sábado, 23 de maio de 2009

A MENINA DA JANELA

Gláucia Lemos


Indiferente à frieza e aos chuviscos, uma menina, debruçada na janela, está contemplando alguma coisa na pracinha. Deve ter uns nove anos. Em que pensa uma menina de nove anos debruçada na janela da escola, assim ensimesmada, diante da pracinha? Quase imóvel, só lhe estremecem, levemente, umas poucas madeixas, que o vento da manhã molhada teima em tentar agitar. Não compareceu a professora certamente. O inverno que, precoce, chega em maio, escandalosamente em aguaceiros, altera o ritmo da cidade, e atrapalha a rotina de muitos. Professores entre os muitos.
A menina está sem aulas neste horário. Por trás dela há cabeças que se movimentam ininterruptas. Colegas inquietos liberam a energia que represam durante as aulas, a menina, porém, parece tranqüila apoiada ao parapeito da janela, um braço dobrado com a mão imóvel voltada para perto da face, e o outro antebraço repousado na extensão do peitoril.
Cá embaixo, a manhã da pracinha segue a rotina quase perfeita. Ainda está o jornaleiro sentado no banco, embora a esta hora já tenha amenizado o fluxo dos carros que sempre diminuem a marcha para que alguém lhe compre o jornal do dia. Está a mulher com seu vaso de paçocas. Só não está o painel dos CDs piratas que também habita a calçada em dias mais enxutos. E transeuntes. Que será que atrái com tamanha atenção o interesse da menina?Que a toma tanto até deixá-la desinteressada do movimento vivido pelos colegas atrás dela, provavelmente ruidosos. Ou não esteja sua atenção voltada para a praça e a menina apenas tenha ficado envolta por seus pensamentos?
Tento adivinhar o que se passa na cabeça de uma menina de nove anos quando se põe sozinha, completamente abstraída do seu redor. Em que pensava a menina que conheci mais de perto, quando tinha nove anos?
Também era pensativa muitas vezes, mesmo quando se envolvia com a graça de um livro. Também gostava de se pôr sozinha e quieta, para se devotar ao que vivia em seu recolhimento. Inventava histórias e sonhava. Planejava realizar viagens para mundos distantes. Aqueles mundos que visualizava quando lia os contos de As mil e uma noites, transitar entre aquelas construções de torres em abóbadas, que via nos filmes em que se narravam enredos passados no Oriente. E fazia poesias, enfileirava versos no caderno que tinha na cabeça, para depois escrevê-los e guardar. Então não via o que estava acontecendo em torno, e se alguém a chamava nesses momentos, despertava com inevitável susto.
A menina da janela agora voltou a cabeça para o interior da sala. Alguém a teria chamado. Lentamente, deixa a janela, e na janela deixa os seus pensamentos. Seus sonhos ficam interrompidos para atender ao chamado. Seus planos abandonados, evanescendo no mármore do parapeito, para serem levados pela primeira lufada de vento desta manhã chuvosa, e perdidos, definitivamente. Como se perdem todos os sonhos de todas as meninas de nove anos que começam cedo a se abstrair da vida, para, em silêncio, fantasiar os seus anseios.
Quando os nove anos por alguns anos de multiplicarem, a menina entenderá a vanidade de todos os sonhos, mas sentirá saudades deles, como se os tivesse vivido, em algum lugar que não o peitoril da janela, e em algum tempo que, infelizmente, se perdeu.



Gláucia Lemos está com seu livro de crônicas, nascido aqui no blog, praticamente concluído.
Ilustrando: Mily Possoz (1888- 1967)-Menina da Boina Verde 1930, óleo sobre tela 64 x 53 cm. Centro de Arte Moderna / Fund. Gulbenkian, Lisboa, Portugal.