sexta-feira, 31 de julho de 2009

TODA FLORBELA

Gerana Damulakis


Florbela Espanca recortava as críticas sobre seus versos. Imagino qual linha desses pareceres, colocados em extremos opostos, deve ter feito aflorar um sorriso no rosto da poeta portuguesa: “versos imprimidos de toda a ternura, todo o sentimento de uma alma de mulher”, “verdadeiro mimo”, ou, por outro lado, “escrava de Harém”, “lábios literariamente manchados”, “um livro mau, um livro desmoralizador”. Vacilando entre a moral e o preconceito e a beleza própria do poema, a poesia de Florbela teve um “frio acolhimento” durante sua vida. Constatamos a história, “a relação mecanicista vida e obra”, que se desenrolou em torno da poeta; tudo muito bem contado, com a base sólida da pesquisa séria de Maria Lúcia Dal Farra em Poemas de Florbela Espanca (Martins Fontes Editora). Esta é uma edição preparada e acompanhada de um estudo introdutório para colocar o leitor de hoje frente às circunstâncias nada favoráveis que estavam sempre ao lado daquela alma “irmã gêmea da minha”, no dizer de Fernando Pessoa.
Maria Lúcia Dal Farra apresenta o resultado de um labor rigoroso, onde salienta a incompreensão recebida por Florbela em vida. A crítica não entendeu a poeta, porque, excetuando Américo Durão e Botto de Carvalho, um parecer como o de Thereza Leitão de Barros, para citar um exemplo, só vai ser modificado depois do suicídio de Espanca.
Debruçada sobre os papéis pessoais que constam do espólio de Florbela, na Biblioteca Nacional de Lisboa, Dal Farra desvendou, estabeleceu e confirmou, via reconstituição, todas as vicissitudes da mulher e da poeta, daquela vida enfim guiada pela angústia existencial.
Já no seu livro Florbela Espanca, Trocando Olhares (Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda), Maria Lúcia trabalha em cima dos 88 poemas do primeiro manuscrito da poeta e segue os projetos poéticos do ponto de vista literário e histórico. Mas é neste livro de agora, mirando Guido Battelli, que a autora traz uma faceta curiosa do que ocorreu após a morte de Florbela. O professor italiano Guido Battelli, por ocasião visitante na Universidade de Coimbra, se ofereceu para editar as últimas produções de Espanca. A Battelli a poeta portuguesa confiou os originais em 1930 e, logo, em dezembro do mesmo ano, põe em prática o suicídio. Dal Farra vem contar como se deu o boom editorial obtido pelo livro de poemas Charneca em Flor, com Florbela então morta: a imprensa de Portugual, acreditando no conhecimento íntimo que Battelli desfrutou com Florbela, tece a aderência da biografia com a obra para explicar inclusive as razões da morte por opção. O professor terá que responder por tal mais tarde, no entanto, no momento imediato à edição de Charneca em Flor, tiragens sucessivas foram esgotadas, o que entusiasmou Battelli a publicar tudo o que encontrou de Florbela. Juvenília reúne os poemas esparsos da mocidade da poetisa; os dois livros de poesia anteriores a Charneca têm reedição; Charneca em Flor ganha uma seção intitulada Reliquiae; e mais, As Máscaras do Destino traz os contos inéditos, além da publicação da correspondência de Florbela com Júlia Alves e com o próprio Battelli, e estupendo é o fato de que tudo isso aconteceu num único ano, o de 1931, alicerçado na ficção criada por Battelli que chegou a manipular trechos de cartas, datas, interferiu nos originais, portanto, ultrajes finalmente elaborados para concorrer com sensacionalismo. O que estarrece é a aceitação pública da mentira por praticamente 40 anos, pois apenas em 1979, ao valer-se do espólio para escrever Florbela Espanca, a vida e a obra, Augustina Bessa-Luís esclarece devidamente a enganação. Atente-se que também no plano político Florbela foi declarada inimiga do Estado Novo. Parece incrível como a intimidade pôde ser ficcionalizada e ser sustentada até que José Régio, Jorge de Sena e Vitorino Nemésio se dedicaram à causa política e aos poemas, quase como uma frente de libertação para trazer a verdadeira Florbela e a poeta que deve ser lida pelo que deixou em texto sem vínculos com sua vida particular.
Escândalo ou fascinação pelo escândalo, com ou sem história de atribulações novelescamente ligada a uma sucessão de três casamentos, a perdas familiares dolorosas, a incompreensão pelo preconceito, o que fica é a voz poética feminina mais autêntica, desatrelada dos filtros morais.
No livro organizado por Maria Lúcia Dal Farra, todas as obras em verso de Florbela Espanca comparecem em ordem cronológica, assim como uma “Esparsa Seleta”, antologia de peças dispersas. Criterioso e curioso, o livro acrescenta mais valor ao que já se conhece da poeta de sonetos tão pungentes como um desespero de amor.


