sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A VIDA BEM OU MAL PENSADA



Gláucia Lemos




Eu vi a mulher preparando outra pessoa
o tempo parou para olhar para aquela barriga
.
Caetano Velloso
In Força estranha



Percebo a vida caminhando lá fora. No movimento matinal dos carros deixando o prédio; nas crianças borbulhantes de energia chegando à escola em frente; no menino do jornal correndo a cada vez que um motorista acena; nos pombos que toda manhã descem, não sei de onde, e se espalham bicando as pedras portuguesas da pracinha, ou se põem a virgular a fiação dos postes. A praça acorda na mulher das toalhas com seu vaso de paçocas de amendoim; no menino dos cds-piratas; no homem dos panos de chão caminhando entre os carros a sacudi-los como bandeiras da paz, branquíssimos e porosos, nas mãos que, incansáveis, oferecem. A vida em cada um pulsa no roteiro que lhe foi apresentado pelas circunstâncias. Cada ser, uma vida.
Dizem que as vidas são traçadas, e cada qual seguirá aquele traço inevitavelmente. Fatalismo em que nem creio nem contesto. Fico no “pode ser”.
Ciganos acreditam que os traços da vida estão dispostos nas palmas das mãos. Abro as minhas mãos: linhas longas, curtas, cruzes, asteriscos, estrelas, um bordado apurado mostrando uma grade miúda. Isso é minha vida cifrada? Por algum motivo a natureza desenha, indivíduo a indivíduo, esses rabiscos em cada mão a seu jeito. Que trabalho! A cada um, seus desenhos. Nem gêmeos têm linhas iguais, é como impressão digital, nem gêmeos idênticos. Ciganos vêem a longevidade, o sofrimento, a fortuna, os amores, a morte, os filhos, as viagens. Quem ensinou aos ciganos? A própria natureza os dotou? E por que a uma raça eleita? Eles que erram em caminhos sem início e sem fim, sem território e sem governo senão o do próprio clã, e carregam a força da sua cultura sobrevivente desde o princípio dos tempos, e a carga das perseguições até o fim dos tempos e do nada, como povo que luta rijo e em silêncio, para continuar sendo sempre, e honrando o que sempre foi: somente ciganos, zíngaros, jitanos, rons e calões - de onde herdaram essa sabedoria? Uma cigana me disse que caminhar é costume, e que a vida nas palmas das mãos, foi o Senhor quem botou.
Cada crença tem sua lenda para explicar a vida, sua mitologia. São lendas que encantam, até pela ingenuidade. Para começar pela minha religião, em cujo Deus eu creio acima de tudo: um deus que deu vida a tudo durante seis dias, e no sétimo dia descansou; deuses que dão vida e presidem aos animais e aos homens; deusas cujos seios deram vida aos rios; deuses que se apaixonaram e se acasalaram com mortais, e deram vida a gigantes e heróis. Seus crentes apostam nessas suas lendas, e em outras.
Lá embaixo a vida está pulsando na inexplicabilidade azul e espumosa daquele mar que me comove e sereniza, tanto quanto pulsa ininterrupto na barriga imensa daquela mulher simplória que vai passando, quase arrastando os passos cuidadosos, porque está prestes a trazer à luz a vida que seu sangue gerou na divisão da sua própria vida, no mais belo e intrigante de todos os mistérios.
É! Como eu disse: A vida está caminhando lá fora. E o que é que eu estou fazendo aqui sentada, junto a este telefone que não toca?





Gláucia Lemos é autora de O riso da raposa entre outros títulos.
A foto é de Iroma Baby retirada do Flickr.

POEMAS DO MÊS


COTIDIANO

Gláucia Lemos

Pendura a roupa no varal
que seca.
Pendura a dor na corda do perdão.
Pendura o sonho que te faz poeta
que sonho é fogo que se ateia em vão.
Pendura o quadro na parede certa.
Pendura o amor no arame do passado.
E pendura este desejo que te seca,
que ele te sabe ao pão
mais amargado.
Pendura a chave numa argola aberta
Pendura a luta ao prego do cansaço.
E pendura essa fé que te alicerça,
que nada vale que lhe vás
ao encalço.
Pendura a toalha no cabide, reta.
Pendura o tempo em torno do vinho
e pendura o beijo em boca predileta,
que tudo acaba,
e acabarás sozinho.



JARDIM

Gláucia Lemos


As órbitas róseas das begônias fechadas
viajam pelos olhos dos lagartos
e os braços histéricos
das acácias
choram, todo o verão,
suas lágrimas de ouro.

Eróticos antúrios,
fálicos, eretos,
desafiam o pudor
da pudica mulher
que espreita da janela.



Gláucia Lemos é ficcionista bastante premiada, mas é poeta também!
A foto é de kkdraga retirada do Flickr.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

TREM DE FERRO



Gláucia Lemos



É uma saudade boba a minha nostalgia do trem de ferro – eu que nem viajei muito.
Se pudesse alimentar um hobby caro, certamente colecionaria pinturas e desenhos, e faria fotografias, de trens de ferro. Teria Almiro Borges na minha sala, teria O trem sob a neve, de Monet, e quantos mais tivesse possibilidade, todos com sincera reverência.
Sinto um élan de vida no trem de ferro. O poder das rodas mastigando os trilhos, extensos trilhos, infindáveis trilhos condutores dos viajantes de todas essas terras de Deus. O apito, um gemido de partida que nos penetra fugidio como um suspiro que escapa forte, e vai-se esvaecendo até morrer suave, em derradeiro soluço, fiapo de som. Outras vezes, o mesmo apito é o álacre aviso de chegada, clarinada de anunciação de regresso, véspera de abraço quente, beijo misturado a risos, café na mesa, lençol lavado cheiroso a ervas, e novas histórias a serem contadas. Por onde andou, o que trouxe? Poeiras, velhas cercas enegrecidas margeando a ferrovia. E matagais, porteiras e rebanhos. E pontes oscilando por cima dos magros rios, bebedouros de animais. E vilas de gentes famintas e reclusas com seus calcanhares rachados, que têm sua festa só quando passa o trem rangendo os ferros, apressadamente, compridamente nos seus comboios, e elas acenam às janelas, aos rostos anônimos, acenam, acenando a ninguém. Que de ninguém sabem, e, para aqueles rostos nas janelas, também elas são ninguém.
Não sei que lembranças me vêm do trem de ferro. Imagem evocativa do nada inflama a emoção sem motivo, sentimento vazio, pois nunca vivi aquelas vilas, não conheci a alegria de esperar o abraço dos que chegam nos seus vagões carregados da ansiedade do regresso. Nunca padeci a ausência de quem se distanciasse no apito sofrido, agudo e fugidio da partida do trem, para sofrer a angústia do espaço alongado. No entanto, toca-me por ele melancolia estranha e suave saudade. E um magoado desejo de seguir também para algum destino que não sei, mas que insistente me chama.




Esta crônica foi publicada na coluna Ultraleve do jornal A TARDE em 5.3.2002 e republicada a pedido alguns dias depois. A foto é de bambuum retirada do Flickr.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

FASCINAÇÃO


Gerana Damulakis

Mas não se pode desejar a morte de todo mundo nem, em última instância, despovoar o planeta para gozar
uma liberdade de outra maneira inconcebível.
Albert Camus, em A Queda

