sexta-feira, 31 de outubro de 2008

ARRANJOS


Gerana Damulakis

No tempo presente
e em todo canto,
esgarço o que sou
e o que não; porque
solitária é a noite
sem estrelas,
tão na escuridão profunda
do imaginário abismo,
que se pinta e é assim pintada:
o absoluto ou o nada.
Também sempre pinto
o que escravizo
dentro de mim,
tal como a noite
prenhe de estrelas;
só que na hora mesmo
rasgo o véu negro
rasgo em gritos
rasgo os erros e talvez
os acertos; porque,
agrade ou não,
deixo para a noite
a sua solidão.


De Guardador de mitos, um livro de um outro tempo e de outras histórias que, graças, já passaram.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

PRÊMIO DARDOS


Os blog de Fred Matos, Nas horas e horas e meias, http://eumeuoutro.blogspot.com/, selecionou este blog para o “Prêmio Dardos”, no qual se reconhece os valores que cada blogueiro utiliza para transmitir valores culturais, literários, éticos, pessoais etc. demonstrando sua criatividade. Esse selo foi criado para promover a confraternização entre blogueiros e para demonstrar reconhecimento por um trabalho que agrega valor a Web. Quem recebe e aceita o prêmio deve:

1. Exibir a imagem do selo

2. Linkar o blog do qual recebeu o selo

3. Escolher outros 15 blogues para receber o prêmio.

LISTA DOS 15 BLOGUES

QUIÇA


Fred Matos


um dia um poeta, cujos versos desconheço,
talvez tenha dito certas coisas que me esqueço
mas que sei serem tão óbvias que, todavia,
talvez jamais sejam escritas em juízo perfeito.

são coisas tão claras que me cegam, mas,
tão escuras que me assustam agora
e nas quais não quero pensar, apesar,
de que já as tenha falado de outro jeito.
quiçá estejam nas cogitações dos filósofos
quiçá estejam nos desígnios dos deuses
quiçá inscritas em cada nosso cromossomo

contudo, apenas os loucos e as crianças,
cuja inocência não se tenha corrompido,
são capazes de entender o desmedido.



Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). Para ler mais poemas de Fred entre no seu blog http://eumeuoutro.blogspot.com/ , ou diretamente pela minha coluna nos "Favoritos".

terça-feira, 28 de outubro de 2008

SONATA AO LUAR


Gláucia Lemos


Hoje eu toquei somente para você.
Enlouqueceu, você dirá, como eu poderia escutá-la a toda essa distância? Não sabe você que os sons se propagam a quilômetros e se conservam no espaço, não só a imensas distâncias, como também, possivelmente, através de séculos? Dizem. Eu não sei se há verdade nisso, não entendo dos assuntos da Física, com certeza por isso é que eu tanto admiro os físicos. Mas alguém já afirmou que talvez se consiga ainda detectar alguns ecos das pregações de Cristo. Dois mil anos é muito tempo, eu não sei. Digamos que alguém tenha razão. Por que em minutos apenas, e não em séculos, a quilômetros muito mais curtos que a nossa distância até Jerusalém, os sons do piano não poderiam chegar a seus ouvidos?
Não, não sou delirante a ponto de crer em teses improváveis. Só consigo botar fé nas afirmações que me convençam. No entanto acredito que as pessoas se comunicam à distância, quando um fio imponderável se tece entre elas, uma interação amorosa. Certa vez li uns versos apaixonados, de cujo autor não me lembro e diziam: Não acredito que quando choras / não vejas que uma das tuas lágrimas é minha. O poeta falava da comunicação, até choravam a lágrima do outro. — São coisas de poeta, você dirá, mas poetas, meu amigo, são seres especiais, quase sempre têm razão.
Hoje recebi sua mensagem. Não foi preciso mais que um olhar rápido ao envelope, à sua caligrafia nervosa, uns garranchos riscados às pressas que me fizeram sorrir, àquele traço esquisito com o qual você grafa a minha inicial, para ter acesa aquela flama de cumplicidade muda. E a flama cresceu e me iluminou, iluminando todo o meu quarto, onde eu estava arrumando meus livros. Então, sua foto, que maldade! Sua foto. Não se envia foto para quem está com as mãos tão distantes do seu rosto. A quem está com as mãos frias pelo prolongamento no tempo de ausência. Ou se envia? Para que não se turve a imagem que se traz nas pupilas e o espaço ameace apagar, envia-se foto, com certeza.
Se eu disser que beijei o seu nome que assina a mensagem, ficará tão piegas! Muito mais que piegas, ficará tão ridículo! Por isso não direi. Não se usa mais beijar fotos nem cartas, mas na solidão do quarto, muitos dos pós-modernos que condenam românticos, certamente beijam cartas e fotos, porque amar ainda se usa de vez em quando, e sentir a alegria por se saber amado, ainda se usará por muito tempo.
Hoje estudei outra vez a Sonata ao luar. Não consigo mais tocá-la com a desenvoltura com que o fazia há vinte anos passados, por isso tenho que estudá-la muito, para compensar o tempo do silêncio. Mas hoje, tudo foi tão mais simples. A melodia fluía de mim como se a minha emotividade estivesse deslizando pelas teclas do piano. Sabe aquele trecho no qual eu ainda tropeço? Aquele trecho em que se troca a clave? Hoje não tropecei, hoje não perdi o compasso. Hoje eu quase fui parceira de Beethoven. Será que foi porque hoje eu estava tocando para você?



Gláucia Lemos está escrevendo um livro de crônicas neste blog. Esta é mais uma crônica para a reunião futura. Foto de regolare, retirada do Flickr.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

ENSAIOS AMADORES... OU NÃO!