OBRA CITADA: Espanca, Florbela: Poemas. Introdução, organização e notas de Maria Lúcia Dal Farra, Martins Fontes, São Paulo, 338 pp., 1996.
"Toda Florbela" faz parte de O rio e a ponte - À margem de leituras escolhidas.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

ONTEM NA ALB

Gerana Damulakis

Ontem, na Academia de Letras da Bahia, a Fundação Pedro Calmon seguiu com suas palestras mensais. Desta feita, o escritor e acadêmico Aramis Ribeiro Costa falou sobre o mar na literatura baiana, desde os primórdios, passando pela poesia de Castro Alves, até chegar aos prosadores Vasconcelos Maia e Jorge Amado e aportando no Mar de Azov de Hélio Pólvora.
Na palestra seguinte, Jacques Salah, autor do belíssimo A Bahia de Jorge Amado, falou sobre Xavier Marques, recordando a visão crítica de David Salles, ao tempo em que, nas suas lembranças, ele trouxe o nome de Antônio Barros. Momentos preciosos para os amantes da literatura.
O parente direto de Xavier Marques, Celso Xavier Marques, tocou músicas inspiradas na obra de seu avô como, por exemplo, Jana e Joel.
Foto: Anderson Sotero

terça-feira, 28 de julho de 2009

CHUVA E NÃO

Gerana Damulakis


Reencontrei o poeta Sidney Wanderley nos comentários às postagens do blog de Janaína Amado: http://acreditandonotruque.blogspot.com/

Nas "orelhas" do volume de poemas Desde Sempre, de Sidney Wanderley, exclamei a surpresa por encontrar um poeta como ele. Era o ano 2000. Ressaltei o poema "Contra Berkeley" para exemplificar a característica da poesia de Sidney: aquela coisa do sentir-se vários, sentir-se tantos. Na penúltima estrofe, os versos dizem: "Custa-me tanto: o não ser tudo,/ o não ser todos/ e, entretanto, saber-me tantos,/ e mais que tudo, saber-me um/ - o singular criador dum mundo/ que gira e fulge alheio a mim".

Recebo agora o livro Chuva e Não, de 2009, e ficou evidente a capacidade do poeta para sintonizar, no que contempla, o que confere a essas coisas a existência e o sopro essencial.

LIÇÃO DA ÁGUA
Sidney Wanderley

Evaporar-se,
condensar-se,
precipitar-se:

não só a água,
o amor também,
só que em ordem
um tanto diversa:

precipitar-se,
condensar-se,
evaporar-se.


Tenho vontade de colocar vários exemplos: "Gavetas" ("-Pois as gavetas que por certo eu perseguia,/ repletas de memórias, e de poesia,/ era em mim que se fechavam e se abriam."), "O Borges que escolhi", "Um beijo"...; o livro é... poesia!

Obrigada, Sidney.

domingo, 26 de julho de 2009

O NÚMERO 7 É MUITO IMPORTANTE

Gerana Damulakis

para aeronauta

Já fiz uma postagem usando o mesmo trecho que reproduzo abaixo do romance O conquistador, de Almeida Faria.

(...) cuja soma dá o número sete, sinal da felicidade e dos destinos raros. Não em vão se invocam os sete dias da criação, os sete anos que Jacob serviu Raquel, os sete pecados mortais, as sete portas de Tebas, os sete muros que cercam a Cidade Celeste, as sete obras de misericórdia,, os sete andares do céu, os sete dons do Espírito, as sete maravilhas dessa terra, os sete planetas e os sete metais que se lhe referem, as sete estrelas do grupo das Plêiades, os sete braços dos sete candelabros empunhados pelos sete anjos que rodeiam o trono divino e que soarão as sete trombetas no Dia do Juízo.

Este romance breve de Almeida Faria é um deleite, saiu pela Rocco em 1993. O nosso Lêdo Ivo diz nas "orelhas": "Toda aventura humana é a promessa de um naufrágio". Definindo extraordinariamente a aventura de O conquistador, o poeta Lêdo Ivo escreveu um texto tão admirável quanto o romance. Acrescento que a aventura aqui é sinônimo também de uma diluição do personagem; aliás isto foi apontado. O que, de resto, resulta no mesmo. Vale embarcar com Almeida Faria: ressalto que "a sabedoria das superstições" dão um toque extra. Leitura de primeira.

sábado, 25 de julho de 2009

"SOU TEMPLO PRESTES A RUIR SEM DEUS"