A fantasia de matar as pessoas a quem se ama, pois que com a morte o fim da relação é justificado, aceito, é culpa do divino, não nossa, não de nossos erros ou traições; a fantasia desta morte do amado, coroando ainda por cima um relacionamento que não terminou, foi apenas “até que a morte nos separe”; a fantasia do fim imutável de todos nós que chegou impune e encerrou tudo era, na verdade, mais do que uma fantasia, era um desejo que habitava na sua mente.
Às vezes, ela sentia vontade de matá-lo para ir viver de outra forma, para reconstruir sua vida sem ter que, antes, destruí-la com um processo de separação dolorosa e, pior, sem um motivo aparente, por culpa tão somente do tédio. Faltava coragem.
Não era assim que deveria ser. O então pensamento da morte dele foi dominando-a. Ela não tecia formas de execução, queria que se desse naturalmente, morresse de morte natural. E aquilo foi virando uma obsessão, depois fascinação. Sonho preferido: todo dia, toda noite. Quem sabe o pensamente pudesse atrair aquela morte?
O que ninguém esperava acabou acontecendo. Depois de haver sido promovido a um cargo de chefia de grande responsabilidade de decisões, Haroldo debruçou-se sobre mil papéis, procurou mil soluções para problemas agora sob sua administração, fumou seis maços de cigarros por dia durante uma semana, teve um ataque cardíaco fulminante e morreu bem naturalmente, apesar de seus 38 anos de idade.
Seguramente todo mundo vai pensar na vida maravilhosa que Ivone levará, realizada sua fantasia e, tendo pela frente, além da vida livre, uma vida farta, farta de dinheiro, de sonhos já tão bem sonhados e, acima de tudo, de tempo, muito tempo sobrando para fazer o que quisesse. Eu mesma imaginei que ela sairia num cruzeiro pelo Caribe ou pelas ilhas gregas, não sem antes produzir um belíssimo guarda-roupa todo novo, cheio de vestidos de seda, aquele pretinho chique para noitadas sensuais, jeans de griffes famosas para passeios matinais, jóias finas e perfumes franceses. Cogitei também que, imediatamente, ela mudaria o visual apagado, clareando o cabelo em pelo menos dois tons, fazendo um bom peeling no rosto para ganhar luminosidade e, então, aí sim, ela partiria para o restante, e que restante a aguardava... Pensei nas tantas aventuras que ela teria: homens belos e descartáveis, champagne ao luar e rosas no café da manhã, ou coisa mais esnobe do tipo “almoçar em Manhattan e jantar em Paris”.
Para tristeza minha e sua, nada disto aconteceu. Ivone apagou-se completamente, remoeu-se em remorsos, deu adeus a todos os interesses da vida terrena e vivia parecendo que estava em outra galáxia. Ela ficou tão certa de que era culpada, ou melhor, de que seus pensamentos eram os culpados que, por conta disso, fizemos vários testes relativos à força de sua mente. Comprovei para nós duas que, se nem mesmo uma colher ela conseguia entortar com o poder mental ou, ao menos, parar os ponteiros de um relógio qualquer, como poderia ter atraído algo tão mais forte quanto a morte? Nunca!
Mas tudo isso tampouco adiantou. A coitada seguia seus dias mergulhada em tristeza profunda. Dava pena. Seria saudade dele? Penso que não. Mais provável que fosse saudade da própria fascinação mórbida que viveu por anos, saudade daquele desejo alimentado, bem fermentado no dia após dia, saudade do sonho que não tinha mais serventia. Ela estava acostumada demais com o modo de pensar tão obsessivo. Fez falta a necessidade de pensar com afinco no anseio pela morte dele.
O caso, então, seria uma boa terapia, mas ainda assim isto levaria anos, consumiria uma pequena fortuna e, talvez, por fim, acabasse por convencê-la de que ela era uma assassina enrustida e o melhor mesmo, o certo, seria dar vazão a semelhantes instintos. Temi que tudo se passasse desse modo e Ivone precisasse sair matando gente por aí a fim de realizar o ego ou o superego, sabe-se lá.
Resolvi levá-la para minha casa, deixá-la uns tempos comigo, até para vigiá-la, se fosse o caso, porque tive medo de algum gesto suicida, tal era seu estado de depressão permanente e imutável com o passar dos meses, dos anos. E três anos se passaram desde que Haroldo se foi. Com o tempo todas as sensações tendem a mudar, mas não com Ivone. Continuava igual, completamente apática.
Numa dessas reuniões pequenas, quando costumo chamar poucos amigos, consegui convencê-la a aparecer. Ela prometeu que diria ao menos um “alô” para o pessoal. Uma amiga veio trazendo um antigo colega de faculdade que eu não encontrava há muitos anos. Ele era a cara de Haroldo!
Garanto que todo mundo já previu o que vem em seguida. Quando Ivone apareceu para dar o “alô” prometido, eis que vê o homem e quase desmaia. Não desmaiou, no entanto. Ficou do lado dele a noite inteira, totalmente encantada. A coisa toda aconteceu de modo tão rápido e recíproco que, em poucos meses, tinham se casado.
Ivone não estava radiante, nem era a imagem da alegria que eu imaginei que ela seria por ocasião da morte de Haroldo. Também não era a personificação da apatia que a dominara por três anos. Ela estava simples e exatamente igual, a mesma Ivone dos tempos de esposa de Haroldo. Vi nos olhos dela o brilho da fascinação de outrora. Eu olhava para ele e revia Haroldo. Tão parecidos, o mesmo jeito, personalidade e físico. Tudo se repetia. Parecia que eu assistia a uma reprise.
Pensei muito e acho que a melhor conclusão é convencer-me de que Ivone era feliz e não sabia ao lado de Haroldo e, agora, ao lado de quem, para ela, é a “reencarnação” dele, Haroldo. Mas ouso incluir aqui, que ela é feliz ao lado da sua fascinação mórbida. Daí comecei a contar os dias do novo Haroldo.



“Fascinação” ganhou o prêmio País do Carnaval no Concurso de Contos Jorge Amado da Universidade do Sudoeste da Bahia.