Gerana Damulakis



Ensaios Amadores... ou não! (Scortecci, 2008)é o título do volume de poemas de uma escritora que suspira. Sua marca: o uso de reticências quase a cada verso, o que, de saída, levanta a lembrança de Mario Quintana que dizia serem as reticências como representantes dos suspiros. E um suspiro na poesia sacraliza o lirismo que ela carrega. Tal lirismo, cristalizado na poesia de Letícia Losekann Coelho, encontra sua força quando trabalha o onírico e pontua cada verso projetando imagens deste delírio e deste sonho: um exemplo excelente é o poema “Devaneios dos sonhos”.
Os poemas “Vento” e “Velho guri” são apenas dois exemplos - há outros - que trazem uma complementação ao vigor poético do livro: representam, pois, a inclusão do peso do tempo. E vale dizer mais: dão conta da experiência dos sentidos e, portanto, da sensualidade, tanto as imagens plasmadas em um poema como “O amor”, quanto a fantasia em “Flor da pele”. A uniformidade estilística do livro de Letícia é sinal da segurança no seu fazer poético, porém, sinaliza igualmente a sua persistência no que acredita, sem a necessidade de experimentações várias. O que é o mesmo que dizer que Letícia tem uma maturidade que lhe é inerente e que se materializa no verso, na estrofe, enfim, no poema, pois que não o perde de vista. Sua intenção poética é lançar a emoção e a conseqüente sensação no papel; e, assim como nós fazemos diante de uma impressão que nos comove, a poesia de Letícia suspira... em êxtase!

VENTO
Letícia Losekann Coelho

O vento procura-me pelos cantos...
Preenche-me de lembranças...
Faz o que dorme acordar...
Fecho meus olhos...
E sinto as punhaladas...
Trago meu cigarro amargo...
E quando solto a fumaça...
Vejo o vento partir...
Com as lembranças mortas...
Que insistem em vir aqui...
Exorcizo-te em mim...
Regozijo quando tu te vais...
Para sempre...
Até o vento voltar!

FORÇA



Gláucia Lemos



Roubam meu deus, meu corpo,
minha hora do sono.
meu sangue roubam. E ruem
as sílabas sutis da minha prece.
O riso e o vigor que remanesce
rompem a fio, desfazem-nos em febre.

Só não podem roubar este meu rumo.
Este travo no dente que me impele,
esta trilha riscada em minhas veias,
este poder de ir de olhos vendados
e retomar o passo após o risco.
Só não podem roubar esta certeza
de que sou como o ímpeto dos rios.
Só não podem secar-me a correnteza.


Gláucia Lemos é romancista, cronista, poeta. Depois do recente lançamento de seu romance Bichos de conchas, dá um mergulho na poesia.

sábado, 25 de outubro de 2008

MEU PRIMEIRO SÚBITO AMOR

Gerana Damulakis



Eu corri para a janela ampla que havia no segundo andar da nossa casa na Pituba. Ela dava para o pátio e se podia ver o carro entrando. Corri para ela assim que ouvi o barulho do carro. Vi meu pai sair da direção, minha avó do banco de trás e minha mãe do banco da frente com ele nos braços. Procurei um bom lugar e me escondi. Depois de um tempo que me pareceu enorme, escutei vozes que subiam as escadas, mas segui escondida. Ninguém deu por minha falta porque não ouvi que estavam me procurando. Observei que deixaram o que parecia um embrulho no quarto e desceram. Conferido o silêncio, tratei de ir em busca do que foi colocado no quarto. E lá estava ele no berço. Eu não tinha idéia do que sentia sobre tudo que estava se passando, sobre coisas que estavam mudando; pois era certo que estavam mudando: meu reinado de filha única findando. Então espiei para dentro do berço e botei os olhos na mais bela criatura jamais vista por mim. Ele era lindo, com a cabeça cheia de um cabelinho fino e muito louro, todo gordinho e com um nariz que sobressaía no rostinho perfeito. Foi a maior emoção da minha então curta vida de quase quatro anos. E foi um choque sentir aquela torrente de amor súbito diante da beleza dourada. Daí para frente só aumenta o que sinto por ele: que grande amor. Ele brincou com um monte da mesma boneca, a Barbie, eu brinquei com carrinhos e trens. Fomos um apoio e um conforto em inúmeras situações. Quando fui para a Espanha fazer a pós-graduação, ele me disse que eu era a primeira grande perda da vida dele; naquele tempo nós ficávamos até alta madrugada conversando e de um dia para o outro eu não estaria mais ali no quarto ao lado. Eu fui a primeira grande perda da vida dele e ele foi o meu primeiro grande ganho. Anos depois, eu já de volta, foi a vez dele ir estudar fora, mudou-se para o Rio de Janeiro e a faculdade era pela noite; eu só dormia depois da meia-noite, após telefonar e verificar que ele havia chegado em casa. Com a recente morte de nosso pai, ele tentou preencher meu vazio no que podia, fazendo coisas habituais com as quais meu pai me mimava: comprando montes do chocolate da mesma marca, por exemplo. Também faz questão de dizer “só você para resolver tudo”, que era uma frase que meu pai dizia para mim. Fisicamente somos tão diferentes: ele tem 1,83 m e eu, baixinha, tenho 1,62m, mas somos ambos magrinhos; ele sempre foi louro, e eu jamais fui, mas temos o mesmo nariz de grego (o dele é mais bonito). No trato com as pessoas também somos diferentes; ele é reservado, já eu sou expansiva, mas lá dentro há a mesma intranqüilidade. Hoje, um é para o outro a ponte com um passado comum que gera um conhecimento profundo. Andamos pelas ruas de mãos dadas porque precisamos desse contato, nos perdemos em abraços demorados que dizem mais que palavras e temos o especial gosto ao verificar o quanto nos parecemos nos sentimentos e na maneira de encarar a vida. Somos frutos de uma mesma história.

Foto tirada por Gerácimos Damulakis, meu pai, propositadamente em preto e branco para aproveitar o raio de sol que atingia a meu irmão e a mim, conferindo um ar artístico à fotografia.

