramago, em seu blog O Caderno de Saramago (http://caderno.josesaramago.org/page/17/), escreveu:
“A última imagem que levamos do Brasil é a de uma bonita livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz, bela. É a Livraria Cultura, está no Conjunto Nacional. É uma livraria para comprar livros, claro, mas também para desfrutar do espectáculo impressionante de tantos títulos organizados de uma forma tão atractiva, como se não fosse um armazém, como se de uma obra de arte se tratasse. A Livraria Cultura é uma obra de arte.
O meu editor, Luis Schwarcz, da Companhia das Letras, sabia que me ia emocionar este portento, por isso me levou. Também me tocou bastante a livraria da Companhia, ver estantes luminosas com obras de fundo, os clássicos de sempre expostos como outros fazem com as novidades. E todos juntos oferecidos ao leitor, que tem o difícil mas interessante dilema de não saber que escolher.”
No dia seguinte, parece que o encantamento ainda tomava conta das lembranças do autor de A viagem do elefante, haja vista o retorno ao mesmo tema: “Ontem deixei aqui algumas frases admirativas sobre as magníficas instalações da Livraria Cultura, em São Paulo. Ao assunto volto, em primeiro lugar para reiterar como justiça devida, a impressão de deslumbramento que ali experimentámos, Pilar e eu...”
A livraria Cultura é realmente uma obra de arte, como definiu meu autor de cabeceira. E ali estive por conta do entusiasmo dele. Na foto, como comentei com Kátia Borges, pareço, metaforicamente, é óbvio, uma criança visitando uma doceria ou uma loja de brinquedos, dado o sorriso de um canto ao outro. Para quem ama os livros, a Cultura é um templo.
Notinha: não estranhem tanta roupa em pleno dezembro, lembrem que havia uma frente fria no sudeste do país na semana dos shows de Madonna e, afora a desculpa verdadeira, lembrem que eu sou da Bahia, terra do sol e da alegria.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

NATAL

Manuel Anastácio


Há natáis que pedem poemas.
Outros não.
Os que pedem, pedem
Poemas de luz celeste em terra escura.
Outros não.
Os que pedem, pedem
Sofrimento em grossos traços de doçura.
E em gritos no tom que eclode
No peito frágil que enfim respira.

Outros não pedem.
Não podem. Não querem. Não são.
Outros não.

Há natáis que pedem o segredo
Que a luz aos sábios segredou
E que em caixinhas guardados
Em ouro, incenso e mirra se disfarçou.
Um traz silêncio, que ele dorme.
Um traz aviso, pelo perigo.
Outro, novidade, que o menino ignora.
Porque é de poema o sobreaviso, o aviso e a demora.
Ou não.



Manuel Anastácio é o poeta que assina o blog Da Condição Humana, cuja entrada pode ser feita pelos meus "Favoritos", ou com o endereço: http://literaturas.blogs.sapo.pt/

Foto do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, de Sweet Painting, retirada do Flickr.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

ALÔ, SOLIDÃO!