UMA ORQUÍDEA NA CHUVA





Gláucia Lemos


Uma velha amiga, de passagem pela cidade, fez-me uma visita. Na despedida, apanhou do carro, onde a deixara ao chegar, um presente especial. Uma bela orquídea branca de haste delgada, elegante, realmente rara. Demorei-me com ela nas mãos, tentando protegê-la dos chuviscos que começavam a cair em grossos pingos, até que a chuva desabou e a visita apressou-se em partir.
Tínhamos acabado de falar em você, por isso foi inevitável a associação entre você e o presente que recebi. Ambos valiosos e raríssimos. É verdade que falamos em você sem propósito. Como se fala de alguém que se conheceu há muito tempo, a quem se esteve ligado por um vínculo antigo. Desses liames mornos das amizades inconseqüentes. Assim ela me falou de você. Isto é, eu perguntei notícias. Assim, à toa, só porque ela mora na sua cidade e é uma amiga comum. Disse-me que o tempo lhe deixou suas marcas. É natural que nessas décadas de ausência você tenha ficado muito diferente. Não imagino como esteja agora. Só consigo vê-lo revendo-o no registro da memória. Eu lhe mandei um abraço. Um abraço, pobre amigo, pode ser um cumprimento insignificante, porque abraço é a maneira mais comum de se externar estima. Extensa gama da afetividade, passando pela afeição, vai até ao incendiário abraço da paixão. É muito longo o elenco de sentimentos que passam pelo abraço. Vencidas dezenas de anos de afastamento, um abraço pode ter também um calor diferente. O calor do ainda lembrado, ou do nunca esquecido. Pode ser uma página de álbum de recordações.
Muita coisa é macerada nos silêncios das distâncias e, quando acordada desses silêncios, uma pergunta descerra a urna escondida sob o pó dos tempos. A verdade antiga ainda aflora e ainda se percebe que há vida no que fora vida há tempos idos. Ainda pulsa em juventude e graça o que o tempo haveria de ter tornado envelhecido e triste. Insisto em conservar a memória do seu rosto alegre e jovial, do brilho inflamado na vibração dos seus olhos que nunca estavam em gris. É assim que ainda quero recordá-lo, como o via naquela inútil tecedura de projetos. Braçadas de náufragos sem porto à vista. Isso nós já o sabíamos. Não tínhamos cais nem porto de chegada. Nadávamos para o nada. Mas nadávamos porque era inevitável. Com a nossa inútil alegria. Recuso-me a imaginá-lo alquebrado e decadente.
Disse-me que você não foi feliz. Pergunte-me se fui, pobre amigo, pergunte-me se fui. Ninguém conhece o que seria falar de um para o outro, nenhum de nós o confidenciaria a quem quer que fosse, por isso só mesmo em um falar sem propósito chegávamos a saber de nós. Não que nos envergonhássemos, por que assim haveria de ser? Sim, há os outros, os puros, os retos, os incorruptíveis, os que supõem acreditar que nunca escorregariam do traço que se propuseram obedecer riscado no chão, esses nos apontariam o dedo da acusação. Até que em uma das traiçoeiras esquinas da vida se reconhecessem semelhantes a nós. Eu nunca me sentiria culpada, nem você. Porque nos sabemos como ninguém. Só nós nos sabemos.
Lembra-se do que lhe falei naquela primeira carta após o meu regresso? Primeira e única, não me recordo de lhe ter escrito outras vezes, olhe lá se eu poderia ... Naquela carta lhe disse: Não me sinto culpada. Teremos culpa, eu ou você, de termos nascido para um mundo hipócrita? Os sentimentos direcionam-se espontaneamente sem que as nossas vontades os dirijam. Se voluntários, seríamos culpados? De que culpa nos podem acusar? Sejamos justos: nos culpariam por sermos um homem e uma mulher. É esse o nosso crime.
No entanto, há outras coisas no plano de fundo, há as convenções, há os compromissos. Somos fios de um novelo que começou a se desenrolar antes de nós e continuará a se desenrolar depois de nós. Não somos a ponta do novelo, não o iniciamos, por isso carregamos os nós que foram atados antes do nosso advento, e nunca desenrolaremos os que vierem depois. E entre os nós pregressos, há aquele que é maior que uma chaga na sua consciência. Na minha, menos, é só mais uma convenção, na tábua da lei da hipocrisia. Mas na sua, pobre amigo... Lembra-se? Eu lhe disse isso. Mandei-lhe aquela carta por Elisa, e você, cheio de escrúpulos por mim, pediu que ela mesma a trouxesse de volta e a destruísse, porque nela eu lhe pedia que a queimasse por cuidados com você. Como seria tão imenso o meu crime se ela caísse em mãos impróprias. Você sabia como eu seria crucificada. Elisa, a boa Elisa, trouxe-a de volta e me entregou com o seu recado: a frase afirmativa que me fez sorrir e cantar e dançar na frente dela e depois por muitos dias e noites, repeti a mesma frase para mim mesma. Eu lhe pedira qualquer frase afirmativa, se eu ainda fosse a mesma no seu sentimento. Ou negativa, se já me estivesse esquecendo. Elisa me disse, ignorando o sentido: mandou lhe dizer que está bem e que virá aqui qualquer dia. Eu sabia que você não viria, como poderia? Mas você não sabe que naquela tarde me fez renascer e, no tédio com que eu convivia, abriu um intervalo, iluminou uma sala e nela pôs um solo de sax-tenor que ecoou por muito tempo.
Sabe, pobre amigo, agora está chovendo muito. Todo julho chove muito e é nessas tardes que aumenta de intensidade um desejo de retorno, nem sei bem se é retorno, mas em todo julho, essas águas e ventanias me fazem padecer dores e tristezas. Assim, com certeza porque ontem você esteve tão presente, a chuva desta tarde é ainda mais doída. Traz-me um toque daquela saudade, daquela mesma. Era tanta saudade, era tanta, que uma dor física se impunha no espaço de todo o meu corpo, como se sentir a sua ausência fosse oprimindo o meu peito e obstruindo as minhas narinas e sufocando a garganta. E, não conseguindo respirar, o coração acelerava e uma agonia entrava no meu cérebro desorganizando o meu entendimento. Nunca senti tanta saudade quanto aquelas que sentia de você. Nunca. Nem antes, nem depois. Depois, nós nos vimos outras vezes naquelas mesmas circunstâncias. Teríamos outras? Mas nós sabíamos que ainda era tanto o que nos guiava, que algumas vezes quase nos traímos. A verdade estava em nossas faces, em nossos olhos estava a verdade tão simples, tão nua, que ainda hoje eu me pergunto por que somos condenados a certas renúncias. Por que nos rasgamos de nós mesmos e seguimos chutando nossas vísceras inúteis. Ainda hoje eu me pergunto.
Assim nos afastamos sem nos separarmos. Eu sei que não é preciso estar perto para se estar junto. Assim foi conosco, pobre amigo.
Ontem, tantas décadas depois, aquela amiga, assim, sem propósito, inocentemente, falou tanto de você. Notícias recentes e tristes de uma história antiga e inacabada, sem ter noção do quanto abria de nós. Em seguida às palavras, aquela orquídea ao chegar às minhas mãos tinha que ser associada a você. Rara, elegante, única talvez. Parecida com você. Mas tinha que começar a chover quando ela entrou no carro, e rapidamente engrossar o aguaceiro assim que ela partia, e choveu tão copiosamente que a ventania arrebatou a haste da flor, antes que eu deixasse a calçada, e ela se foi aos emboléus da chuva e do vento, e eu a perdi na enxurrada da sarjeta.
Como nos perdemos nos temporais que precisamos vencer nos nossos necessários silêncios.
Agora, tantas décadas passadas, retomo o mesmo tempo como flashes tão nítidos, e me convenço de que, ainda assim, ainda quando a renúncia se impõe, vale mais a pena permanecer amando, que tentar esquecer. Ainda quando o vendaval de uma chuva de julho, ou das outras muitas chuvas da existência, arrebata e leva a nossa orquídea para o nunca mais.





Gláucia Lemos é ficcionista com mais de duas dezenas de títulos e vários prêmios. Com O riso da raposa (Bibliex, 1988) recebeu o prêmio da Academia de Letras da Bahia. A foto é de Daniboy, retirada do Flickr.

O LIVRO DE UM HOMEM SÓ



Goulart Gomes



Georges Perec, o premiado escritor francês falecido prematuramente, aos 46 anos de idade, em 1982, escreveu uma das obras mais densas e instigantes da literatura universal: Um homem que dorme (Nova Fronteira, 1988). Obra esgotada, encontrada apenas em sebos, narra a história de um único personagem, de nome ignorado, um jovem de 25 anos, prostrado num total estado de ataraxia. O livro utiliza a voz narrativa na segunda pessoa – você – o que proporciona uma ainda maior simbiose entre o leitor e o personagem. Contudo, não é um livro para ser lido por quem é propenso à depressão.

Ao longo das horas, dos dias, das semanas, das estações, você se desprende de tudo, desliga-se de tudo. Descobre, às vezes, quase com uma espécie de embriaguez, que você é livre, que nada lhe pesa, nada lhe agrada nem desagrada.

Mas essa liberdade não se reflete em felicidade. Notadamente influenciado pelo pensamento existencialista, o jovem encontra-se em tal estado de lassidão que nada o comove. Um homem que acaba por estar desprovido de qualquer sentimento, nem alegre ou triste, sem nem mesmo ser um poeta. Um homem que não vive, um sonâmbulo, transeunte morto-vivo nas ruas de uma das mais vivas cidades do mundo.

Encontra-se, nesta vida, sem usura e sem outro estremecimento além dos instantes suspensos provocados pelas cartas ou certos ruídos, certos espetáculos que você concede a si mesmo, uma felicidade quase perfeita, fascinante, às vezes cheia de emoções novas. Você experimenta um repouso total, e constantemente poupado, protegido. Vive numa bem-aventurada digressão, num vazio cheio de promessas e do qual você nada espera.

E assim ele passa todos os seus dias: como um eterno flâneur, perambulando sem tino e sem destino pelas ruas de Paris, pelos museus, pelos cinemas, pelos cafés, sem outra função que não a de testemunha ocular isenta de qualquer envolvimento com o que lhe cerca.

Você é invisível, límpido, transparente. Você não existe mais: a sucessão das horas, dos dias, a mudança das estações, o escoamento do tempo, você sobrevive, sem alegrias e sem tristeza, sem futuro e sem passado, assim, simplesmente, evidentemente, como uma gota d’água que pinga na torneira de um patamar, como seis pés de meia de molho numa bacia de matéria plástica rosa, como uma mosca ou como uma ostra, como uma vaca, como um caracol, como uma criança ou como um velho, como um rato.

No budismo e no hinduísmo existe o conceito de Nirvana, estado consciencial em que o praticante libera-se do apego dos sentidos, da ilusão do mundo (Maya). Mas esse estado conduz o indivíduo a uma identificação maior com o Universo, a Divindade ou consigo mesmo. E isso o leva a um movimento de equilibração, para utilizar um termo piagetiano, ou seja, o equilíbrio na ação, o movimento no repouso, não à estagnação total, não ao egocentrismo, mas à sensação de pertencimento a tudo que lhe cerca.