O FAROL DA BARRA

Luiz Britto


Numa pizzaria que fica na Marques de Leão, a dois passos do Farol, há uma foto antiga daquela área. Algumas casas, lembrando as antigas casas de veraneio de Mar Grande, uma pra cá, outra pra lá, e o Farol, como sempre sisudo, severo, de poucas palavras, indiferente às intempéries, ao rugido das ondas, às caretas do mar.Aquela área, então, era um nada. Alguns, poucos privilegiados tinham casa naquelas cercanias --- um lugar deserto, afastado da cidade, sem arruamentos talvez, com cercas de arame, capim, areia.
Tudo mudou.
Quando eu era menino, havia um gramado verde no terreno à frente do forte centenário, onde moravam o faroleiro e sua família --- o farol no alto de uma torre, no centro da construção, como todos os faróis. Nos domingos havia uma verdadeira festa nesse gramado. Crianças correndo, meninos empinando arraia, aproveitando o vento firme que vinha do mar, vendedores de algodão doce, pipoca, baleiros, uma fauna humana variada e alegre. Tudo isso sumiu. Primeiro, o gramado, com tanta gente pisando-o, o eterno Carnaval, comícios, encontros religiosos, tudo que promovem ali. Depois, a inocência daqueles tempos --- coisa que não volta mais.
Lembro as barras de ferro numa das encostas, o trapézio para os ginastas, quem era metido a forte. Os negros rochedos ainda estão por lá, talvez um pouco sujos, pichados aqui ou ali. E há as barracas de comida e bebida, o que não havia. Na praia só picolé, água de coco, rolete de cana. Quem quisesse comer que fosse para a sua casa. Beber, nem pensar. Era coisa pra boteco, bares de espanhóis, lugares onde as mulheres não entravam. Beber era só pra homem. Mulher tomava coca-cola. Quando muito, um vinho.
E havia a Sorveteria Oceania, com suas cadeiras de metal, os “sundaes” e “dusty millers” depois do filme (no Cine Oceania), e havia o corso de automóveis. Os burgueses, os filhinhos de papai mostrando suas viaturas, as camisas novas, cabelos ainda molhados --- as moças encostadas nos carros estacionados, como se estivessem numa vitrine.
Tudo isso acabou. Não há mais corso, nem cinema, nem sequer o teatrinho que também funcionou ali, no Edifício Oceania. O tempo passa, as pessoas passam, o vento passa e fica uma sensação de um certo vazio. Como se as coisas, as pessoas, os lugares não tivessem a mínima importância. Fica o quê? O vento que vem do mar, esse mar vezes raivoso nos meses de inverno, cinzento, plúmbeo, irado. Quando o vento, então, sopra mais forte, vira ventania, treina para furacão.
Fica a velha torre do Farol, um marco da cidade, uma espécie de Torre Eiffel dos pobres. Incólume, sempre a mesma, permanente. Que as modas não destroem, nem os governos, os façanhudos da Prefeitura. Tá lá, é um símbolo, um marco. Recebe os últimos raios do sol poente, as costas viradas para a turbulência da cidade, ônibus passando, toda a nossa confusão. Suas luzes iluminam o mar negro, vão às estrelas, saúdam a chegada da lua, o imenso rastro prateado, recebem a brisa fria que vem do mar como um refrigério.
Está lá, permanece, enquanto tudo gira à sua volta. A cidade se transforma, casas são derrubadas, tanta gente morre, tanta gente nasce. Está sempre lá, é como se fosse uma estátua, fosse feita de pura pedra.


Luiz Britto tem uma obra vasta, indo da crônica ao conto, da peça de teatro às memórias.
Foto "Farol da Barra", de twi, retirada do Flickr.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

LEMBRANÇA DE UM AMIGO DISTANTE

Flamarion Silva


Carlinhos era meu melhor amigo. Eu era o melhor amigo de Carlinhos. Um dia nos apaixonamos pela mesma menina. Então Carlinhos e eu brigamos. Carlinhos passou a ser meu pior inimigo. Eu passei a ser o pior inimigo de Carlinhos. Mas, como não bastasse apenas sermos inimigos declarados, provocamos um duelo. Fazia-se necessário saber qual de nós era o mais forte.
Carlinhos era um menino muito magro. Não fiquei intimidado quando arregaçou a manga da camisa e me mostrou seu muque. Em resposta, mostrei-lhe o dedo médio, bastante rígido. Foram contar a meu pai que eu dera o dedo para Carlinhos. Por conta disso, levei uma surra.
Meu pai me batia sempre com o seu velho cinturão de couro. Pude sentir com os dedos as marcas decalcadas nas minhas costas. O meu pai nunca me batera tão forte. A partir daí, criou-se em mim um ódio especial por Carlinhos. Ódio que antes jamais sentira por alguém, e, agora, posso dizer, nem mesmo depois.
Zelito, o novo melhor amigo de Carlinhos, veio me dizer o local.
— Atrás da igreja. Daqui a pouco.
— Vou acabar com ele. Acabo com você também.
— Então vai ser você contra nós dois.
Fui eu contra eles dois. Apanhei de Zelito. Bati muito em Carlinhos. Porrada especial foi um murro que lhe acertei na cabeça. Gabei-me desse murro. Dona Juca, a mãe de Carlinhos, ficou indignada quando soube da briga.
— Ora, meu Deus, mas eram tão amigos!
— “Eram”, respondi. “Eram”, 3a pessoa do plural do verbo ser; pretérito “imperfeito”. Dei-lhe as costas.
— Ora, mas como “é” estúpido. “É”, 3a pessoa do singular do verbo ser, presente do indicativo. Hum!
Naquele tempo sabíamos conjugar verbos.
Namorei a menina alguns dias. Mas a conjugação parece que não foi perfeita e o namoro acabou. Carlinhos foi morar em outra cidade e isso faz... faz talvez uns vinte e sete anos. Nunca mais nos vimos. Soube que Carlinhos enveredou-se no mundo das drogas. Triste.
Engraçado. O que me faz escrever não é a lembrança de um amigo. Lembrança distante, porém, tão viva e rica em detalhes na minha memória. O que me faz escrever é o esquecimento. Esquecimento de um amor que foi maior que a amizade. Amor que não deixou marcas no meu coração. Amor que o tempo apagou.
O que me faz escrever, inesquecível amigo Carlinhos, é o nome. Me diga aí, meu velho, como era mesmo o nome da menina?