Gláucia Lemos


No edifício em frente havia um senhor que cuidava dos passarinhos. Suponho que era aposentado. Tinha cabelos brancos e compleição franzina. Caminhava devagar, mas seus gestos eram precisos e cuidadosos. Pelo que eu observava, ele criava os passarinhos.
Todas as manhãs, enquanto eu estava regando a jardineira da minha varanda, via-o no seu quinto andar, à altura do meu, alimentando-os. Só que tinha uma particularidade, os passarinhos viviam soltos, não havia gaiolas nem telas limitando a liberdade dos bichinhos. Ele espalhava a ração sobre o parapeito da varanda, e uma infinidade de aves pequeninas vinha não sei de onde e pousava diante dele, inquietamente bicando os grãos de alpiste. Seriam rolinhas ou outras de porte semelhante. Todas as manhãs.
Havia alguma coisa poética naquela cena, que se completava com a presença de piotas pendentes do teto, em volta das quais, agitando vertiginosamente as asas, esvoaçavam beija-flores.
Nunca vi outras pessoas habitando aquele apartamento. O homem se movimentava rodeado de pássaros, enquanto eu regava minhas plantas no meu espaço.
Contemplava-o por longos minutos, gozando o direito da invasão sem culpa, e me recolhia a meus afazeres que eram muitos, na minha responsabilidade de mãe de três filhos em idade escolar, dona de casa sem empregada, mulher casada com piloto em intermináveis vôos pelos céus do mundo, e tão poucas vezes voando em direção à casa. Aquele velhinho, ao longe, começou a fazer parte da minha vida. Poderia ser meu pai. Se um dia não o encontrava alimentando os pássaros, ficava preocupada. Estaria doente? Teria mudado de endereço? Quem alimentaria os passarinhos na sua ausência? Naqueles dias, a cada intervalo entre o tempero do arroz e o alarme do forno, corria à varanda a ver se estaria de volta. Até que, mais tarde, ou no dia seguinte, ele lá aparecesse, para minha tranqüilidade.
Nisso passaram-se meses sem conta, talvez um ano ou mais, não posso precisar, vivendo a mesma rotina.
Uma tarde, concluída a jornada diária, enquanto descansava a esperar a hora para apanhar as crianças no judô, eu cochilava em cima das páginas de Hemingway, que estava sendo a minha companhia do momento, na absoluta falta de alguém com quem conversar.Com Hemingway eu andava freqüentando bares e estações ferroviárias, entre bêbedos, marinheiros e prostitutas.
Então, soou a campainha da porta. Que visita estaria chegando sem prévio aviso, quem sabe seria o zelador do prédio para medir o gás.
Com má vontade, espiei pelo olho mágico da porta de serviço. Não era o zelador, não reconheci a pessoa, o hall não estava bastante iluminado. Deixei a área de serviço, encaminhando-me à porta da sala , recriminando a portaria por não ter avisado a chegada de alguém.
Torci o trinco. Um senhor de cabelos inteiramente brancos, brancos como talco, estava de pé me olhando, com olhos miúdos e brilhantes, olhos de uma cor quase doirada, e um sorriso que não se completava, apenas se desenhava quase imperceptível na boca pequenina. Um sorriso que quase pedia desculpas por sorrir.
- Boa tarde - cumprimentei e sorri também.
Tenho medo de desconhecidos, mas vendo-o tão frágil, pequeno, parecendo indefeso, não senti receio, o sentimento era de quase proteção.
- Quem o senhor procura?
Ele desvelou o sorriso retido, com dentes pequenos e brancos.
- A senhora mesma. Sou seu vizinho, do edifício em frente.
Então o reconheci. Meu Deus, é o velhinho dos pássaros.
- Pois não? Sei. Pode entrar, faça favor.
Ele entrou, seus passos eram suaves. Sentou-se no sofá em frente a mim, discreto, parecendo tímido.
- Esteja à vontade – animei-o.
Então começou
- É porquê... Vejo sempre a senhora regando as plantas pela manhã. Fico observando o empenho com que cuida delas. São tão bonitas. Fiquei curioso.
- É verdade. Eu gosto de plantas, cultivo flores.
- Eu também gosto. Mas não tenho jardineira. Cultivaria crisântemos. Se pudesse.
- Pode vir vê-las. É só um canteiro.
Levei-o até a varanda.
- Aqui são begônias. Begônias vermelhas. Quando abrem as corolas demoram muito para secar, às vezes aturam abertas até dois meses.
- Demoram tanto assim? Por isso que estão sempre floridas. Parecem rosas, lá da minha varanda pensei que eram rosas.
- É verdade. Parecem um buquê de rosas pequenas. Mas para mantê-las assim é preciso cuidado, nunca molhar os caules. São frágeis. Já os hibiscos só duram vinte e quatro horas. Murcham em um dia.
- As plantas são como as pessoas, cada uma com seus caprichos.