Quando escrevi meu conto MALÁRIA (disponível no site www.goulartgomes.com), ainda não tinha lido o romance de Perec. Hoje, após a sua leitura, percebo o conto como um prolongamento, um adendo, não à história mas à condição de imobilidade do personagem, com um final “mais ou menos” feliz.

Nesse livro, que deve ser lido de um só fôlego, de uma “sentada”, Perec conseguiu se antecipar a este século XXI, de modernidade tardia, sem a herança de referenciais ou heróis, demonstrando o que seria de um jovem sem “norte”: ao mesmo tempo em que é despossuído de qualquer ideologia, crença, fé, religião, também não se encontra emaranhado entre griffes, realities shows, drogas, álcool e músicas de nenhuma qualidade. Muito mais uma árvore que um ser humano, uma mistura híbrida de planta e de fantasma, como diria Zaratustra. Um livro que nos provoca uma profunda reflexão sobre o que é a Vida e o quanto estamos despertos para vivê-la com intensidade.


Salvador, 21 de janeiro de 2008.

domingo, 20 de janeiro de 2008

O QUE SE SABE DOS ESCRITORES DESTA TERRA?



O texto a seguir é um resumo de uma palestra proferida pela escritora Gláucia Lemos por ocasião de um café literário. O tema foi desenvolvido pela ficcionista, que discorreu sobre demais aspectos, tendo como centro a literatura.
Gláucia Lemos


Sabemos que há um certo glamour envolvendo algumas atividades, especialmente atividades artísticas, em todas as suas manifestações. Obviamente também em relação aos operários da literatura. Um glamour que nos coloca em situação distinta, na qual somos olhados com alguma curiosidade. Quando alguém sabe que somos escritores vem a pergunta imediata: Qual é O seu livro? Aí acontece o primeiro embaraço: se já publicamos alguns livros, ficamos constrangidos. Que faremos? Citaremos um dos títulos? Ou confessaremos já ter um número mais avultado? Aí dizemos, um pouco envergonhados, como se fosse uma confissão: Tenho alguns publicados, e mencionamos o número. Nesse ponto corremos o risco de ser olhados com um olhar de descrença, como se parecêssemos incapazes de tal proeza. Como se pensassem que se tivéssemos chegado a tal ponto, o certo é que não estaríamos mais aqui, dando sopa “baratamente” pelas ruas da província. Escritor que se preza está morando é no coração da cultura, no eixo Rio-São Paulo., que nem João Ubaldo, Antônio Torres, Hélio Pólvora (que retornou) João Carlos Teixeira Gomes, e alguns outros. Às vezes até perguntam se somos mesmo daqui da Bahia, de Salvador... Que coisa! para baiano dar certo na literatura tem que ir embora? Ou então, se está dando certo na Literatura, tem que ser de outras terras e andar aqui por acaso? Então a gente quase pede desculpas por ser um escritor e por estar conquistando com êxito o seu terreno; é como se estivéssemos expondo uma coisa muito íntima. Há ocasiões em que o "normal " que nos inquire diz algo alentador, como : Já ouvi o seu nome! Gentileza ou não, essa frase melhora a situação, quem sabe, talvez tenha lido em algum texto no jornal... Ruim mesmo é quando pergunta, e é muito freqüente: Sai muito caro para publicar um livro? Aí é a hora do embaraço para explicar que não pago um centavo, pelo contrário, recebo. As editoras são que me pagam meus direitos periodicamente. Essa parte, confesso, me deixa cheia de pudor, ante a expressão de surpresa do interlocutor. Não sei se expressa incredulidade... Parece que estou contando que acertei a mega sena.
Tudo isso de que estou falando tem um objetivo: registrar como andam em baixa os conhecimentos do público em geral, quanto ao escritor da terra, quanto à literatura que se faz aqui, e, modéstia à parte, a boa literatura que temos na Bahia, não somente criada pelos nossos medalhões por demais conhecidos, e reconhecidos, mas também pelos que ainda estão quebrando paredes para instalar vitrine onde colocar seu trabalho, e pelos que, ao lado da seriedade da sua produção, têm contado com a ajuda da boa sorte, entre os quais modestamente me coloco.
Fazendo esses comentários, recordo um episódio ocorrido há uns poucos anos atrás. Chegando à portaria do meu prédio um pacote de exemplares, o reparte de uma nova edição de um dos meus livros, o que recebo conforme contrato, o porteiro curioso perguntou para minha empregada o que havia naquele pacote. Ao saber que eram livros escritos por mim, exclamou: Taí, tá podre de rica fazendo essas besteiras... Coitado... errou duas vezes. Nem estou podre de rica, nem estou fazendo besteiras. Demos aí o desconto do nível de informação do autor do comentário.
Há ainda outra faceta que o escritor enfrenta que é a pecha de sermos diferentes do comum. Temos manias, vemos as coisas por outros ângulos, somos hipocondríacos, somos PMD, somatizamos nossas emoções, enfim, já até assumimos essas coisas, rimos delas e acho que algumas têm razão de ser. Essas facetas são consideradas até mesmo pelos nossos familiares. Não sei se acontece com todos, mas sei que, de modo geral somos considerados um pouco desalinhados da conduta geral, isso é da conduta dos normais. Na minha casa, meus filhos dizem que vejo coisas e situações de um modo diferente do modo das outras pessoas. E sempre que vou ensinar alguém como ir a determinado lugar, eles correm em socorro à vítima, e ensinam eles próprios, porque eu sempre indico o caminho inverso com a melhor das intenções. Deus me livre de prejudicar quem quer que seja. É só porque sou mesmo desorientada quanto ao espaço. Meu marido, quando vivia, nunca me deixou dirigir carro por causa disso. Aí ele morreu e eu fiquei de taxi. Talvez ele não confiasse que eu acertasse a voltar para casa. Mas será que tem a ver com a minha condição de escritora? Ou será que sou escritora porque sou assim, meio fora do mundo? Não importa. Todos nós temos direito de ter nossas características, embora algumas vezes elas incomodem. O mundo seria muito tedioso se todos fossem muito equilibrados. Contando que as nossas idiossincrasias sejam naturais, e não estejamos a fazer gênero para aparecer.
Apesar desses senões, eu jamais descartaria o dom de fantasiar com que a natureza me dotou. E não é só a questão da fantasia, da criação de uma história, dos personagens, do enredo, é muito, é muitíssimo mais, é a paixão pelo trabalho com a palavra. Essa prerrogativa que Deus, ou a natureza, ou como queiramos chamar, doou ao ser humano, é o que de mais forte possuímos, além da vida. A palavra é a liberdade do pensamento, feita concretitude. É a possibilidade do "não-ser "do pensamento transformar-se em “ser”. Através da palavra a abstração da emoção ganha forma e se torna concreta. E essa força pode ser perigosa, tanto quanto pode ser divinizada. Daí a magia de trabalhá-la tornar-se um desafio para o escritor. Na faculdade de Direito eu aprendi o valor e a importância do emprego da palavra exata, para o exercício da profissão na defesa da lei, na qual uma ambigüidade pode significar a derrota em uma causa. Na literatura aprendi como utilizar a ambigüidade da palavra em proveito de um belo texto. O que se torna muito mais gratificante de ser exercitado.
As possibilidades da palavra na sintaxe a partir da sonoridade, no ritmo da sentença experimentando com a tonicidade das sílabas, nos jogos que a homonímia oferece, na elegância que os sinônimos bem postos nos possibilitam. Essa oficina, que alguns escritores dizem ser de cansativa transpiração, se me afigura como as flores a serem postas nos jarros, depois da sala arrumada, e como a decoração da torta, depois de tirada do forno, e como o perfume que vaporizamos no corpo depois que estamos prontas para a festa. Sem essa terminação, sem o verdadeiro trabalho literário, a história, por mais bem engendrada, por mais criativa, não é senão uma narrativa insossa. Não ponho fé nessa afirmativa de transpiração cansativa. A mim, se tem revelado trabalho, sim, trabalho de responsabilidade, sim, mas o trabalho prazeroso, mágico, um trabalho de descobertas para a perfeição do texto, até o máximo de perfeição que possamos atingir dentro da nossa limitação humana. Já que a criação do enredo, o desenvolvimento do tema, isso brota sem esforço e independente da vontade do autor, como rebenta o broto da amêndoa da semente, por conta de criatividade. A história surge espontânea. A oficina do texto é voluntária, dela temos consciência e a essa tarefa nos dispomos, desafiando os deuses que nos fizeram mortais, conforme entende Rollo May no seu ensaio "A coragem de Criar ." . Porque é através dela, da conseqüência da aplicação apaixonada ao trabalho da palavra que alcançamos a imortalidade. Com todo o respeito pelas Academias, é a palavra a que nos dedicamos com paixão o que nos leva a vencer esse desafio e nos imortaliza.
Por isso é que, com os alguns senões e incompreensões que acarreta ser escritor, e com as muitas gratificações que tal nos proporciona, cabe aqui associação com um verso contido em " Dom de iludir ", de Caetano Velloso, que transcrevo na primeira página toda vez que abro um novo caderno. "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é’ O que no meu caso vem caber não só com a condição de escritora, como igualmente, com a minha condição de mulher.