Flamarion Silva é autor de O rato do capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, Coleção Selo Letras da Bahia, 2006).

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

É FICÇÃO

Agora aviso quando um texto é ficção porque, quem me conhece, tem a incrível mania de achar que me coloco no que escrevo. Coloco, mas nem sempre e nem em tudo. Nos contos “Fascinação” e “Encantação”, não há uma palavra que tenha relação comigo e, ainda assim, tive que explicar, por exemplo, que a personagem do texto “Fascinação” não era eu.
Ao colocar os dois títulos juntos, “Fascinação” e “Encantação”, vejo que tenho fascinação, que me encanta, o nosso “ão”. Como dizem que a origem de tudo está na infância, lembrei-me de meu avô. Ele era grego, veio para o Brasil com 37 anos, ou seja, em idade já tardia para a assimilação de todos os fonemas de uma língua estrangeira. Eu tinha um gosto especial em pegar meu avô com uma palavra que ele não conhecia: a primeira vez que o peguei foi com a palavra “obsoleto”, ele não soube dizer o que significava. Certo, o assunto detonador foi o “ão”. Ele não conseguia dizer as palavras que tivessem o “ão”. Eu, netinha chata, ficava: “Diga pão, meu avô”. E ele: “Pon”. E eu: “Pão, pão, pão, tão fácil; diga João”. E ele: “Jon”. Não sei como ele me agüentava. Para meu querido avô, que de tão longe veio, dedico todos os textos que tragam “ão” no título.
Que não é o caso deste abaixo: um conto, ou uma crônica na tênue fronteira com o conto, intitulado “As sem-razões da paixão”. Pura ficção, está avisado. GD
----------------------------------------------------------------------------------------------------- AS SEM- RAZÕES DA PAIXÃO
Gerana Damulakis


Nem me pergunte sobre ela, sobre ele, sobre ambos. Não sei de nada. Para explicar as razões de uma paixão que não se realiza são precisos conhecimento e muito mais arte que qualquer psicologia possa achar factível nas palavras. No poema “As Sem-Razões do Amor”, Carlos Drummond de Andrade dá um show de entendimento e a última estrofe coroa o poema, coroa o sentimento, de forma única e, para dizer melhor, de forma completa. Trata, porém, do amor. Paixão é outra coisa.
Aqui, no entanto, não há palavras, versos, estrofes. Aqui há a paixão. Certo é que por vezes arrefece, depois volta. Nunca se tocaram, nem me pergunte qual a razão, mais uma vez garanto não saber. Um dia, faz anos, ele disse que teve uma paixão enrustida por uma amiga e em oportunidade surgida, não criada, calhou de ficarem a sós. Não trocaram uma palavra sobre sentimento ou sobre tesão, apenas se tocaram. Deste toque foram direto para um amasso total. Grudaram. Tinham represado muito desejo. Bastou tocar e explodiu. Excitante, claro que é excitante.
Pensando direitinho, acho que ele contou a historinha já sabendo que ela ficaria excitada, tentada a fazer igual, e a guardaria para sempre na memória. Não deu outra. Ela guardou na memória. O que intriga é a razão da paixão no ar entre os dois. Da parte dela, acho que vem da admiração, da maneira que ela imagina que ele sente as coisas da alma. Da parte dele, não vejo qual razão poderia ser; talvez física, talvez a expansividade dela seja atraente. Quem pode atestar as sem-razões da paixão?
Os anos foram passando e nada fora acrescentado ao suposto romance. Estava ali, entretanto. Estava ali o desejo. Ele ia envelhecendo, ela também obviamente. Mas ele tem duas décadas na frente dela e seu envelhecimento é mais visível nesta etapa da vida. Os pés-de- galinha ao redor dos olhos dele estão tão profundos. O olhar, todavia belo. No total, porém, ele não emanava atração, não tinha qualquer parte ou detalhe sensual. E como despertava essa coisa invisível e poderosa? Ela fica toda contente quando sente isso. E nem pensa em explicações. Quem pensa sou eu, quem matuta razões sou eu.
Um dia tudo retorna, a tensão no ar, ele sem as rugas no rosto, só a poesia na alma. Ela, querendo flutuar nas nuvens, nas nuvens – lugar onde apenas a paixão é capaz de nos colocar. Ela entra no escritório dele, fala coisas inteligentes, tenta impressioná-lo, tenta reter aquele olhar de admiração que voltou e, pronto, ela está totalmente enamorada outra vez. Ele pensa bastante no que não houve. Não sei se pensa no que pode haver. Será? Ele está velho e ela está velha. Continuamos sem entender as razões da paixão. Ano entra, ano se vai. E a vida está passando. Mas nós, seguramente, nos apaixonamos.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

CANTO DE EURÍDICE


Gustavo Felicíssimo


Senta e escuta o orvalho no vale
e o verde do campo
enquanto contemplo a tua carne vertiginosa
e te falo sobre a vida
onde apenas os mortos sobrevivem.
Os sonhos, meu amado,
me faziam companhia durante o crepúsculo
e neles te encontrava,
o teu canto escutava,
mas te alcançar já não podia.
Pedi aos deuses que viesses em hora mágica,
quando a luz se avizinhasse
e me prendesse nos teus abraços,
que me lembrasse dos teus passos
e o sabor dulcíssimo do beijo.
Ofereci-me em sacrifício,
despi-me das fontes, das nascentes
e passei a mendigar pelos caminhos;
coroada de espinhos
vi a existência caindo sobre os pântanos.
Atirei-me ao fogo
e além do fogo nada mais conheci;
resisti à dor e a tudo que há de vil,
desejei adormecer
e adormecer também não pude.
Aceitei os desígnios divinos
e feito um pégaso preso ao arado,
entre as cinzas ardendo,
luzi meu próprio sofrimento;
recolhi-me ao tormento, insignificante.
Silenciei-me na insana luta
e frágil feito a flor do jasmineiro,
sôfrega, esperei por tua chegada
como se espera um deus
junto à tarde imaculada das madressilvas.
Dá-me agora, amor, o sabor da tua pele,
o prazer inenarrável do sorriso
e afasta dos olhos meus tanta amargura;
segura-me pela cintura
e toma posse do que é seu.