- Ou seus problemas – completei.
Ele concordou afirmando com a cabeça.
Voltamos para a sala, ele se sentou no mesmo lugar. Nunca notara que ele me observava, eu era quem o contemplava com seus passarinhos. Procurei ser gentil.
- Posso servir um café, aceita?
- Aceito. Mas não quero incomodar, é só uma visita.
- A visita me alegra.
Fui para a cozinha. Rapidamente retornei com a xícara fumegando café solúvel. Ele tomou lentamente enquanto falava. A voz era mansa como um chuvisco.
- A senhora gosta de passarinhos?
- Muito. Sempre fico olhando o senhor cuidando dos seus. São muitos, não é?
- Muitos. Mas não são meus. Sou o copeiro deles – ele riu divertido – Não sei de onde vem. Espalho alpiste e eles aparecem.
- E os beija-flores?
- Os beija-flores são uma estratégia. Eu ponho mel na água dos caqueiros e eles vem beber. Não sei como é que de longe pressentem a presença do mel.
- Mel?
- Sim, mel de abelhas. Compro especialmente para eles. Eu não como mel, é açúcar, mas eles não têm restrições, acho que é porque ainda não têm a minha idade...
Ria enquanto falava. Rimos juntos.
Então se levantou e me entregou a xícara com um resto de café.
- Obrigado. Vou embora. Venha lá em casa amanhã para ver os passarinhos se alimentando.
- Está bem. Obrigada pela visita. Vou ver os passarinhos amanhã quando deixar as crianças na escola.
Abri a porta, ele saiu manso como chegara. Voltei para dentro com um resto de sorriso. Eu iria ver os passarinhos, iria sim.
Fui.
Entrei para uma sala quase vazia de móveis. Uma arca colonial junto à parede. Acima, em contraste, imensa tela bastante colorida com motivo abstrato. Havia uma cadeira de balanço austríaca, ao lado de um revisteiro abarrotado em frente à TV de 33 polegadas. Persianas na porta larga envidraçada deixavam penetrar uma claridade frouxa, que não chegava a se espalhar pelo espaço da sala.
O velhinho sorriu ao me ver, e me conduziu à varanda. Rolinhas e outras aves miúdas bicavam o farto alpiste espalhado no mármore do peitoril, indiferentes à minha presença e ao ininterrupto rumor dos carros que transitavam lá embaixo. Permanecemos ali, em silêncio, para não afugentá-las. Ele tinha um olhar carinhoso para as aves, quase paternal. Alguns minutos e voltamos à sala onde tratei de me despedir, sem que ele concordasse.
- Não se apresse. Tenho que lhe servir alguma coisa. A senhora toma chá?
- Não se preocupe, eu tenho que ir.
Ele, porém, já se dirigia à cozinha falando enquanto caminhava.
-. Nunca recebo visitas, por isso não preciso de cadeiras. Sente aqui mesmo na cozinha. Moro sozinho, sabe? Minha mulher morreu há muitos anos, meu filho pouco me visita, não tem tempo, o trabalho...
Havia uma bancada de cozinha americana. Sentei-me em um banco alto, enquanto ele preparava um chá que tinha o cheiro bom de canela, e serviu duas xícaras. Uma colocou em minha frente e começou a tomar da outra. Em silêncio. Os dois. Eu não sabia o que falar. No ar pairava uma cumplicidade. Ele sempre sorria, um sorriso brando, parecendo contente, os olhinhos doirados brilhando entre as pálpebras rugosas. Quando terminei descansei a xícara em cima da bancada e me levantei.
- Agora preciso ir. O chá está muito gostoso, o senhor sabe preparar um ótimo chá. Obrigada por me convidar. Quando quiser, pode ir ver minhas begônias. Agora, porque o senhor falou deles, estou pensando em plantar também crisântemos. Pode ir ver quando quiser, é só avisar.
Fui saindo. Ele me acompanhou até a porta e recomendou:
- Cuidado com a porta do elevador que às vezes fica travada. O perigo do poço!!! Esta semana, eu escapei por pouco, quase caí.Volte outro dia, não precisa avisar, eu não saio de casa. Vou esperar a senhora.
Acenei e entrei na cabine, para o que tive que desemperrar a porta defeituosa. Por que não consertam esta porta? – pensei. Alguém ainda vai cair.
Fiquei com o velhinho na cabeça. Amanhã na varanda vou acenar para ele. Enfim muda alguma coisa, tenho um amigo para me sorrir e apreciar minhas flores. Que velhinho mais simpático!
Dia seguinte fui cumprir minha rotina. Regador na mão, rumo da jardineira. Ele ainda não estava na varanda. Demorei mais tempo cuidando do canteiro, arrumando um espaço para as mudas de crisântemos, enquanto esperava para vê-lo chegar a alimentar os pássaros. Ele não veio. Passei a manhã inquieta, vigiando, a pequenos intervalos. Não apareceu naquele dia. Nem no outro, nem no outro.
Nunca mais o vi. Pouco a pouco os passarinhos abandonaram a varanda. Eu desisti dos crisântemos.