Gerana Damulakis


Na primeira data de troca de presentes da história de nossas vidas, Aramis e eu demos a mesma coisa um ao outro: a obra completa de Mário de Sá-Carneiro, da Editora Nova Aguilar. Uma coincidência inesquecível! Eu já possuía, em dois volumes, um de poesia, outro de prosa, Mário de Sá-Carneiro, pela Círculo de Leitores, de Portugal. Mas, gosto de ter duas vezes ou mais os livros preciosos de poesia, até já contei quantos Manuel Bandeira eu tenho. Criatura recorrente!
Acabei de ler Suicídios Exemplares, livro de contos de Enrique Vila-Matas, escritor espanhol que vem me encantando cada vez mais. No final, ele colocou um trecho da carta de Mário de Sá-Carneiro para Fernando Pessoa, de 31 -03-1916:
Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã) registradamente enviarei o meu caderno de versos que você guardará e de que você pode dispor para todos os fins como se fosse seu (...) Adeus. Se não conseguir arranjar amanhã a estricnina em dose suficiente deito-me para debaixo do “metro”... Não se zangue comigo.
Lembrei-me do ritmo pendular do soneto “Estátua Falsa”, de Sá-Carneiro. Há um mundo formado neste poema, um mundo que vai aos “céus” e diretamente vai ao “mar”, sobe e desce. E a leitura do verso: “nada me aloira já, nada me aterra”, essa leitura vai criando um pêndulo imaginário. Cada verso é extremamente rico: constrói um eu inseguro, sem valor, portanto falso, que impregna até a tristeza. As metáforas funcionam para moldar o mundo criado como ele é mesmo e, não como uma relação com outro. O penúltimo verso não tem como qualificar, creio que é exatamente como cada um de nós pode se sentir alguma vez diante da vida, se perdemos a pessoa que era um ser maior, como na perda do pai: “sou templo prestes a ruir sem deus”.
ESTÁTUA FALSA
Mário de Sá-Carneiro

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

in Dispersão

quinta-feira, 23 de julho de 2009

MEU BISAVÔ ERA PADRE!


Gerana Damulakis

Calma! É verdade, mas a frase assim, fora do contexto, fica por conta da jornalista frustrada que há em mim, em busca de títulos que seduzam o leitor. Amo esta foto, causadora do título da postagem. Meu bisavô Gerácimos (mesmo nome de meu pai) era padre católico ortodoxo grego e estes padres podem casar. O rapaz ao lado dele era meu avô Jorge (Georgios, Yorgos, mesmo nome de meu irmão). Também na foto: minha bisavó Sophia (sabedoria, em grego) e a irmã de meu avô, Fotini.
Quantos Gerácimos e Jorge! Lembram do filme Casamento Grego, quando o pai da moça vai apresentar os parentes para os futuros sogros dela, todos os homens respondem na mesma hora, pois todos se chamam Niko? Assim também é na minha família. Há quem diga que estes gregos não têm muita imaginação para nomes. E eu respondo que, no entanto, escreveram tudo, tudo está nas tragédias e comédias gregas.
A razão da foto aqui no blog: na Academia de Letras da Bahia, conversando com o acadêmico Dom Emanuel d'Able do Amaral, arquiabade do Mosteiro de São Bento, não consegui tirar os olhos da cruz que ele traz no peito, dada a beleza, e ele me contou sobre a trama da cruz, seu desenho celta. Por conta disso, lembrei-me da cruz de uns 30 centímetros que ficava na cabeceira de meu avô, era uma cruz ortodoxa grega, também belíssima. Apesar de ser a depositária das coisas da família (ninguém imagina quanta coisa eu tenho de tanta gente, dos Costa - lado materno, e dos Damulakis - lado paterno), a cruz, que tanto apreciei na infância e na adolescência, ficou com a irmã de meu pai. Não consegui tirar isso da cabeça. Já procurei uma cruz semelhante no mercadolivre, não encontrei. Sinto-me como uma criança mimada: “Quero uma cruz ortodoxa como a de meu avô, como a da religião da qual meu bisavô foi um padre!”.
No fundo, sei que o importante é ter a cruz na minha lembrança e no meu coração. Contudo, gosto de símbolos e, na verdade, estou com saudades de tudo que a visão daquela cruz me trazia.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

LITERATURA E CHORO

Gerana Damulakis

É incrível constatar como as pessoas que se manifestaram nos comentários sobre A Metamorfose, tiveram reação impactante. Que força tem a danada da literatura.
E hoje eu pretendia colocar um pouco de poesia aqui no meio de tanta prosa e pretendia escrever sobre aquele livro de Judith Farr, Nunca lhe apareci de branco, uma pesquisa sobre a vida de Emily Dickinson, com a reunião da correspondência da poeta e de pessoas que escreviam para ela ou sobre ela. Mas, ao buscar o livro na estante (li este livro em 1998), ele estava junto da biografia de George Eliot, A voz de um século, de Frederick R. Karl, e o pensamento foi imediatamente para o romance Daniel Deronda (Paz e Terra, 1997), da própria George Eliot.
Vou continuar, portanto, relacionando a literatura com o que é gerado dentro de nós após a leitura.
Daniel Deronda: ele costuma encabeçar todas as listas sobre os melhores romances que já li, sobre os mais emocionantes, sobre os mais estarrecedores, seja lá que lista eu possa inventar. O mais certo, no entanto, é que ele encabece a lista dos romances que me fizeram chorar. A lista será pequena, não costumo chorar com os livros, antes me indigno, antes me enraiveço, e, antes de tudo, admiro o estilo, vibro com a aplicação de recursos literários postos a serviço da obra. O crítico literário Harold Bloom incluiu George Eliot (pseudônimo de Mary Anne Evans, foto) no cânone da literatura Ocidental. Ela sabia tudo com seu domínio total na escrita de romances.
Apreciei a arte, verdade. Todavia chorei e muito. Chorei e comparei o choro às cascatas. Foi um choro torrencial. Jamais reli o romance. Tenho receio de não chorar outra vez. As poucas vezes que fiz uma releitura foram decepcionantes, com exceções. Eugênia Grandet, de Balzac, é a vencedora, reli 4 vezes, em épocas bem distintas e sigo gostando muito. Já Madame Bovary, de Gustave Flaubert, foi uma decepção estrondosa.
Pois bem, se alguém quiser chorar, sentir o corpo balançar, soluçar, chorar copiosamente mesmo, a sugestão é a leitura de Daniel Deronda. Ao fechar o livro, bastará enxugar as lágrimas. Esta é a grande diferença em relação à vida.