Gustavo Felicíssimo é poeta, ensaísta e editor. Tem no prelo a obra FRUTO DE OURO, A POESIA GRAPIÚNA EM QUESTÃO (ensaios sobre a obra de 23 poetas grapiúnas).
Foto "Eurídice", de kairos_dd, retirada do Flickr.

CONVITE DE LETÍCIA COELHO


Convido você a participar da próxima edição do Coletânea Artesanal intitulada "Metamorfose" que estará no ar no dia 30 de novembro http://www.coletaneartesanal.wordpress.com/Envie seus textos até o dia 28 de novembro de 2008 para leticia.lo.coelho@gmail.com ou http://br.mc523.mail.yahoo.com/mc/compose?to=lunnaguedes@gmail.com


Metamorfose

A ilusão que nos acompanha a cada passo...
Aquele que bem pode ser o último, antes da queda, que leva ao fim, ao declínio.
O medo se transforma em inimigo!
E você não mais se reconhece quando olha no espelho - não possui mais olhos para ver o que está lá.

O desafio de ter o último pensamento...
Que pode ou não ser perfeito, que pode ou não definir toda uma vida, uma história e pode bem ser o fim de uma existência
porque nunca mais será como foi um dia.
Sofreguidão...
Sentir que só existe uma certeza:
Todo mundo um dia morre.



Tela "Sol Poente", de Tarsila do Amaral, retirada do site oficial: http://www.tarsiladoamaral.com.br/

SEM GUARITA

Luís Antonio Cajazeira Ramos


A saudade reside em meu portão.
Às vezes entro e saio sem notá-la.
Quando a encaro, porém, falta-me a fala.
Não há palavras para a solidão.

Terrível o lugar de seu plantão.
Sentinela invasora, não se abala.
Se entro ou saio, fuzila-me sem bala.
Caso contrário, prende-me no chão.

Tento ficar em casa em companhia.
Tento entrar e sair acompanhado.
Mas seu olhar me caça noite e dia.

Penso mudar de casa e dar um basta.
Mas nessas horas ela adianta o fado.
Mais se aproxima, e tudo mais se afasta.


Luís Antonio Cajazeira Ramos é autor de Fiat breu (Papel em Branco, 1996), Como se (Editorial Letras da Bahia, 1999), Temporal temporal (Relume Dumará, 2002) e Mais que sempre (7Letras, 2007).

domingo, 19 de outubro de 2008

ERSATZ

Manuel Anastácio









Em vez do ramo de flores
Que não te ofereço
Porque uma flor cortada
É um membro da terra decepado,
Ofereço-te um ramo de dores ardentes
Em amarelo iluminado.
São já tuas as flores
Em mim nascentes,
Porque em mim nada floresce
Que a ti não deva as sementes.


Manuel Anastácio é poeta, assina o blog Da Condição Humana (http://literaturas.blogs.sapo.pt/ ,ou use a entrada pelos meus favoritos).
Foto de marciookabe, flores numa Praça em Salvador, Bahia, retirada do Flickr.

sábado, 18 de outubro de 2008

SONETO DOS RESTOS


Ildásio Tavares

Cultivem outros requintadas flores,
exóticas, perfumes envolventes:
da corriqueira flor indiferentes,
em doçura de pétalas, nas cores.

Cultivem rubras rosas, seus ardores
ou as que, brancas, são evanescentes;
não as que são comuns, mas diferentes,
que para os olhos sejam esplendores.

Eu hei de cultivar, fiel assim,
flores selvagens que arranquei de mim
e que fizeram da ansiedade o leito.

Não são gardênias, lírios, alecrim,
são restos, vão chegando quase ao fim,
desamparadamente insatisfeitos.


17.X.08
Itapuã 5

Para os que não sabem, acima, local e data em que o poema nasceu e o n° da versão pela qual passou o poema em modificações. Considero como data a do nascimento.
Depois é o crescimento. Somos assim, nascemos num dia que nunca muda e depois temos um currículo. Este soneto, talvez ainda passe por modificações e aí teremos Itapuã 6,7,8 etc.

Tela "O Lago", de Tarsila do Amaral, de 1928. Retirado do site oficial http://www.tarsiladoamaral.com.br/

CONVITE



VENHAM PARTICIPAR DA DISCUSSÃO COM JOÃO HENRIQUE,
De políticas públicas de cultura.


Com quase três milhões de habitantes e um orçamento beirando os três bilhões de reais, a cidade de Salvador carece de uma política pública de inclusão cultural. Pensando nisso, os escritores Ildásio Tavares, Oleone Coelho Fontes e Antonio Lins, a pedido do prefeito João Henrique, prepararam um projeto denominado CULTURA E ARTE PARA TODOS, que será inserido no programa de governo do candidato e apresentado a artistas, intelectuais e produtores de cultura, em coquetel, no próximo dia 22 de Outubro, Quarta-feira, às 19 H, no Café Machiavelli (Pirâmide do Rio Vermelho) Rua João Gomes, 249. Rio Vermelho.

É CERTO?