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta com 33 títulos publicados. Seu mais recente romance é Bichos de Conchas (Scortecci, 2008).
Foto "Crisântemos Coloridos", de LoveCats 2006, retirada do Flickr.

domingo, 21 de dezembro de 2008

STICKY AND SWEET: EU FUI!!!

Gerana Damulakis


O atraso de 2 horas no show de Madonna do dia 18 em São Paulo foi irritante, mas quando ela começou, esquecemos de tudo. O estádio apagou as luzes, creio que todos nós ficamos arrepiados e ela surgiu esplendorosa. É um fenômeno, uma prova de determinação, de profissionalismo e ela passa a certeza de que podemos alcançar o que desejarmos se houver persistência. Acabado o show, eu estava rouca. Levei as duas horas cantando, gritando, dançando, até fiz o papel de Justin, já que ele não estava na hora da música "4 minutes". Tudo, o ambiente, a alegria, tudo faz a pessoa sentir a vida intensamente. Pena que no Brasil ela não conseguiu o que pedia em outros países: que ninguém bebesse nem fumasse. Vi muita gente fazendo ambas as coisas e me pergunto para que beber, basta a embriaguez da música, da festa. Garanto que se curte mais profundamente quando se vive em plena consciência, sem bebida para embotar os sentimentos. Mas o espírito de manada faz com que todos achem que só é possível curtir com a cabeça embaralhada. Nossa, eu não queria transformar este texto em crítica aos que bebem. Volto para ela, a mulher de cinqüenta mais bela e mais cheia de saúde, a mulher que é pura energia positiva. Adorei ver e ouvir Madonna, passei 2 horas me sentindo como ela disse: "I am the queen, you are the king".

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

INFINITUDE

Gláucia Lemos


Se me vieres, pouco te pedirei.
Não alteres teus horários
para ajustares aos meus.
Se o fizeres
te amarei com alegria.

Não desafies semáforos
para me veres mais cedo.
Se o fizeres,
a cada dia morrerei de susto,
e te amarei com remorso.

Não me jures amor eterno
para pintares sorrisos em minha face.
Se o fizeres,
pensarei na impermanência dos destinos
e te amarei sem certezas.

Não te peço que respeites meus ciúmes
para me veres tranqüila.
Ah, se o fazes...
Com quanta gratidão eu te amarei!

Só te peço que se um dia me vieres
rasgues de mim todas as solidões.

E me serás da terra, todo o bem,
e todo o mal serás.
E a tua completude
eu amarei sem qualificativos,
com esse amor absoluto de mulher.


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Sua vasta obra está atualmente com 33 títulos publicados.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A ÚLTIMA CEIA