sábado, 12 de janeiro de 2008

TOALHAS DE PRATOS



Gláucia Lemos


O inverno chegou, no entanto, ainda é maio. O vento carrega os chuviscos miúdos no rumo do Sul, como se os misturasse, e acaba compondo uma nuvem de tênue fumaça, ou um sopro muito leve de talco.
A mulher que vende toalhas de pratos tiradas da sacola de plástico, lá está encostada ao tronco do fícus, tentando abrigar-se sob a copa espalhada. Os galhos não a impedem de receber os pingos escorridos das folhas e os muitos chuviscos que escapam por entre a raquítica ramagem.
O braço esquerdo, magro e negro, suporta, enfiada, a sacola amarela, além de abraçar, apertado ao tronco, um pote de vidro de tampa vermelha, mal cheio de paçoca de amendoim.
No rosto riscado de rugas e amassado pelo tempo, os olhos miúdos têm a neutralidade de quem se deixa ser vivido pela rotina. São baços, piscantes, parecem esfumados, sem cor definida.
Quando o sinal vermelho se impõe ao motorista, ela se aproxima das janelas de vidro suspensas em duvidosa defesa, e oferece as toalhas: uma por dois, três por cinco. A voz é fraquinha, é qual um filete de água que sobrou no encanamento, logo que alguém desligou o registro. Mas caminha decidida, embora manqueje da perna esquerda, um pouco arqueada. Quase sempre retorna com a mesma toalha pendurada nos dedos.
Certo que não compensa, o comércio que faz. Mas sei que sua figura cotidiana integra a paisagem, e é ponto central na aquarela da praça.
Já a vi, a uns cem metros do ponto em que fica todos os dias, ao sol que descolore, cada vez mais, o lenço desbotado amarrado à cabeça, ou à chuva que encharca as flores desmaiadas do sempre mesmo lenço, e escorre entre as valas que o tempo escavou em suas faces escuras.
Freqüentemente tem uma sombrinha que vira ao avesso, quando o vento a pirraça. Às vezes, um casaco sem cor que, vestindo seus braços, ludibria a frieza.
Já a vi em um fim de tarde no ponto de ônibus, a cem metros da praça. Não olhei a bandeira, mas a vi subindo, sem rosto de triste, nem olhos de alegre, apenas subindo, a ocupar qualquer assento, com a sacola amarela pendente do braço, e o vidro de tampa vermelha colado a seu peito. Não sei aonde vai, talvez ela more em um barraco de encosta, das muitas encostas desta minha cidade.
Dia seguinte, vem novamente, seja verão de queimar a pele da gente que passa, seja inverno como este que se apressa neste maio há pouco nascido. Ela estará encostada ao tronco do fícus, tentando abrigar-se, sempre mancando, na direção do carro mais próximo, quando, no farol, a chama vermelha vem em seu socorro.
Não sei se tem filhos, não sei se tem netos, talvez engane meia dúzia de fomes com suas toalhas. Talvez complemente os trocados das mãos de alguma possível garota, mal chegada aos 12, que, na margem da BR, ofereça sua infância ao caminhoneiro que primeiro a aceite. Talvez, talvez... o que posso saber?
Só sei das toalhas de pratos na paisagem da praça.




Gláucia Lemos é poeta e ficcionista. Dentre dezenas, escreveu o premiado romance As chamas da memória (BDA, 1996).

Foto por street paparazzo, retirada do Flickr.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

SONETOS DE ESPELHO PARTIDO


Gerana Damulakis


O livro Espelho Partido (FUNCEB, 1996), de Aramis Ribeiro Costa, traz os sonetos escolhidos dentro de um tempo que parte de 1971, ou seja, poemas do autor muitíssimo jovem, que todavia não publicara seu primeiro livro - Quarto Escuro é de 1974 -, até 1996, quando o romancista e contista já contava com mais de uma dezena de títulos publicados.

Os sonetos que foram escolhidos aqui tratam dos olhos, espelhos da alma, como são conhecidos. Além da qualidade, suscitam interesse também pelo tema com tal tratamento poético, haja vista a quantidade de vezes que são reproduzidos nos blogs. Primeiramente o "Soneto dos Olhos Castanhos", para D. Angélica, e na seqüência, os sonetos para os olhos imaginados pelos leitores.


SONETO DOS OLHOS CASTANHOS

A minha Mãe

Nesses teus olhos de um castanho escuro
Vejo os meus próprios olhos refletidos
Silenciosos, quedos, comovidos
De se encontrarem em lugar tão puro.

E se por vezes tens olhar tão duro
Para os meus atos, quando irrefletidos
Em meus momentos tristes, deprimidos
É teu olhar suave que procuro.

São teus olhos castanhos mostruário
Dos sentimentos todos, teu fadário
Que nobremente guardas no teu peito.

E ao ver teus olhos, vejo, desse jeito
Meus próprios olhos tristes - espelhados
Mortos - nos teus olhos amortalhados.


SONETO DOS OLHOS AZUIS

São como dois azuis perdidos lagos
Teus lagos olhos, mansos olhos rasos
Puríssimos azuis, dos prantos vasos
Perdidos olhos claros como lagos.

Espelham os teus olhos mundos vagos
Lagos espelham sóis azuis, ocasos
Translúcidos azuis dos meus acasos
Teus raros olhos claros, olhos vagos.

Vagueiam sobre mim teus olhos caros
Claríssimos azuis teus olhos raros
Perdidos olhos calmos como lagos.

Espelhos que refletem mundos rasos
Espelham sentimentos que são vasos
Teus olhos tão azuis... azuis... e vagos.


SONETO DOS OLHOS VERDES

Esses teus olhos verdes, cor de mar,
São oceanos verdes de esperança
Onde as vagas, sem fim, do teu olhar
Brincam de amor, em rosto de criança.

Quando esses olhos verdes, a sonhar,
Fazem-se vagas, em brejeira dança,
Sinto a tristeza imensa de te amar
E ter-te sempre apenas em lembrança.

Esses teus olhos verdes, transparentes,
São lindas ondas verdes, envolventes,
A segredar paixão que não confessas...

E nessas ondas mansas ou revoltas,
Sobrenadando qual espumas soltas,
Vejo infinitos feitos de promessas...


SONETO DOS OLHOS NEGROS
Teus olhos negros, tristes e profundos
São dois misteriosos infinitos
Onde os meus olhos vão perder-se aflitos
De conhecer-te os teus secretos mundos!

E sempre que retornam oriundos
Desses teus olhos negros e malditos
Menos sabem meus olhos imperitos
Desses teus olhos pérfidos e fundos.

Teus olhos negros, belos e tristonhos
Eternos pesadelos dos meus sonhos
Mudos espelhos de um secreto abismo!

Ao ver-te os olhos negros, tão bonitos
Deixo os meus olhos nos teus olhos fitos
E nos mistérios dos teus olhos cismo...