Gerana Damulakis

Há alguns assuntos miúdos que são capazes de desestabilizar toda uma harmonia anteriormente construída. E há assuntos graúdos que derrubam por completo a teia urdida por uma existência atenta. O equilíbrio leva anos para ser logrado; a desarmonia se desfaz como bolha de sabão. Eu tento entender o mundo e sei que, ao fim e ao cabo, não adianta nem tem serventia porque logo não precisaremos mais entender as coisas e, ainda que estejamos aqui, tampouco serve a compreensão. Eis que se desmancham tão facilmente quaisquer edifícios de segurança, certezas, tranqüilidade.
Este é um discurso típico de quem desaprendeu como se vive — vale perguntar se alguma vez soube ou acertou viver — e sequer vislumbra a mais tênue esperança de certo dia vir a conseguir pelo menos, quando mais não seja a paz, pelo menos a completa tolerância quanto às desventuras, os dissabores, os acasos da vida.
É certo tomar conhecimento dos transtornos mais profundos da alma — não gosto da palavra “alma”, remete mais a fantasmas do que a espírito, estado anímico etc — , dizia eu dos transtornos absurdos da alma, da total inadequação à vida, talvez por conta da carência insuportável, da carência e do vazio, é certo ficar ciente de tudo isto?
Não gosto de filosofia, na verdade, um quebra cabeça dos pensamentos que cultivamos, mas que, apesar de bela quanto às suas quatro faculdades, acaba sempre sem respostas para as três perguntinhas básicas. Não gosto de psicologia, sou pequena para ela, termino chorando. Gosto da literatura, da criação de vidas, porque funciona como se cada autor fosse um Deus, com todo o poder nas mãos. Tentemos, pois. Este texto é pura ficção: existe um "ela" que anda meio perdida porque perdeu o pai, ela afunda, sabe sobre tudo o que sente, mas não consegue resolver e blá-blá-blá. Não alcancei a literatura, só arranjei mais uma pergunta: é certo transformar tudo em literatura, a grande escapatória?

Foto de Ondina (bairro de Salvador, Bahia), onde moro, retirada do Flickr, pertencente a M.Amaral Silva.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

O AUTOR DA OBRA-PRIMA O TAMBOR

Gerana Damulakis

Em 16 de outubro de 1927 nasceu Günter Grass, Prêmio Nobel de Literatura de 1999.
Tenho vários títulos de Günter Grass: A ratazana, Anos de cão, Meu século, Nas peles da cebola, Um campo vasto, Passo de caranguejo. Mas é O tambor que faz parte da minha lista de romances inesquecíveis: uma obra-prima. O romance dá a real dimensão do quão alienada a humanidade pode ser em certos momentos e circunstâncias.

PELOS UMBRAIS DA CATEDRAL

Gláucia Lemos


Esta crônica dedico aos profissionais do jornalismo,
em cujas redações vivi um tempo de muita alegria.




A página branca na minha frente. Branca e em branco. Ainda não sei como vou usar este espaço generoso que se me oferece. Mas vou fazê-lo, sim.
Ando com saudade de escrever minha crônica, o que uma fase mais tumultuada me tem impedido. A gente se acostuma com todo fazer prazeroso.
Quando assinava coluna em jornal, a abertura da coluna era o melhor momento do trabalho, por ser a hora de redigir a crônica. Em seguida vinham os drops noticiosos que não requeriam mais do que dar forma agradável às notícias da hora na minha área. Era um trabalho que eu gostava de fazer, era a minha comunicação com o mundo, a que ia ao público com o imediatismo que não se encontra em nenhuma outra comunicação feita pela linguagem escrita. Em compensação ela é também a única que vive tão pouco, a menos duradoura, e nisso perde longe para os livros. Consumida, consome-se também sua razão de ser, e é esquecida.
Nunca tive mais profunda compreensão da tamanha brevidade, do que diante de uma desagradável coincidência que me ocorreu, desagradável na época do fato.
Uma manhã eu saía de uma farmácia na avenida Joana Angélica, tinha chovido à noite, por isso a rua estava molhada e havia muitas poças, principalmente nas calçadas que sempre foram mal conservadas. Cuidadosa para não enfiar os pés em uma delas, caminhava olhando para o chão, quando recebi a surpresa. Em um farrapo de jornal, molhado, amarrotado e sujo identifiquei sem dificuldade um pedaço da minha coluna publicada na véspera. Justamente em uma parte do meu texto, a folha fora rasgada. Minha crônica ali, emporcalhada e pisada por quantos transitavam na avenida, foi como se alguém me aplicasse um tapa. Precisei conversar comigo mesma, demoradamente, respirar fundo, para deixar de me sentir insultada, e poder entender que aquele é o destino dos jornais. As pessoas lêem e jogam fora, tudo o que há nele é descartável, não é desimportante, mas são muito breves os seus cinco minutos de estrelato. Na minha infância, com jornais se embrulhava sabão nos balcões dos armazéns de secos e molhados, antecessores dos supermercados. Os textos assinados por mulheres menos vaidosas que eu e por todos os demais jornalistas estavam destinados àquela sorte. Por que eu estaria tão ofendida? Tive que me curvar àquela realidade e aceitar que a vida dos textos jornalísticos é breve, por sua própria natureza, ou finalidade.
No dia seguinte, lá eu estava escrevendo minha crônica, que saía 4 vezes por semana, e burilando a redação dos drops para melhorar a secura das notícias, com cuidado para não emprestar literatura à objetividade do jornal. Aí, já bem consciente de que viveriam o tempo de um hibisco, não mais, e renasceriam no dia seguinte, sob outras formas e outras palavras, obedecendo ao ciclo vicioso das colunas de jornal, porque todos temos os nossos destinos e também temos que considerar os destinos das coisas e das palavras.
Com o tempo aconteceu a regulamentação da profissão de jornalista, e eu, que não me sindicalizara, e fazia jornalismo pegando carona no meu gosto pela escrita, fiquei na contramão, não posso mais assinar coluna se não versar sobre uma das minhas formações.
Mas, quem disse que o vírus da crônica foi curado? Não tem cura. Cá estou, pelos umbrais da catedral dos blogs, cronicando com capricho que tanto bem me faz, e, afinal, eu não sei mesmo fazer outra coisa que não seja arrumar palavras.
Agora a página branca ainda é branca, mas não está mais em branco. A não ser que esta reflexão egocêntrica sobre o meu próprio fazer, e os laços que nos atam àquilo que criamos, não equivalha mais que a uma página branca em branco. Ademais, eu mesma concordo que os egocêntricos são tão chatos!