Flamarion Silva

Olho minha mulher sentada à mesa. É Natal. Ceamos. Posso olhá-la à vontade, até certo ponto. Cronometro na cabeça o limite do meu olhar. Às vezes, propositalmente, ultrapasso essa barreira cronológica, só para ouvir seus xingamentos, só para sentir no meu coração apaixonado todo o ódio que ela nutre por mim. Ela bate na mesa com sua mão firme, que antes, isto bem antes, me acarinhava. Agora bate. Mas não me fere. Cada vez que a provoco é para que saiamos da inércia em que nossa vida se enfiou. Grita comigo. Minha linda mulherzinha esbraveja comigo e um pouco da comida da sua boca salta e bate no meu rosto, na minha boca. Abaixo a cabeça.
– Homem submisso. Fracote. Molambo – sei que ela diz essas coisas de mim. Mas o que ela nem ninguém percebem é que, ao me abaixar, submisso, o meu amor se nutre um pouco da vida dela. A língua, lenta, lambe o lábio e recolhe o alimento triturado, amassado, salivado pela sua boca.
***
– Quer mais frango? – ela perguntou outro dia. Quando? Olhe como o tempo é engraçado! Faz tanto tempo. Já se passaram tantos Natais.
– Quer mais frango? Vamos, queira, vou servir.
– Posso pegar uma coxa? – pergunto.
– Animal. Animal. Não pode ver comida. Tudo para se amostrar. Quando vê gente fica assim – ela diz, nervosa, e, sem modos e sem paciência, enfia com raiva um garfo enorme na coxa do frango, na maior coxa, na mais gorda coxa, e atira-a dentro do meu prato, respingando óleo na minha roupa branca de festa, manchando-a. Não reclamo, não lhe digo nada.
– Porco. Animal. Não pode ver comida.
***
Sorrio. Não repare, ela sempre foi assim estourada. Veja como me ama: agora mesmo acabou de derramar no meu prato um pouco de carne que sobrou. Ninguém quis.
– Como “ninguém.” Então há mais alguém além de mim e ela?
Nossa! Como a mesa está cheia! Filhos, genros, noras. E netinhos tão lindos!
– Vem cá para o vô, vem.
– Vô não – responde o menino, emburrado – Vô não – e me chuta a canela ferida, e dói, e sinto que sangra, mas não digo nada, ninguém pode perceber, estragaria o momento, não seria higiênico.
O sangue, misturado ao pus da ferida, gruda na calça. É uma ferida antiga que não sara. Já pensou, mostrasse o magoado sangrando e aí mesmo é que ela, com razão, me chamaria de porco.
Sorrio.
– Ah, zanguei – faço uma cara engraçada, de condoído, para o meu netinho.
– Macaco feio – ele me chama.
Todos sorriem. Veja como foi engraçado e como todos se acabam no riso.
– Posso pegar outra coxa? – pergunto.
– Não! Já vou tirar a mesa – e rápida raspa a tigela, os pratos, toda a comida da mesa.
No corredorzinho, indo à cozinha, olho seu corpo de moça, cinturinha delgada, nádegas volumosas, os cabelos compridos... Aspiro o rastro de alfazema que ela deixa.
– Pare de farejar a comida – ela diz, virando-se para mim, gritando, quase soltando, saltando a dentadura da boca, quase caindo de tonta.
***
– Calma, minha mãe. Calma – ouço a voz dela, num outro canto – E o senhor, meu pai, pare de aborrecer minha mãe.
– Ora, minha filha, não fiz nada – respondo, agora percebendo minha filha já de pé, segurando a mãe para não deixá-la cair. Tão parecidas!
Num outro canto, ouço cochichos, sibilos, cicios.
– Internar.
– Onde? Como?
– Mas quem vai querer o traste?
– Agüentemos mais um pouco. Logo emborca, embarca mesmo.
– Vaso ruim não quebra, minha filha – diz alguém com voz cínica, bêbada e esganiçada.
– Não fale assim dele. É meu pai.
Viro-me para ele, o cretino do meu genro e...
– Imbecil! Imbecil! Imbecil!
E três batidas firmes na mesa.
Minha voz saiu clara, mas todos insistem em dizer que, de tão bêbado, nem consigo falar. Deve ser o maldito bolo crescendo na minha boca que me obstrui a voz. E, agora, todos me condenam e chegam ao consenso de que é melhor internar.
– E rápido. Amanhã mesmo. Amanhã mesmo, logo cedo.
Cochichos. Sibilos. Cicios.
***
Daqui a pouco a festa acaba e todos vão embora. Festa de que mesmo? Ah, Natal.
– É tarde. Vocês dormem aqui. Arranja-se lugar.
– Eu tenho pena. Não passa de um doente.
– Então, interna-se. Não há outro remédio.
– Durmam no meu quarto, que é grande. Já está dormindo. Bebeu demais...
– Quê? A festa já acabou? – pergunto-me – Para aonde foram todos? E este silêncio... O maldito relógio. Não consigo ver as horas. A catarata anuviou tudo.
– Meu bem. Meu bem – digo alto, isto algum dia. Dúvidas. Pensamentos. Fantasmas que me assustam – Xô! Xô! Quê? Internar? Levanto-me. Upa, upa, quase caio. Internar? Ora, mas quem eles pensam que são? Separar, separar assim, cruelmente, duas vidas que Deus... E o que Deus uniu, o homem não separe. É um mandamento. Um mandamento. Um... Para sempre juntos, para sempre.
***