EM FRENTE


Gerana Damulakis


Para o escritor Hélio Pólvora



Há Apolo e há Dioniso,
o homem olha os mitos
com fé e reza, ainda que
pareça ateu.

Agora, fechou as janelas:
Hélio brilhando lá fora,
não é Febo, ou Pan, nem
o próprio Zeus, mas
é poderoso e forte,
só que pouco adianta,
ele já fechou suas janelas.



Este poema é do livro Guardador de Mitos.
A foto traz os escritores, da esquerda para a direita: Aramis Ribeiro Costa, James Amado e Hélio Pólvora. Estávamos então na Fundação Casa de Jorge Amado, ao fundo estão as paredes forradas com as capas dos romances de Jorge em traduções pelo mundo.



terça-feira, 8 de janeiro de 2008

UM CENTÃO





Gerana Damulakis

Manuel Bandeira foi o primeiro poeta que li, não foi o primeiro que ouvi, pois que ouvia muitos poetas serem declamados (isto é outra história), mas Bandeira foi o primeiro que li. E me apaixonei não apenas pela poesia e, sim, pela literatura de um modo definitivo, vida afora. Como a poesia de Manuel Bandeira traz a emoção de forma tão intensa e me arrebata sem exceções, optei pelo poema intitulado “Antologia”. Trata-se de um centão.
Um centão é uma composição poética (ou musical) elaborada com versos de vários autores ou de apenas um autor, assim como diz o nome: “manta de retalhos”, que vem do latim “cento”. A origem do centão é greco-latina: o poeta de então clamava por poemas homéricos e virgilianos como ponto de partida para construção de seu centão. No caso de Bandeira, o poema “Antologia” é um centão com seus versos.
Certa noite, resolvi me dedicar ao centão e procurei a origem de verso por verso, todos pertencentes a poemas memoráveis de Manuel Bandeira. Primeiramente seria maravilhoso sentir “Antologia”, perfeito como se sua feitura não tivesse nada de uma “colcha de retalhos”: fruto da magia do mestre.
Vou numerar os versos para facilitar a decifração do lugar original de cada um deles.

ANTOLOGIA

1 A vida
2 Não vale a pena e a dor de ser vivida.
3 Os corpos se entendem mas as almas não.
4 A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

5 Vou-me embora p’ra Pasárgada!
6 Aqui não sou feliz.
7 Quero esquecer tudo:
8 — A dor de ser homem...
9 Este anseio infinito e vão
10 De possuir o que me possui.
11 Quero descansar
12 Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
13 Na vida inteira que podia ter sido e que não foi.
1 4Quero descansar.
15 Morrer.
16 Morrer de corpo e alma.
17 Completamente.
18 (Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)

19 Quando a Indesejada das gentes chegar
20 Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
21 A mesa posta,
22 Com cada coisa em seu lugar.

Versos 1 e 2: do “Soneto Inglês”.
Verso 3: de “Arte de amar”.
Verso 4:, de “Pneumotórax”.
Versos 5 e 6: de “Vou-me embora p’ra Pasárgada”.
Verso 7: de “Cantiga”.
Verso 8: de “Presepe”.
Versos 9 e 10: de “Resposta a Vinícius”.
Verso 11: de “Cantiga”.
Verso 12: de “Poema só para Jaime Ovalle”.
Verso 13: de “Pneumotórax”.
Verso 14: de “Cantiga”.
Versos 15, 16 e 17: de “A morte absoluta”.
Verso 18: de “Lua nova”.
Versos 19, 20, 21 e 22: de “Consoada”.

SONETO INGLÊS nº 2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
.................................................................................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão
direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

CANTIGA
Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.
Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.
Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.

PRESEPE
................
Mais do que tudo isso
O amedrontaria
A dor de ser homem,
O horror de ser homem,
— Esse bicho estranho
Que desarrazoa
.......................

RESPOSTA A VINÍCIUS

Poeta sou; pai, pouco; irmão, mais.
Lúcido, sim; eleito, não.
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.

Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar, feliz
— Ah feliz como jamais fui! —
Arrancando do coração
— Arrancando pela raiz —
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui
.

POEMA SÓ PARAJAIME OVALLE
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

LUA NOVA

Meu novo quarto
Virado para o nascente:
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.

Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mênstruo incruento das madrugadas.

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.

Hei de aprender com ele
A partir de uma vez-
Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- Esse sol da demência
Vaga e noctâmbula.
O que eu mais quero,
O de que preciso
É de lua nova.

CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Aí estão os versos do centão, alguns poemas não foram reproduzidos integralmente por conta do tamanho e “Vou-me embora p’ra Pasárgada”, por ser muito conhecido e facilmente identificável.
Ressalto que Bandeira morreu em 1968; há exatos 40 anos em outubro deste, portanto. A melhor homenagem é sempre a leitura de seus poemas.
Como disse Drummond:
“Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira,teu nome é para nós, Manuel, bandeira”.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

MAIS QUE SEMPRE



Gerana Damulakis


Luís Antonio Cajazeira Ramos (foto) resolveu formar uma antologia de seus próprios poemas e intitulou o volume Mais que sempre. Quando colocou o autógrafo no meu exemplar, deixou estas palavras: "Gerana, a primeira pessoa a reagir com palavra escrita sobre minha palavra escrita. Isto é muito, é sempre, é mais que sempre". Fez um jogo com o título e fez um afago no meu ego. Seu primeiro livro foi Fiat Breu (Edições Papel em Branco, 1996), daí vem Como se (FUNCEB, 1999), do qual retiro o soneto "Punhal", cortante (sem trocadilhos), que faz a platéia estremecer quando dito pelo autor em voz alta, tal como ocorreu numa Bienal do Livro, aqui em Salvador, no Café Literário que ali foi implantado. Em 2002, Luís Antonio publicou Temporal temporal, pela Relume Dumará, um livro que antes de ser editado já era um vencedor: ganhou o Prêmio Gregório de Mattos 2000 da Academia de Letras da Bahia e foi menção honrosa no Cruz e Sousa 1998 da Fundação Catarinense de Cultura.
Há vários poemas de Luís que poderiam servir como amostra de sua poesia, seja pela força, seja pelo espanto que causam, seja pela beleza em si. Seguem o supracitado "Punhal" (pena que a voz dele não pode ir junto) e "Sonâmbula", dedicado a Gerana (diz ele que logo após a feitura, leu para mim pelo telefone - ele tem mania de fazer isso - e eu adorei; mas há tantos que eu admiro igualmente).


SONÂMBULA

A Gerana Damulakis

A vida passava, o amor não chegava.
Aguardava (a esperança a guardava)
o que não acontecia, quem não vinha.

Desenhava a felicidade na fumaça das horas,
debruçada sobre o parapeito dos sonhos,
vendo a todos transeuntes do deserto,
sob a sacada das emoções perdidas.

Improvável Penélope, tecia ilusões de partida
para confins imaginários sob o lençol diáfano,
manchado do sangue virgem de seus desejos,
satisfeitos na solidão de núpcias de nuvem.

A vida passava, a dor não chegava
ao pesar da vigília, a que o engano negava
acordar os galos e deitar os lampiões...
E beladormecia na eternidade em que se perdera.

E não se sabe que bruxa, que fada,
que fado a vida reservara a seu destino
de Cinderela das vertigens.


PUNHAL

Não quero ver, em teu olhar de vítima,
o viés de amor que me pretende algoz
de um sofrimento vão que ignoro. Atroz,
destruo teu desejo com desídia.

Meu dia tinge em negro a noite branca
do teu sonho, enlutando-o em solidão.
Ah esperança de que eu te fosse a pomba
que apazigua a dor... Tola ilusão.

Nego-te os arrepios de meus dedos
provocantes e táteis em teus pêlos
e não faço as carícias que precisas.