terça-feira, 21 de julho de 2009

FRASE INICIAL INESQUECÍVEL

Gerana Damulakis



Faz tanto tempo. Era um sábado de tarde. Levou apenas duas horas, se tanto. O impacto foi enorme. Quando fechei o livro, fui beber água, achando que seria impossível que algum outro livro me tomasse daquela forma. Menos mal que vários outros livros me tomaram da mesma forma, me tiraram daqui para onde, nem sei, para o livro mesmo, para sua história, para sua arte magnífica.

A frase inicial de A Metamorfose, de Franz Kafka, é emblemática do universo kafkiano, isto é mais do que notório. Depois da novela tão conhecida, fui, como de hábito, esgotar o autor. Tudo o mais que há em língua portuguesa da obra de Kafka é igualmente estupendo, inclusive O desaparecido ou Amerika, menos aplaudido e menos lido, mas que traz a novela (ou conto?) "O foguista" dentro da narrativa. Até os livros sobre a sua literatura são fascinantes, tal como K., de Robeto Calasso, sem deixar de fora o conhecimento de seu tradutor e grande conhecedor, Modesto Carone, que lançará em breve Lição de Kafka.

Agora o começo de A Metamorfose, continuando meus registros aqui das frases iniciais mais pungentes da literatura:

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

Franz Kafka

(tradução de Modesto Carone)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

A MOÇA DOS PÃEZINHOS DE QUEIJO

Gerana Damulakis

Um dos contos mais interessantes, para não dizer um dos melhores contos nem um dos maiores contos, da literatura baiana tem o belíssimo título: "A moça dos pãezinhos de queijo". E é mesmo um senhor conto, que consta do livro O Largo da Palma, de Adonias Filho. O livro traz ainda outro conto de peso, "Os enforcados", mas foi "Um corpo sem nome", ainda do mesmo volume, que selecionei para integrar a Antologia Panorâmica do Conto Baiano - Século XX, por ser menos conhecido e, portanto, uma escolha menos óbvia. Os seis contos deste livro estão no mesmo patamar de excelência. Talvez os três agora citados sejam mais instigantes. Afunilando mais ainda, creio que, se o leitor todavia não teve a oportunidade de conhecer a literatura de Adonias Filho, a opção pelo conto "A moça dos pãezinhos de queijo" será a experiência mais gratificante. Garanto, jamais esquecerá.
O ficcionista Adonias Filho, dos romances celebrados Corpo Vivo e Luanda Beira Bahia, escreveu novelas e contos do mesmo nível de sua ficção longa. Ainda ensaísta e crítico, membro da Academia Brasileira de Letras, foi diretor da Biblioteca Nacional e seu prestígio até hoje ressoa. Reuniu as novelas e contos nos volumes Léguas da Promissão (1968) e o supracitado O Largo da Palma (1981).
Dos textos de Adonias, seu admirador, o também contista Hélio Pólvora, chama a atenção para a “tragicidade” impingida ao regionalismo moderno. As histórias têm sempre uma sustentação em estruturas equilibradas, numa linguagem sóbria e numa sintaxe original, além de uma nota poética imprevista. Para Pólvora a prosa ficcional de Adonias Filho demonstra a fusão emotiva do autor com os seus temas: "E que melhor esperar de um exímio e complexo contador de histórias, em cuja obra ressoam as vozes de toda a comunidade sul baiana?" (Pólvora, Hélio: "Adonias Filho e a Tragicidade", in O Espaço Interior. Ilhéus: Editora da Universidade Livre do Mar e da Mata, 1999).
Hélio e eu, já está visto, somos leitores de Adonias Filho. Ouso dizer que é a tal "tragicidade" que suscita nossa admiração.