Gláucia Lemos lançará o romance premiado Bichos de Conchas, dia 21/10, terça-feira, às 17:30 na Livraria Saraiva, espaço Castro Alves, do Salvador Shopping. Foto de Vi, retirada do Flickr.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

ASSIM

Goulart Gomes

Foi assim: quando eu percebi, já estava falando essa droga de assim em cada frase. Assim, de repente. No começo eu observava todo mundo falando assim, e achava ridículo. Mas mesmo assim, não pude me controlar. Bem que o Cristo dizia assim: “Orai e Vigiai”. Vacilei e fiquei assim, falando assim o tempo todo. Estou meio-assim-assim. Quando eu era criança, pequenininho assim, a praga era o “né”. Todo mundo parecia japonês, falando “né” ao final de cada frase. Assim também era o Pelé, que finalizava as falas assim: “Entende? Entende? Entende?”. Por último, veio um político famosíssimo, que assim que termina cada frase, diz: “Sabe? Sabe? Sabe?” Olha que ele nem fala tão difícil assim, como seu antecessor. Todo mundo entende, sabe? Né assim que o povo todo fala? Quando os Secos & Molhados faziam sucesso, todo mundo falava “assim assado”, que é um “assim” metafórico, engajado. Depois teve o Peninha, que dizia que “de repente eu me vi, assim, completamente seu”, mas nem assim o “assim” pegou. Assim se passaram muitos anos... Dito assim isso tudo parece uma besteira, mas a coisa é seria, por isso, assim mesmo é preciso repetir. Assim, eu não sei se isso tudo começou com algum apelo mercadológico, personagem de novela, entrevista de jogador de futebol ou refrão de pagode, o certo é que virou uma pandemia assim. Será que Zaratustra falava assim? Assim que quase conseguimos exterminar o mal dos gerúndios, propagado oralmente por milhares de operadores(as) de telemarketing, já nos defrontamos com outro problema! Assim não dá! Assim não dá! Assim mesmo, não podemos nos render. Assim, eu recomendo que você comece a observar o modo como está falando, “tá ligado?”, para evitar ficar repetindo esses cacoetes que surgem assim, não se sabe de onde e que grudam mais que carrapato. Senão, assim você vai acabar passando por otário. Simples assim.Assim seja.

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terça-feira, 14 de outubro de 2008

DATA DE NASCIMENTO DO POETA e.e.cummings

Gerana Damulakis



Em 14 de outubro de 1894 nasceu e. e. cummings.

Segue o repeteco da tradução feita por Manuel Anastácio do poema "I carry your heart with me", postagem de dezembro de 2007 aqui no blog da leitora.
Na minha lista de poemas inesquecíveis, este de e.e.cummings tem lugar garantido.












Trago o teu coração comigo (guardo-o dentro
do meu coração) nunca o deixei noutro lugar (onde quer
que vá, vais comigo, meu amor; e o quer que seja feito
apenas por mim, é por ti feito, minha querida) temerei

jamais qualquer destino (pois és o meu destino, minha doçura) quererei
jamais qualquer mundo (que a tua formosura é todo o meu mundo, minha verdade)
e és tu o que uma lua sempre possa ter significado
e o quer que tenha sempre um sol cantado, és tu

aqui está o mais profundo segredo a todos velado
(aqui está a raiz da raiz e o botão do botão
e as alturas das alturas de uma árvore chamada vida; que cresce
para além do que a alma pode esperar ou o pensamento esconder)
e é esta a maravilha que mantém as estrelas separadas

Trago o teu coração (guardo-o dentro do meu coração)

SOBRE QUANDO NIETZSCHE CHOROU



Irvin D. Yalom
foto do escritor retirada do seu site www.yalom.com/



Goulart Gomes

Há alguns anos deixei de ler livros no estilo "romance biográfico". Isso porque me incomodava, sobremaneira, não conseguir distinguir onde terminava a realidade e onde começava a ficção. O estopim para essa resistência foi uma biografia de Galileu Galilei, da coleção "Os Homens que Mudaram a Humanidade" (Editora Três, 1974), escrita por Filippo Garozzo. Atitudes, diálogos, gestos, sentimentos e até pensamentos do notável cientista italiano foram explicitados de tal forma que até parece ter sido o próprio a escrever o livro. Ao mesmo tempo em que isto implica em um mérito para o autor, pela sua pesquisa biográfica, também me provocava o incômodo de saber o quanto, de tudo, era verdade.
Por isso resisti tanto a ler o livro do renomado psiquiatra Irvin Yalom, da Universidade de Stanford, QUANDO NIETZSCHE CHOROU, aliado ao fato da minha natural resistência a ler os títulos que estão sempre na lista dos "mais vendidos". Mas, não só isso. Nietzsche foi um dos ídolos da minha juventude. Adquiria, nos sebos, tudo que encontrava sobre ele, até em idiomas que eu não sabia ler, como o francês e o italiano. O "Zaratustra" impressionou toda uma geração. E o mais incrível é que até a sua morte, em 1900, nem o autor nem o livro tiveram o reconhecimento merecido. Como ele bem sabia, escrevia para o futuro! Por isso, eu temia que a sua genialidade não estivesse fielmente retratada no romance.
Mas, após ter assistido o filme, no qual o ator Armand Assante representa o filósofo alemão magistralmente, tomei o livro emprestado e resolvi lê-lo. Apesar de ter apenas dois personagens centrais, que dialogam a maior parte do tempo, Yalom conseguiu inserir algumas tramas no texto, sendo as principais delas a crise de metanóia (termo formulado por Carl Gustav Jung, para designar a "crise de meia idade") do doutor Josef Breuer e os dramas existenciais de Nietzsche. Esses diálogos tornam-se um verdadeiro "xadrez psíquico", no qual os dois gênios primeiro se confrontam e depois se ajudam em suas dificuldades.
Mérito para o Dr. Yalom, também, por inserir, ao final do livro, um posfácio, onde estabelece os limites entre a ficção e a realidade, diferenciando as bases concretas da sua obra do seu exercício de imaginação. Enfim, uma obra provocativa, que pode, ainda, trazer um questionamento íntimo ao leitor, a partir das suas abordagens filosóficas e psicológicas. Longe de poder retratar com profundidade os conceitos apresentados no livro, o filme também conseguiu filtrar seus principais momentos, tornando-se um "resumo" para quem não tiver "fôlego" para a leitura das 400 páginas. Mas vale a pena o esforço, de ver o filme e de ler o livro. E, depois, conhecer um pouco mais das idéias de Friedrich Nietzsche.