Não digo nada além de meu silêncio.
Nem ao menos desprezo teu tormento,
pois sigo estátua fria, sem desdita.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

NÃO FAÇO PARTE DO PACOTE

Gláucia Lemos

Há coisas que, provavelmente por tradição, se tornaram comuns a quase todas as pessoas. Parece que um dia um toque de reunir determina: todo mundo tem que ter celular; toda mulher tem que ficar loira depois dos 50; toda pessoa culta tem que endeusar Chaplin e tem que ter lido Proust (mesmo quem não endeusa e quem não leu, afirma que sim!). Nos meus tempos de universidade, todo jovem tinha que ser de esquerda, tinha que estar “conscientizado”. A partir do século XX, toda mulher tem que ter braços e pernas iguais a cambitos, e peitos de silicone. Em todos os tempos todo mundo tem tido um diário no qual anota seus feitos, defeitos e mal-feitos para a posteridade nele basear seus conceitos referentes ao autor. E, não sei desde quando, a humanidade tem feito uma lista de intenções a cada novo ano. Sem falar no carro, obrigatório, para enfartar no calvário do trânsito, item que é obrigatório! Um amigo até me disse certa vez, que quem não tem carro não existe. Desculpe, eu não nasci, e nem tinha percebido. E não vou me obrigar a aprender a dirigir só para justificar meu registro de nascimento, tampouco lhe apresentar minha declaração de rendimentos.
É assim que as coisas caminham socialmente. Como se todos nós, membros de uma sociedade, fizéssemos parte de um pacote, para cuja inserção fosse imprescindível semelhança nos gostos e no perfil. Mas não é bem assim que as coisas acontecem individualmente. Acho pouco inteligente deixar-se empacotar. Às vezes uma mulher sessentona prefere cobrir as melenas grisalhas com tonalizante cor-de- cobre, por questão estética, ou por gosto pessoal, ou até por não desejar fazer parte do bloco das coroas tingidas de loiro, e ficar com cara de todo-mundo. Às vezes há um certo professor que não compra celular porque não gosta de ser procurado onde quer que esteja, não quer ninguém no seu pé. Às vezes uma pessoa muito tensa não tem tranqüilidade para se envolver na pressão do trânsito, e prefere andar de táxi. Por que toda coroa há de obedecer à sugestão do seu cabeleireiro, e virar loira? E quem não tem celular ser tido como um coitadinho, nem celular ele tem... ? e quem opta pelo táxi ser enquadrado entre os que estão contando centavos? Não será o caso de pessoas como as que enumero, exemplos postos à toa, serem personalidades fortes que não se incomodam de estar ao arrepio do convencional? Pessoas firmes?
Considerações à parte nas quais me prolonguei, volto à origem deste texto que foi inspirado na observação de que eu fico à margem da tradição em alguns itens. Principalmente, jamais consegui manter uma agenda de compromissos, embora seja muito organizada, a ponto de desarrumar a mesa posta, para ajeitar a toalha se tiver ficado torta. Mas se algo for anotado na agenda, me esqueço de consultar e perco a data. Como me oriento para meus compromissos? Escrevo bilhetinhos e colo acima do espelho interno do meu armário de roupas, por ordem de datas.
Também não mantenho um diário, já tentei inúmeras vezes, desde a adolescência. Fico dias e semanas sem escrever, e o diário perde a função. Prefiro fazer anotações e comentários esparsos, divagações até mesmo muito pessoais, em agendas (que ganho e não uso) e vão sendo atoamente registrados. Se alguém quisesse o meu perfil a partir daí, nunca encontraria o fio da meada. Felizmente ninguém está interessado nisso. No entanto, se estou trabalhando um livro, com disciplina religiosa diariamente volto a ele.
Nem faço listas de intenções. Nunca fiz. Obviamente sempre tive sonhos, algumas vezes tive esperanças, muitas vezes fiz planos, faço planos, como viver sem eles? Mas sem tempo definido. Durante 40 anos sonhei construir uma casa com a planta que eu queria, uma casa sem corredor. Sonhei e esperei. Morei em casas e apartamentos, ora menores, ora maiores, lamentando toda perda de espaço e de iluminação dos respectivos corredores. Na infância nossa casa era grande e antiga, tinha um corredor largo e longo, que nunca mais terminava, para ele se abriam todos os quartos que, se não estivessem com luzes acesas, ficavam muito escuros. Eu tinha medo de escuro e fazia o percurso do corredor com o coração aos solavancos, ainda que o corredor estivesse iluminado, mas havia as portas abertas dos quartos escuros... Nunca mais acabava aquela caminhada, porque as crianças eram proibidas de correr dentro de casa, era preciso andar... morrendo.
Sonhei longamente a minha casa sem corredor, sonhei sem planejar, esperei sem ansiedade, nem perspectiva. 40 anos depois, a construí. Exatamente como sempre a desejei. Toda a meu gosto pessoal, somente meu. Ampla, clara, mais larga que comprida, rodeada de varandas nas 4 faces dos pontos cardeais, e sem nenhum corredor. Sem luxo, não preciso. Mas era Aquela.
Não sei se os 40 anos de sonho sem planos, e de esperança vazia, me ensinaram a vanice dos planos e a fragilidade das esperanças, não me firmo nessa experiência para nada, mas pode ser isso pensado como um testemunho da impotência humana, e da dependência das coisas em relação às oportunidades. Quando a oportunidade acontece, chega a hora de nascer em carne-e-osso, em papel-e-tinta, ou em tijolo-e-concreto, aquele desejo que envelhecia sem perder o vigor dentro de nós. Teria sido exatamente assim, e nesse mesmo tempo, se eu tivesse delineado o plano e padecido a longa ansiedade.
Não é por isso que não faço listas de intenções a cada novo ano. Tudo o que desejo, espero. A oportunidade virá. Ou não. Seja qual for o objetivo.
Neste ano até falei: “Quero fazer novos amigos este ano, ampliar”. E quero. Mas só falei, expressei um desejo. Sem ardor nem expectativa, não vale a pena. Não faço listas porque não acredito nelas.
No que é mesmo que acredito?


Gláucia Lemos é romancista, contista, poeta e tem também vários títulos de literatura infantil e juvenil. É graduada em Direito pela UCSal e pós-graduada em Crítica de Arte pela UFBA.

O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA - O FILME


Goulart Gomes



Fui assistir, ontem, com um certo receio, o filme O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA, baseado no romance de mesmo título do genial Gabriel García Marquez. E meu receio deveu-se a dois motivos: o primeiro é que poucas foram as adaptações bem sucedidas, para o cinema, dos grandes livros da literatura universal. Em segundo lugar, o fato de que o maravilhoso da história não é trama em si, mas a fantástica narrativa do autor colombiano. O livro – que está entre os dez primeiros da minha lista de 100 (veja em Textos – Artigos) - foi iniciado em 1984, ao término do ano sabático que Gabriel se concedeu, após ganhar o Prêmio Nobel de Literatura e narra a história do amor platônico de Florentino Ariza por Fermina Daza, que se desenrola ao longo de mais de 50 anos, baseada na verdadeira história de amor dos pais do autor. Foram 622 mulheres que passaram pela cama do personagem central, mas nenhuma delas teve o poder de fazê-lo esquecer da mulher que verdadeiramente amava. Enfim, o filme me surpreendeu, conseguindo ser fiel à essência do livro e pela excelência dos atores, entre eles a brasileira Fernanda Montenegro, no papel da mãe de Florentino. Para aqueles que ainda não tiveram o prazer de ler a obra, transcrevo alguns trechos selecionados por mim:
“Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada.”

“Vinham dessa época suas teorias um tanto simplistas sobre a relação ente o físico das mulheres e suas aptidões para o amor. Desconfiava do tipo sensual, as que pareciam capazes de comer cru um jacaré-açu, e que costumavam ser as mais passivas na cama. Seu tipo era o contrário: essas rãzinhas sumidas, que ninguém se dava ao trabalho de olhar duas vezes na rua, que pareciam reduzidas a nada quando tiravam a roupa, que davam pena porque seus ossos rangiam ao primeiro impacto, e que no entanto podiam deixar pronto para a lata do lixo o maior dos gargantas...”

“Com ela aprendeu Florentino Ariza o que já padecera muitas vezes sem saber: pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma. Solitário entre a multidão do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: ‘O coração tem mais quartos que uma pensão de putas.” Estava banhado em lágrimas com a dor dos adeuses. Contudo, mal desaparecera o navio na linha do horizonte e a lembrança de Fermina Daza tinha voltado a ocupar seu espaço total.”