domingo, 19 de julho de 2009

LITERATURA E SOFRIMENTO

Gerana Damulakis


Para escrever bem é preciso sofrer, sofrer.
Dostoiévski

Não escondo o quanto gosto de frases de escritores, como elas povoam a minha mente durante o dia, durante a noite. Mas sei reconhecer quando uma bela frase ou uma frase impactante são apenas uma frase bela ou uma frase de impacto.
Como contestar um escritor do quilate de Dostoiévski? Nem é o intuito. Ele foi aquele que, na análise psicológica dos seus personagens, soube, como ninguém, penetrar nas profundezas do ser humano (como bem diria Hélio Pólvora, ou melhor, como disse Hélio no nosso mais recente encontro). E soube mostrar o quanto o sofrimento é uma questão existencial, sem escapatória.
Fiz a pergunta para Aramis Ribeiro Costa: “Você acha que é necessário sofrer para escrever bem?”. Ele disse que sim, só que fomos adiante na decifração do que se chama sofrimento. Ele falou dos conflitos de cada um.
Mais do que a filosofia (sim, filosofia mesmo) de Dostoiévski, mais do que a sabedoria do quanto de dialética uma mente pode carregar, o sofrimento do autor de Crime e Castigo está relacionado ao conflito citado por Aramis e, na sua maneira de observar, está relacionado à capacidade de lidar bem ou mal com a dinâmica da vida.
Talvez o resultado, o escrever bem, não seja apenas consequência de uma carga enorme de sofrimento. Houve quem escrevesse bem e tivesse passado bem pela vida. Contudo, a obra deste não trouxe o debate fundamental, o é isto e é aquilo da dialética, as idiossincrasias que fazem o leitor sentir mais intensamente o grande absurdo que é a vida. Talvez este escritor tenha contado casos, encantado os leitores, mas não levantou perguntas, não mexeu com as interrogações. Ainda assim, um grande escritor, uma obra reconhecida.
Daí me confundo e volto para a frase de Dostoiévski. Vai ficar rodando na minha cabeça, seguramente.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

MARIA E NILSON

Gerana Damulakis

Às vezes estamos tristes, ou melhor, desanimados (deixemos a tristeza lá fora, não vamos chamá-la), talvez melancólicos, e entramos na blogosfera. Um mundo a blogsfera, um mundo que vai envolvendo nossos pensamentos e, logo, esquecemos o que estava acrescentando um peso extra na alma.
Eu costumo dizer que faço a ronda dos blogs.
São vários, mas vou escrever apenas sobre dois, motivo desta postagem:
Continhos para cão dormir
e Blag
respectivamente de Maria Sampaio e Nilson Pedro.

Neles encontramos os versos do poeta, as fotos que escrevem os casos e os contos da prosadora e fotógrafa. Quanta riqueza! E quanta satisfação os dois blogs proporcionam. Maria tem uma maneira de contar interessantíssima: ela posta uma foto e cria um texto, temos que ler e olhar a foto, ler e olhar a foto, um casamento perfeito. Mais uma nota peculiar: sua linguagem natural, como se estivéssemos ouvindo a narradora. Enquanto Nilson, com sua poesia, foi encantando e encantando cada vez mais leitores, a ponto dos e-amigos pedirem um livro já! Uma poesia inteligente, plena de achados e com um estilo muito próprio. E a tal tristeza, a melancolia e o desânimo? Bem longe, pois que muito do afastamento de algum momentâneo cansaço fica por conta de vocês dois, Maria e Nilson.
Por tudo isso, não é novidade para nós, que seguimos os dois blogs, que cada um tenha seu livro publicado pela P55, na coleção Cartas Bahianas, com lançamento na livraria Tom do Saber, dia 1º de setembro.
Marcus Gusmão, do blog Licuri, abriu um hotblog para este dia, onde se pode, inclusive, reservar exemplares dos dois livros: http://mariaenilsonmil.wordpress.com/
Tenho que deixar registrado que cheguei até Nilson e Maria através de Kátia Borges, do blog Madame K, minha querida amiga, além de ser minha afilhada literária que muito me orgulha, fazendo a poesia de qualidade como ela bem sabe.

Foto: Maria e Nilson, por Marcus Gusmão.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O SÉCULO XX COMEÇA A SER CONTADO

Gerana Damulakis


O primeiro contista baiano nascido no século XX é Oswaldo Dias da Costa. Ao lado de Deocleciano Martins de Oliveira, também nascido na primeira década do século passado e pertencente à geração de 30 dos ficcionistas do nordeste, Dias da Costa, que pertenceu à Academia dos Rebeldes, liderada por Pinheiro Viegas, e da qual fizeram parte Jorge Amado, Sosígenes Costa, Edison Carneiro, Alves Ribeiro, Clóvis Amorim, é quem figura com mais assiduidade nas antologias de contos da Bahia e do Brasil. Deixou dois volumes famosos: Canção do Beco, de 1939, e Mirante dos Aflitos, de 1960.
A Academia de Letras da Bahia premiou em 1999 o ensaio biográfico, O Livro de Oswaldo, de Rejane Machado, a qual levanta a proposta de ressuscitar para a cultura brasileira este autor injustamente esquecido. A ensaísta estuda o contista baiano e o seu painel histórico, avalia o homem e o escritor, a personalidade e a trajetória literária, enfim a pequena e importante obra (Damulakis, Gerana: "O Livro de Oswaldo", Leitura Crítica de A Tarde, Salvador, 23-10-2000).