Dirijo-me ao quarto dela. O meu fica um pouco mais lá no fundo do corredor. Casa grande... Faz anos que nos separamos. Mas estamos juntos. Repare bem: juntos. É um paradoxo, eu sei, mas o teto ainda é o mesmo. Habitamos o mesmo espaço, partilhamos tantas coisas de anos: o cheiro dela, a voz, o andar, antes lépido e fagueiro, hoje arrastado. É esse som. É esse cheiro de alfazema. Os gritos e os desarranjos. E foi principalmente o ronco que, tantas noites, passo a passo pelo corredor, levou-me ao quarto dela, e lá, quietinho, no escuro, ouvia-o com prazer. De certa forma, esses pequenos detalhes preenchem minha vida, sem os quais não vivo. A faca. E o que Deus uniu, o homem não separe.
A porta aberta.
– Venha, venha por aqui. Escuro, mas o tato já sabe o caminho. Cuidado, o pé da cama. Aqui. Aqui, um momento, paremos. Ouça:
– Ronc! Ronc! Ronc!
– É o ronco dela. Aqui os pés. Aqui a barriga. Aqui a cabeça. E aqui, mais embaixo, o coração.
Ergo a cabeça e as mãos para o céu escuro do quarto e desço de vez, uma, duas, três vezes.
– Meu amor! Meu amor! Meu amor!
***
O escuro do quarto não me deixa ver o corpo. Sinto-o.
O corpo meio curvado, feito criança no útero. Sangue. Criança no útero, abortada. A boca travou.
– Não, não faça birra. Birra é uma palavra do meu tempo, quer dizer “teimosia.”
Os lábios ainda mornos, viçosos e carnudos... Ainda como antes. Sinto-os com os meus. O gosto de sangue na boca. Beijo de sangue...
– Ela apagou – digo por fim, com a certeza de quem desperta de um sonho tenebroso. Acendo a luz e vejo dois corpos na cama. No mesmo instante, minha mulher abre a porta do quarto, olha a cama e vê o corpo ensangüentado. Leva as mãos à boca e arregala os olhos. Um grito de pavor ecoa por toda a casa.

Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (Secretaria da Cultura e Turismo/ EGBA, Coleção Selo Letras da Bahia, 2006).

MARIA DE CADA PORTO




Gláucia Lemos


Foi sob a impressão do filme A ostra e o vento de Walter Lima Filho, que fui à procura do romance homônimo que lhe dera origem, e encontrei seu autor, Moacir C. Lopes, nas prateleiras de uma estante virtual. À minha disposição lá estava o elenco de romances escritos por ele. Ao que parece, a maioria com temática praieira, reveladora de uma preferência bastante sintonizada com a minha.
O autor começou marinheiro, evoluindo no sentido cultural, chegou a tradutor e professor de Literatura.
Sou dos leitores que, conquistados por um autor, não se satisfazem com pouco, vão à cata de sua produção, até o limite que lhe seja imposto. Assim fui atraída por Maria de cada porto, romance com o qual Moacir Lopes inaugurou sua trajetória literária. Ele o escreveu para matar o tédio, durante as viagens de marinheiro, nas horas de descanso, e narrou justamente a vida dos homens do mar, no período da Segunda Guerra Mundial.
O livro tem início com a explosão do navio Bahia, no qual o protagonista, Delmiro, estava servindo. A narrativa, em primeira pessoa, evolui marcada pelos dias em que permaneceu, com vários companheiros, em uma das balsas que ficaram à deriva, todas ocupadas pelos sobreviventes do barco atingido, quase amontoados a ponto de ficarem com pernas e flancos submersos, dado o pequeno número de balsas com que contavam.
O desenvolvimento é bem balanceado. Temos o sofrimento dos náufragos, ao sol e ao sereno, sedentos e famintos, desesperançados de qualquer socorro, sem mínima condição de comunicação com a base ou com outros navios, assistindo a morte de companheiros vencidos por todas as carências, ao enlouquecimento de alguns, e ao suicídio de outros, farejados todos pelos tubarões ao redor das balsas, ou feridos por inevitáveis contatos com as águas-vivas trazidas pelas correntes marítimas. Dia após dia de desespero e noites de atormentadas vigílias. No interregno da narrativa dessas horas, conhecemos as recordações de passagens referentes à vida normal da marujada, fazendo o contraponto pitoresco. Os amores de ocasião ou de sentimento deixados nos portos, as festas e divertimentos improvisados, as brigas, as perseguições e a camaradagem, tudo é exposto com a verdade das diferentes personalidades dos protagonistas. Moacir Lopes é um excelente narrador dos fatos – reais ou fictícios, tornando leve a evolução da história, inteiramente despreocupado de retórica. Interessa-lhe o cunho de verdade dado às ocorrências, a definição do perfil de cada personagem, quase todos identificados por alcunhas bastante criativas, dando-nos, muitas vezes, a impressão de estarmos diante de pessoas vivas agindo e interagindo conforme os fatos.
A Maria de cada porto vem a ser todas as Marias, Dolores, Ninas e Detinhas que os amavam realmente ou só por um dia; que os esperavam em cada porto, ou simplesmente se deitavam com os marujos para lhes proporcionar o carinho ausente durante a longa solidão das travessias. Temos nesse livro um documento, ou um relato vivo, ainda que configurado em estrutura de romance, talvez atos e fatos nascidos da imaginação com raízes na experiência cotidiana de quem experimentou de perto e na pele, as agruras da vida no mar durante uma guerra. Isso com a consciência da absoluta insegurança, e a certeza de que cada olhar ao horizonte, cada passo na rampa de acesso ao barco, cada retorno aos postos após a breve licença em cada porto, cada noite ilusória nos braços de qualquer Maria, poderiam ser os últimos de cada um.