“É incrível como se pode ser tão feliz durante tantos anos, no meio de tanto bate-boca, tantas chateações, porra, sem saber de verdade se isso é amor ou não.”

“’Nós homens somos uns pobres criados dos preconceitos’, ele tinha dito certa vez. ‘Em compensação, quando uma mulher resolve dormir com um homem não há barreira que não salte, nem fortaleza que não derrube, nem consideração moral nenhuma que não esteja disposta a varar de lado a lado: não há Deus que valha’”.
“Pois tinham vivido juntos o suficiente para perceber que o amor era o amor em qualquer tempo e em qualquer parte, mas tanto mais denso ficava quanto mais perto da morte.”




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Goulart Gomes é autor de, entre outros, Minimal (Copygraf Editora, 2007).

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

AVALIAÇÃO ANUAL - PARTE II



Gerana Damulakis


Na parte I da avaliação anual das leituras, Istambul, livro de Orhan Pamuk foi tido como o de leitura mais gratificante, mas se miro o começo do ano, lembro como J. M. Coetzee foi o autor mais lido nos meses seguintes. E tudo graças a um encontro não marcado com Mirella Márcia Vieira Lima, autora de Confidência Mineira — o Amor na Poesia de Carlos Drummond de Andrade (edusp, 1995). Com Mirella e um amigo que a acompanhava o assunto girou em torno das leituras e ela elogiou muito Desonra (Companhia das Letras, 2000), enquanto eu lembrava de Dostoiévski, o mestre de São Petersburgo (Best Seller, 1997), ambos de Coetzee. Naquele dia eu havia comprado Naufrágios (Best Seller, 2003), de Akira Yoshimura, que acabei lendo de uma sentada, haja vista o arrebatamento que tal tipo de leitura me proporciona, por conta da profundidade emocional dos clássicos japoneses (creio que posso incluir este romance na definição para clássico embora o tempo talvez ainda não permita). Mas estávamos com o Prêmio Nobel de Literatura de 2003 e cabe apontar mais um título, Homem Lento, que a Companhia das Letras editou em 2007. Como quero enfatizar, dada a conversa com Mirella, fiz um levantamento dos romances de Coetzee já traduzidos para nossa língua. Li tudo que todavia não tinha lido: Juventude, A vida dos animais, À espera dos bárbaros — este último suscita uma vontade de fazer um paralelo com O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati, e o poema de Kaváfis do qual Coetzee se serviu explicitamente no título. Com a maestria de seu estilo cativante, Cotzee pode contar qualquer história, pois aqui o encantamento vem da maneira de narrar. Isto tudo complementou o que já era conhecido, como o passeio com Dostoiévski, Vida e época de Michael K, Eizabeth Costello e Desonra.
Seguindo, do contrário não acabo e fico a escrever sobre livros...Vou destacar, dando um pulo de fevereiro para dezembro, os mais recentes títulos instigantes: Homem Comum, de Philip Roth e Homem em queda, de Don DeLillo, ambos saídos pela Companhia das Letras, 2007. Agora vou colocar aqui uma curiosidade: quantos romances usando o substantivo “homem” no título! Não é coincidência de tradução; em inglês seus títulos são The falling man, para Homem em queda, e Everyman para Homem comum. Já Slow Man é o título original do livro de Coetzee: Homem lento. Algo mais em comum entre eles? Muito em “comum”, dito de formas diversas — vale um texto, que farei de modo “lento” sobre isto, pensando na nossa “queda”, a inexorável condição do “homem”.
Por fim, um olhar para a ilha britânica, pois é de lá o autor Ian McEwan. Dele resenhei Na praia (Companhia das Letras, 2007), para a Tribuna da Bahia, texto que também está neste blog, mas a sugestão vai para Amsterdam (Rocco, 1999), que por si diz muito sobre a razão que faz McEwan ser considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos. Parece que esqueço a literatura brasileira: para provar igual fascinação revelo o quanto foi devastador ler Histórias de literatura e cegueira(Record, 2007), de Julián Fuks, sobre Borges, Cabral e Joyce: vale muito este encontro emocionante com os três mestres da palavra.

ALVORADA


Flamarion Silva


Enamoravam-se. Não dos sabidos modos das gentes grandes. Que, também, estas, assim não de forma direta, enrolam os meios feito cipós. Nada dizem, mas, no não dizer, tudo dizem. Entendimento mais doido! Entendem-se. Assim meio bichinhos no farejar do amor.
Quero dizer que sim: enamoravam-se os dois. Porém, olhe só o descabimento! Manuelito de Dasdores, bicho mais feio se tirando de bonito, e logo para cima dela, Nióbe, toda do outro moço, Neco, já enamorada. Mas isso foi quando meninos, cheirando a leite.
Bichinhavam-se. Certos e incertos do amor e das quizilas, emaranhavam-se por caminhos de fontes, rios e matos.
Nhô Manuelito, bicho feio, arrepare que te mato.”
E no bojo do outro, Neco caía feito bicho, todo armado de unhas e dentes. Tudo pelo amor, só existido em sonho, e dormido, pela menina “Nióbe, que é bonita”, e ninguém supõe essa arte. Só Deus, este criador, que entre um bocejar e outro vai tecelando artifícios.
— E façam-se crescidos, Ele diz. E num momento aquela mangueirinha de antes nunca vista, arvoreceu. As paredes da casa, ontem apenas caiadas, Rosaram-se. E toda a gente, até Manuelito, que Deus, por engenhosidade nunca mata, tudo Deus coloriu, modificou, cresceu...
Nióbe bonitona, cheiosa. Neco um tipo fortão, de remar. Manuelito, nem digo, para desgraça de Neco, agigantou-se. Até que ela, a moça Nióbe, a Manuelito ofereceu um olhar derramado, certa feita. Foi quando suspirou:
Tão fortão o Manuelito; iche que arrepio toda!”
Desde então Nióbe teve os olhos despertados para este moço.
Hum, Neco logo se arrochou. Não de forma amostrada, ocultos os músculos, escondida no canto do olho uma outra arte, maliciosa:
Peixeirinha, peixeirona.”
E foi lá na rua do lado de lá que aconteceu um baile. Casa de seu Nezito.
Me concede a honra dessa dança, Dadinha?”
Dadinha toda se vai dançar com o moço que a convida.
Desafastada! Desafastada!”, recomendara o pai que a filha dançasse, pela honra, que é só o que pobre e moça têm.
Mais tarde, festa rolada, regada à bebida, moços empolgados, afogueados, a homens todos tirados.
Dança essa dança, Nióbe?”, pergunta Manuelito. Desconcedido o pedido, se já tão cansadinha a moça, se suara todo um disco com Neco, por vontade e gosto dela e dele; um caco, ela.
Mas Neco, Neco, diabo de premeditação! Bebeu no intento, o Cão.
Nióbe descansada no banquinho. Do outro lado da sala Neco nem diz. Diz, só no olhar:
Vem dançar com eu.”
Mas Neco, fui chamada ind’agora.” ressalva ela.
Chamou, quem, e eu, fui?”
Neco, Neco, fui chamada pelo Manuelito e não fui; isso dá briga.”
Adiante, adiante.”
Nada mais dizem. Já dançam pela sala.
Então é assim, sinhá falsa?” alto diz o moço Manuelito, já apegado no bracinho de Nióbe, repuxando-o.
Desafasta! Desafasta!”, diz, abrindo os braços, Neco.
Desafasta! Desafasta!”, dizem todos, abrindo.
Na sala apenas Neco e Manuelito; Nióbe entre eles.
Neco puxa a faca.
Peixeirinha, peixeirona.”
Manuelito não se acovarda, não. Abre as pernas, ginga o corpo. Um golpe, um bote, coisa assim parecida. Atarantada, a moça, no meio.
Manuelito larga o pé. Neco avança. Entre os dois, a moça. Neco enfia a faca, albiventre de virgem, sangrado.
Branquirubra, Nióbe jaz.




Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, 2006). Coleção Selo Letras da Bahia, 108).
Foto de Mari Curbani, retirada do Flickr.