terça-feira, 14 de julho de 2009

O CONTO NA BAHIA

Gerana Damulakis


Para acompanhar o conto na sua evolução cronológica percebe-se que ao fim e ao cabo o que resulta é uma listagem dos contistas dentro do século XX. Isto traz um risco que seria o abandono do liame histórico, mas as poucas histórias da literatura baiana, inclusive a afamada História da Literatura Baiana, de Pedro Calmon, deixam claro que até o século 19 a poesia predominou absoluta.
Eventualmente se publicavam contos em revistas literárias, porém, a primeira grande expressão da prosa de ficção baiana, com romances e livros de contos editados, foi Xavier Marques. Nascido no ano de 1861, morreu em 1942, tendo uma vida literária ativa dentro dos novecentos e, de resto, toda realizada na Bahia, mas alcançando importância nacional. Xavier Marques foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, tornou-se popular e conheceu a glória pelo valor exclusivo de sua obra. Autor de romances e novelas, entre elas a famosa Jana e Joel (1899), por ele próprio denominada de "idílio piscatório", reuniu seus contos nos volumes: Simples Histórias (1886), seu livro de estréia na prosa, A Cidade Encantada (1919) e Terras Mortas (1936).
Para Eugênio Gomes, "sobre Xavier Marques pesa a indeclinável responsabilidade de haver produzido A Arte de Escrever, a única teoria do estilo elaborada, em nossa língua, por quem deu, em suas obras, o exemplo pessoal de escrever à perfeição" (Gomes, Eugênio: "Os setenta anos de Jana e Joel", à guisa de prefácio de Praieiros. Salvador: GRD, 1969).
A sua ficção revela, sobretudo um fixador de tipos e de paisagens, onde predominam o mar e os saveiros da Bahia. Não há como deixar de fazer tal registro aqui.


Foto: "Saveiros", por Bira Freitas, retirada do Flickr.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

HELENA

Fred Matos


poderiam ser motivo destes versos
os tenros mamilos de uma deusa pagã
se eu soubesse algo acerca de divindades
e se os mamilos me fossem oferecidos
sem os desígnios ocultos que os deuses
e as mulheres têm quando nos mimam

mas a volúpia exige sangue e lágrimas e eu
já não me disponho a doar sequer suor
palavras, sorrisos, coisa alguma que seja
em troca de algo cujo preço nunca é justo

prefiro ir ao cinema assistir Sienna Guillory
que é tal qual eu imaginava a bela Helena
desde a primeira vez que li e a vi na Ilíada

mas nem por ela uma guerra vale a pena


Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (Secrataria da Cultura e Turismo, FUNCEB, EGBA, Coleção Selo Letras da Bahia, 2006) entre outros.
Foto: Sienna Guillory

domingo, 12 de julho de 2009

CERTAS FRASES...

Gerana Damulakis

O escritor Aramis Ribeiro Costa diz cada frase lapidar. Anoto todas.
Eu costumava anotar as frases de meu pai. Hoje, apenas repito na ocasião propícia. Ainda na sexta-feira, na nossa reunião mensal na casa do poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos, eu disse para Terezinha, esposa do escritor Carlos Ribeiro, uma frase que meu pai usava muito. Creio que ela gostou, compartilhou comigo.
Todavia não entrarei nessa vereda. Quero apenas fazer um registro.
Abaixo, mais uma frase de Aramis:


Invenção é a mentira com detalhe.


Aramis Ribeiro Costa










Foto de Aramis, por Rejane Carneiro, jornal A Tarde.

MANUEL BANDEIRA NA FLIP 2009


A foto é do espaço dedicado a Manuel Bandeira na Feira Literária Internacional de Paraty 2009. Nosso poeta que jamais morrerá, ainda que quissesse:
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: " Quem foi...?"

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

OFICINA INTENSIVA DE INTERPRETAÇÃO


POSSÍVEL

Gláucia Lemos

Depois que te encontrei transitando
costumeiro
entre as páginas do meu livro interior,
como se estivesses frente à mesa
do jantar de tua casa,
descobri como me seduz e me conquista
a possibilidade
para todas as coisas.

Aprendo que viver é ser possível,
ainda que se me apresse
a negação de viver.

Eu sei.
Meu coração é um frágil carro de passeio
atravessando o sinal vermelho.


Gláucia Lemos é ficcionista, poeta, autora de mais de 30 títulos.
Foto: "Sinal vermelho para o voo", de Kauã Veronese, retirada do Flickr.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