Gláucia Lemos lançou recentemente o seu 33º título, o romance Bichos de Conchas (Scortecci, 2008).

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

INTROSPECTO

Gláucia Lemos


Gosto de viver comigo mesma,
sou minha amiga.
Quando uma saudade bate o ponto
sou paciente para me assistir
à inútil chuva dos meus olhos.
Lavar o rosto depois,
passar batom,
e ir ao cinema.

Não me incomodo de olhar o reflexo
de um sorriso gasto.
De sentir raiva
por não sentir raiva
de andar sorrindo para a solidão.

Talvez não saiba amar.
Mas é tão feia a noite
quando descubro
que ando gostando de viver comigo mesma.


Gláucia Lemos é poeta, cronista e ficcionista, autora de 33 títulos publicados. A foto traz a capa de seu mais recente romance, intitulado Bichos de Conchas (Scortecci, 2008).

domingo, 7 de dezembro de 2008

O MAGISTRAL CONTO DE NATAL


Gerana Damulakis


Se entrarmos nas histórias que envolvem um homem e uma mulher numa noite de Natal chega imediatamente a lembrança de O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, com seu magistral conto “O Presente dos Magos”, aproveitando o Natal e a arte de dar presentes inventada pelos magos para narrar uma prova de amor, o amor com generosidade, o menos ambivalente dos amores, talvez o sábio, o mago amor.
Temos um casal pobre: cada um deseja intensamente presentear o parceiro. Eles têm dois únicos tesouros: ele, um relógio de ouro, que pertencera ao avô, mas que levava preso num cordão de couro gasto, fazendo-o sentir vergonha ao consultá-lo: ela, portadora de uma vasta cabeleira, como uma cascata caindo-lhe pelas costas. Sem que um soubesse da angústia do outro para resolver o problema de como obter dinheiro e comprar um presente, acabam demonstrando a mesma intensidade de amor (ou a mesma maneira de senti-lo).
Ele vende o relógio e compra um jogo de pentes de tartaruga legítima, pentes orlados de pedraria, para os cabelos da amada. Ela vende o cabelo, que é cortado tão rente a ponto de conferir-lhe a aparência de um meninote, e adquire um bela corrente de platina digna do relógio do marido. É o conto magistral, sem outros comentários.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

DEZEMBROS



Aramis Ribeiro Costa


A mente lerda, entorpecida, arrasta
Em lentidão o tempo, idéias, membros
A tarde é morna e a própria vida é gasta
Na lassidão completa dos dezembros.

Nas esperanças dos janeiros basta
A vida que desbasta dos novembros
E a tarde se acomoda, lenta e vasta
Na tessitura lorpa dos dezembros.

O mormaço conjuga clima e fados
E em planos inconclusos e adiados
A tarde dezembral planeja e lembra.

São tempos vesperais que sinos plangem
Enquanto idéias poucos ventos tangem
E a mente, mole, sem querer, dezembra.

Aramis Ribeiro Costa é ficcionista e poeta. "Dezembros" está no livro Espelho Partido (FUNCEB, 1996).

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

OS DIFERENTES GOSTOS DO DOMINGO


Maíra Correia



Certas coisas cheiravam a certezas e tinham gosto de domingo, naquele tempo em que domingo ainda era feliz, naqueles dias que domingo significava respirar tão fundo e balançar na rede. Dias de acordar às 5 horas da manhã e ir até a mangueira, com aqueles olhinhos curiosos e uma caneca com açúcar e canela em mãos, maravilhada com a descoberta de que o leite não vinha em saquinhos.

