sábado, 25 de agosto de 2012

O ESPÍRITO DA PROSA

Gerana Damulakis

Eu conheço Cristovão Tezza e por isso durante a leitura de O espírito da prosa senti como se estivéssemos conversando sobre uma paixão comum a ambos: a literatura. Só que, pensando melhor sobre a autobiografia literária de Tezza, creio que não é necessário conhecer o escritor para sentir, durante a leitura, que há uma perfeita comunicação com aquele que está lendo as duzentas e poucas páginas de uma narrativa que mergulha visceralmente no assunto literário.

E o que nos leva a escrever, o que leva alguém a escrever, é a pergunta situada no centro do mergulho. Súbito, o escritor sente-se inadequado, infeliz, porque a literatura surge do sentimento de inadequação e de um estado longe da felicidade, pois que a felicidade não é semente, não é germe, para a prosa. Tais reflexões, pertinentes e invariavelmente entendidas por escritores, testemunham o caminho do autor de tantos romances, entre eles o premiadíssimo O filho eterno; este, mais do que qualquer outro, fruto direto de um sofrimento que, felizmente, foi purgado e bem resolvido.

Logo nas primeiras páginas encontrei o escritor-professor e estranhei. Lidas as colocações, os conceitos, a reverência ao teórico russo Mikhail Bakhtin, centro de sua tese de doutorado, há, então, a liberdade do escritor apenas escritor, que é o estado atual de Tezza. Compreendi, enfim, que se fazia preciso aquele retorno às teorias, talvez para sentir mais intensamente o momento hodierno, quando já não existe a necessidade de cumprir horários e enfrentar as salas de aula. Engana-se, em leitura apressada, quem escreveu que há demonstrações teóricas como se o escritor não tivesse conseguido o desligamento total do professor. Engana-se, pois a autobiografia literária narra, na verdade, a prática do escritor ao longo dos anos até atingir o Ensaio da Paixão, quando Tezza considera que sua literatura começou de fato com este título. Contudo, antes do Ensaio da Paixão houve outros títulos e entre eles está A cidade inventada.

Eu tenho A cidade inventada, de 1980, pela COO Editora Ltda., e a ele voltei depois que li em O espírito da prosa que apenas em um momento do livro de outrora, no conto “A primeira noite de liberdade”, o autor avalia que chegou perto de si mesmo.

Enfatizo, pois, que a autobiografia conta o caminho, aquele caminho que se faz ao caminhar, como queria o poeta espanhol, na formação do escritor. Começando desde as páginas datilografadas no seu primeiro emprego, alcançado graças ao aprendizado autodidático da datilografia na máquina de seu pai, falecido precocemente, passando por Gran Circo das Américas e O terrorista lírico, o autor chega a Ensaio da Paixão.

Gran Circo das Américas e O terrorista lírico são os únicos livros de Tezza que não tenho e que não li, mas tenho Trapo, na edição de 1988, pela Brasiliense, e Aventuras Provisórias, de 1989, pela Mercado Aberto, Prêmio Petrobras de Literatura - Novela, além de outros títulos pela Record, tal como A suavidade do vento, outros pela Rocco, até os mais atuais pela mesma Record com o belo projeto gráfico de Regina Ferraz .

Cristovão Tezza evidencia o debate interno até chegar ao patamar que atingiu, ou seja, quando o escritor consegue criar o narrador e “ele está sempre no lado de lá, vendo-me criticamente”. A lucidez que Tezza alcançou é evidente e não só em relação ao que desejava quando esclarece sobre a prosa poética, sobre os modismos, incluindo a metaficção – que ele confessa ter entrado “de raspão” com o romance A suavidade do vento –; por sinal, foi A suavidade do vento o primeiro romance de Tezza que li e irremediavelmente tornei-me sua leitora, buscando tudo que havia antes de A suavidade... E para quem está atento aos romances de Tezza é fácil perceber que assim que ele alcançou a sua linguagem, ela tornou-se inerente, passou a “fazer parte” do escritor, a ponto de, talvez, saber mais sobre o que será escrito do que o próprio.

Consciente do processo de escrever, que está revisitado neste O espírito da prosa, as páginas finais pretendem deixar a obra aberta, embora já passada a limpo a história do menino em seu caminho até o escritor, que não deixa de ser seu processo de viver. Sem conclusão, o livro encerra com esta frase final: “A literatura será uma aproximação densa e silenciosa entre duas pessoas num terreno a que nenhuma outra voz consegue chegar”. O espírito da prosa é esse encontro, enfim.