UM BOM LIVRO: COISA MARAVILHOSA

Gerana Damulakis


No blog de Maria Muadiê há um vídeo de Lobo Antunes dizendo que encontrar um bom livro é uma coisa maravilhosa. Por coincidência, estou lendo um livro de Alberto Manguel, escritor que levanta, durante a leitura, minha admiração por suas colocações. Estou lendo seu mais recente título, À mesa com o Chapeleiro Maluco, e me deparei com o mesmo assunto: o livro e o maravilhoso que há na leitura.
A importância do encontro entre o livro e o leitor vai longe. Manguel descreve o quanto o conto “Nasce um homem”, de Máximo Górki, se transformou “num lugar seguro”, num refúgio, para Milena depois que Kafka morreu.
Sigo com Manguel: “Para um leitor, esta pode ser a razão essencial, talvez a única justificativa para a literatura: que a loucura do mundo não nos tome por completo, mesmo que invada nosso porão (a imagem é de Machado de Assis) e depois, lentamente, vá tomando nossa copa, a sala e a casa inteira”.
E os exemplos: J. Brodsky, prisioneiro na Sibéria, encontrou essa justificativa nos versos de W. H. Auden; Oscar Wilde, preso, nas palavras de Cristo; Arenas, enquanto estava nos cárceres de Fidel, encontrou-a na Eneida e seguem mais exemplos.
Encontrei uma vez lendo Hamlet, encontrei outra vez em Daniel Deronda, de George Eliot, encontrei muitas vezes com algum livro de José Saramago entre as mãos. Os últimos três anos foram um mergulho diferente na literatura japonesa e encontrei aí também, seja com Kawabata (ressalto Beleza e Tristeza, mas pode ser com qualquer título dele: sempre leitura grandiosa), seja com Murakami (ressalto Kafka à beira-mar). Que sorte a minha: vivo encontrando bons livros, boas escapatórias. Coisa maravilhosa!

Foto: Yasunari Kawabata, Nobel de Lieteratura de 1968.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

terça-feira, 7 de julho de 2009

MANIFESTO FUTURISTA E SUAS REPERCUSSÕES NO BRASIL

ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA
Universidade Estadual de Feira de Santana - DLA/PPGLDC

100 ANOS DO MANIFESTO FUTURISTA E SUAS REPERCUSSÕES NO BRASIL

10 DE JULHO DE 2009 - sexta-feira
Local: Academia de Letras da Bahia
Av. Joana Angélica 198, Nazaré, Salvador-BA

Mesa-redonda IV – 14:00 h - Auditório
Perfil e contribuição de Almáquio Diniz
Coord.: Prof. Dr. Aleilton Fonseca (UEFS/ALB)
Manifesto Futurista
e o papel de Almáquio Diniz Gonçalves
Prof. Dr. Benedito José de Araújo Veiga (UEFS)

Almáquio Diniz: perfis e comentários
Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho (UEFS)

Mesa de Encerramento – 17:00 h - Auditório
Um "mundo novo": o cinema
segundo os futuristas e os modernistas
Coord.: Prof. Dr. Claudio Cledson Novaes (UEFS)
Prof. Dr. Andrea Santurbano (UFSC)
Prof. Me. Idmar Boaventura

OBS: FREQUÊNCIA LIVRE E GRATUITA
Quem desejar certificado de 4 horas deve inscrever-se na abertura do evento, mediante assinatura na lista de presença
e o e-mail.
Informações: tel. 3321-4308

sábado, 4 de julho de 2009

AO LONGO DA LINHA AMARELA


Ao longo da linha amarela é o título de João Filho que será lançado dia 7 de julho (convite abaixo).

"A paixão não é um oásis no meio do nosso deserto diário, e sim uma suspensão súbita dos nossos frágeis alicerces espirituais".
João Filho in "Aprender pela forja", conto da antologia Travessias Singulares (São Paulo: Casarão do Verbo, 2008), organizada por Rosel Bonfim Soares.


A antologia supracitada é nacional, temática - Pais e Filhos, é o subtítulo - e nela estão ainda os baianos Aleilton Fonseca, Antônio Torres, Aramis Ribeiro Costa, Armando Avena, Carlos Ribeiro, Hélio Pólvora (por ordem alfabética).

quinta-feira, 2 de julho de 2009

CARTAS BAHIANAS


AO DIA DOIS DE JULHO

Castro Alves

.....................................................
Senhores, a glória de um povo é ser livre...
O nome de livres é o nosso brasão.
Seja esta a divisa da nossa existência.
E este epitáfio se escreva no chão...

Versos finais de "Ao Dia Dous de Julho", parte terceira/ Saudação.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