Dias de jabuticaba no pé, vaga-lumes, visitas às plantações de café, passeios de camionete, cavalos selados, alface fresco na horta… Assim foi minha infância, grande parte dela passada em companhia do meu avô, por aqueles pastos, por aquele pomar com jabuticabas e mangas… e por mais urbana que eu seja, são aqueles dias de caçada de vaga-lumes, de andar de trator, de abrir porteiras e passear por entre os pastos, que ficaram na memória como as mais doces recordações do meu avô.

É o cheiro de pé de pitanga que sinto todo domingo e por mais que aquela primeira cadeira do lado esquerdo da mesa esteja vazia, são as mesmas histórias que ecoam pela minha mente quando olho pra ela.

Era sempre assim, ele sentava com uma latinha de cerveja com água tônica ou uma taça de vinho e repetia aquela história de como subiu naquele navio aos 16 anos e de repente estava no Brasil. As risadas ainda podem ser ouvidas ao fundo, quando ele narrava o inconcebível episódio do frango assado que ele esqueceu na mala. A história das três namoradas antes da vovó, o namoro com a vovó no cinema, as balinhas para distrair os cunhados, o casamento em Aparecida, naquele tempo onde não existiam estradas e os carros andavam só a 30 km por hora. O sorriso de canto de lábio e as histórias das caçadas de tatu, de espingardas e de laxantes em garrafas de café… Ah! As histórias com gosto de domingo!

As plantações, as idas até a máquina de arroz, as brincadeiras na palha, olhar admirada todo aquele maquinário que te fazia se sentir uma formiguinha, ficar toda orgulhosa no colo do seu avô, enquanto ele te ensinava como o arroz da palha, de repente, está dentro de um saco e voltar para casa senhora de si, carregando aquele primeiro pacote de arroz que você empacotou, como quem carrega o pote de ouro do fim do arco-íris.

Férias tinham gosto de bolo de milho e pamonha, naquelas tardes em que seu avô chegava com as espigas que tinha apanhado antes da colheita de verdade… e lá estava sua avó na beira do fogão, ensinando as mil coisas que você poderia fazer com o milho, quando, na verdade, você a olhava arteira, imaginando se não poderia roubar um ou outro milho para dar para os cavalos.

Domingo tinha um som peculiar… som de bolero, som de músicas antigas, som de Mercedita tocada na vitrola. Domingo tinha som de vovô… sentado naquele mesmo sofá, tentando entender as particularidades do controle remoto, aquele aparato semi-alienígena. Você sentava no tapete e ria, explicando como ligar. Depois ele veio a se tornar o expert dos controles remotos e descobriu as maravilhas da tevê a cabo e vocês passavam o dia vendo aqueles programas portugueses, onde você não entendia nenhuma das piadas e ele ria e falava daqueles “alfacinhas de Algarve”.

Os dias de shopping tinham gosto de reclamações, onde ele, impaciente, implorava para sua avó comprar logo o que tinha que comprar, mesmo quando ele não ia junto para as compras, ele reclamava quando demoravam… e esperava, sentado naquela poltrona em frente a porta de entrada, só para dizer : “caipiras que são assim, não podem ficar na cidade grande que já se deslumbram”.

Vovô adorava comprar carros, sua maior diversão era escolher camionetes, negociava por meses antes de comprar de fato. Adorava gado, cavalos, leilões e plantações. Vovô adorava dar bezerros de presente… e vovô adorava domingos.

E foi em uma terça que prometemos estar no final de semana naquele hospital, e foi em uma terça que minha mãe disse que ele tinha que melhorar porque no final de semana o levaríamos para casa. E foi em uma terça que ele sorriu e brincou pela última vez e foi em uma terça que ele balbuciou umas poucas palavras, as últimas palavras ditas. Mas esperou o domingo… aquele domingo que prometemos ir ao hospital para levá-lo pra casa e foi em um domingo que o cheiro de pitanga deu lugar ao cheiro mórbido das flores, e foi em um domingo que as gargalhadas deram lugar aos olhos inchados e ao choro. E foi em um domingo que cumprimos nossa promessa, e foi em um domingo que o levamos pra casa, mas não do jeito que queríamos, mas foi em um domingo… assim que chegamos no hospital, porque os domingos eram os nossos domingos… porque minha mãe tinha dito e prometido que meu irmão estaria lá… naquele domingo… e que o levaria pra casa… foi em um domingo.. o último domingo.



Maíra Correia é paulista e publica seus contos no blog http://www.vidaemposts.wordpress.com/
Foto "Santo Domingo sunset", de pericles 1492, retirada do Flickr.