CONTO BANAL


Waldir Freitas Oliveira



Num repente, dirigiu-se a uma agência de turismo e comprou uma passagem aérea para Paris.
Atravessou, a seguir, o Atlântico, meio adormecido, sem sentir qualquer tipo de prazer naquela viagem. O que ele realmente desejava, era transpô-lo viajando numa caravela, com altos mastros e muitas velas, levada por ventos furiosos, como haviam feito, em outros tempos, os navegadores do passado.
Aquela semi-escuridão na qual se achava imerso, sentado e mal podendo, tão estreito era o espaço entre as fileiras de cadeiras, esticar suas pernas, a bordo de um avião gigantesco, junto a mais de uma centena de pessoas que nunca vira antes, sem lhes saber os nomes ou que lhes fossem, ao menos, simpáticos, deixava-o deprimido e a considerar a situação em que se achava como se fosse um castigo. Bem sabendo que das trevas que cercavam o avião em que viajava, não havia qualquer possibilidade de emergir a figura insólita e gigantesca do Adamastor. E ele queria vê-lo.
Chegando a Paris, conheceu uma jovem morena, mignon e de cabelos pretos. Para sua surpresa, ela era brasileira. O que queria, no entanto, era encontrar uma francesa; ou uma espanhola, caso não estivesse uma francesa, disponível. Uma francesa do Midi, falando um francês forçando os erres, sabendo dançar o flamengo e sendo capaz de lhe contar histórias antigas sobre a Catalunha; ou uma espanhola que lhe falasse de Granada ou de Sevilha, tocasse castanholas, podendo mesmo chamar-se Carmen, disposta a cobri-lo de beijos e carícias, que segundo haviam lhe dito, somente as andaluzas sabem fazer.
Teve, porém, de contentar-se com a brasileira. E ela, em verdade, esforçou-se, para satisfazer seus desejos. Não eram, porém, as mesmas coisas que estavam a acontecer, comparadas que fossem com as que desejara.
Nas longas conversas que enchiam as noites dos seus encontros, nas quais as palavras e as canções eram mais freqüentes que os gestos e os afagos, ele descobriu que ela somente desejava um homem comum, que a possuísse sucessivas vezes; jamais um Quixote recheado de sonhos; viu então que ela jamais poderia igualar-se à Dulcinéia idealizada pelo engenhoso cavaleiro de la Mancha.
Seguiram, certa vez, para a Alemanha. Andaram por Munich, por Colônia e Frankfurt. Percorreram o Reno, do sul para o norte, da fronteira com a Suiça até a Holanda. Pararam mais tempo em Heidelberg, às margens do Neckar.
De longe, ainda na estrada, antes de entrar na cidade, viram o céu, de azul, tornar-se vermelho. Focos de luz imensos envolviam, por todos os lados, um imenso castelo e criavam aos olhos dos que o viam, no alto de um monte, na outra margem do rio, a impressão de ele estar a flutuar no espaço – pois não se avistava a encosta do monte sobre o qual se erguia e o separava das águas cobertas de espumas alvas do rio tumultuoso e veloz que por ali passava.
Sentados num banco ficaram a contemplá-lo por um tempo longo. Suas torres e os contornos dos seus muros desenhavam-se contra um céu artificialmente vermelho. E foi naquela ocasião que eles sonharam o mesmo sonho. Ele nela encontrou a francesa do Midi, a espanhola de Granada, uma valquíria evadia das sagas germânicas, uma fada encantada; e nele ela encontrou um cavaleiro andante, um amante incansável, um Don Juan que escapara de antigos romances, um Rolando furioso a lutar contra os mouros, nas altas montanhas dos Pirineus cobertos pela neve.
Subitamente, contudo, o castelo dissolveu-se no ar; não mais o viam; e o vermelho do céu tornou-se escuridão. Retornavam à realidade. Ergueram-se, então, do banco onde estavam sentados e, mudos e sem mãos dadas, regressaram ao quarto do hotel onde haviam se hospedado.
No dia seguinte, seguiram para a Holanda. E em Otterlo, no museu Kröller-Muller, onde se encontram expostos centenas de telas e desenhos de Van Gogh, permaneceram, pasmos e calados, durante mais de uma hora, frente a “Le Semeur au coucher de soleil”, olhando um camponês a espalhar sementes sobre o campo que o cercava, sob a luz de um sol estranhamente amarelo, fixo na linha do horizonte. O amarelo é a cor do encontro com Van Gogh. Depois que somos por ele envoltos, difícil dele será apartar-nos, a fim de regressar ao mundo real. Quando ele nos penetra, nos ultrapassa os sentidos e nos atinge a alma. E, imersos no amarelo, eles de novo sonharam.
De volta ao Brasil, ele recebeu a notícia da morte súbita da brasileira morena, mignon e de cabelos pretos, que não era francesa nem era espanhola. Percebeu, então, que somente uma parte dela havia morrido; outra permanecera viva. E ele a recordou, inteira, sentada ao seu lado, frente a um castelo, em Heidelberg e, de novo com ele, olhando, encantada, em Oterloo, um quadro de Van Gogh. Preferiu, então, volver ao sonho e fugir da realidade. Dirigiu-se até a estante, e suas mãos ainda indecisas dela retiraram o catálogo do museu onde haviam estado. Ele e ela o tiveram nas mãos enquanto percorreram seus corredores e suas salas. Colocou-o sobre a mesa e sobre a sua capa, a sua mão espalmada. E viu, então, surgir à sua frente, não a francesa do Midi, falando um francês carregado nos erres, nem a espanhola de Sevilha que até podia chamar-se Carmen, nem a valquíria germânica, mas “la petite Arlésienne” pintada, certa vez, por Van Gogh, agora cercada, por todos os lados, por imensos girassóis.


Waldir Freitas Oliveira tem dezenas de títulos publicados. Está na Antologia Panorâmica do Conto Baiano – Século XX, organizada por mim, com o conto “Jean Le Corse”.
De Van Gogh : “La petite Arlésienne”, oil on canvas, 1890. Kröller-Müller Museum, Otterlo, The Netherlands.