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segunda-feira, 13 de outubro de 2008

MANUEL BANDEIRA (19/04/1886 - 13/10/1968)


REPETIÇÃO DA POSTAGEM "UM CENTÃO" EM HOMENAGEM A MANUEL BANDEIRA NO DIA DE SUA MORTE: 13 DE OUTUBRO

Gerana Damulakis

Manuel Bandeira foi o primeiro poeta que li, não foi o primeiro que ouvi, pois que ouvia muitos poetas serem declamados (isto é outra história), mas Bandeira foi o primeiro que li. E me apaixonei não apenas pela poesia e, sim, pela literatura de um modo definitivo, vida afora. Como a poesia de Manuel Bandeira traz a emoção de forma tão intensa e me arrebata sem exceções, optei pelo poema intitulado “Antologia”. Trata-se de um centão.
Um centão é uma composição poética (ou musical) elaborada com versos de vários autores ou de apenas um autor, assim como diz o nome: “manta de retalhos”, que vem do latim “cento”. A origem do centão é greco-latina: o poeta de então clamava por poemas homéricos e virgilianos como ponto de partida para construção de seu centão. No caso de Bandeira, o poema “Antologia” é um centão com seus versos.
Certa noite, resolvi me dedicar ao centão e procurei a origem de verso por verso, todos pertencentes a poemas memoráveis de Manuel Bandeira. Primeiramente seria maravilhoso sentir “Antologia”, perfeito como se sua feitura não tivesse nada de uma “colcha de retalhos”: fruto da magia do mestre.
Vou numerar os versos para facilitar a decifração do lugar original de cada um deles.

ANTOLOGIA

1 A vida
2 Não vale a pena e a dor de ser vivida.
3 Os corpos se entendem mas as almas não.
4 A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

5 Vou-me embora p’ra Pasárgada!
6 Aqui não sou feliz.
7 Quero esquecer tudo:
8 — A dor de ser homem...
9 Este anseio infinito e vão
10 De possuir o que me possui.

11 Quero descansar
12 Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
13 Na vida inteira que podia ter sido e que não foi.

1 4Quero descansar.
15 Morrer.
16 Morrer de corpo e alma.
17 Completamente.
18 (Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)

19 Quando a Indesejada das gentes chegar
20 Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
21 A mesa posta,
22 Com cada coisa em seu lugar.

Versos 1 e 2: do “Soneto Inglês”.
Verso 3: de “Arte de amar”.
Verso 4:, de “Pneumotórax”.
Versos 5 e 6: de “Vou-me embora p’ra Pasárgada”.
Verso 7: de “Cantiga”.
Verso 8: de “Presepe”.
Versos 9 e 10: de “Resposta a Vinícius”.
Verso 11: de “Cantiga”.
Verso 12: de “Poema só para Jaime Ovalle”.
Verso 13: de “Pneumotórax”.
Verso 14: de “Cantiga”.
Versos 15, 16 e 17: de “A morte absoluta”.
Verso 18: de “Lua nova”.
Versos 19, 20, 21 e 22: de “Consoada”.

SONETO INGLÊS nº 2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão
A coragem de ser um novo santo a vida
Sem fé num mundo além do mundo. E então
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

CANTIGA

Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.
Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.
Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.

PRESEPE
................
Mais do que tudo isso
O amedrontaria
A dor de ser homem,
O horror de ser homem,
— Esse bicho estranho
Que desarrazoa
.......................

RESPOSTA A VINÍCIUS

Poeta sou; pai, pouco; irmão, mais.
Lúcido, sim; eleito, não.
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.

Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar, feliz
— Ah feliz como jamais fui! —
Arrancando do coração
— Arrancando pela raiz —
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui
.


POEMA SÓ PARAJAIME OVALLE

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor [tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um [cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas [mulheres que amei.

A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e de alma
.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.


LUA NOVA

Meu novo quarto
Virado para o nascente:
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.

Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mênstruo incruento das madrugadas.

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:

Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
- Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- Esse sol da demência
Vaga e noctâmbula.
O que eu mais quero,
O de que preciso
É de lua nova

CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.


Aí estão os versos do centão, alguns poemas não foram reproduzidos integralmente por conta do tamanho e “Vou-me embora p’ra Pasárgada”, por ser muito conhecido e facilmente identificável.
Ressalto que Bandeira morreu em 1968; há 40 anos, portanto. A melhor homenagem é sempre a leitura de seus poemas.

domingo, 12 de outubro de 2008

SEMPRE BANDEIRA



Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira,

teu nome é para nós, Manuel, bandeira.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

AO CADÁVER DESCONHECIDO


Aramis Ribeiro Costa


Depositado sobre a lage fria
Álgido, exangue, rijo e dissecado
Guardas, no corpo teu, formolizado
Exaustivas lições de Anatomia.

Teus órgãos, veias, músculos que, um dia
Foram teu corpo vivo e respeitado
São peças de um cadáver retalhado
De alguém que mais ninguém conheceria.

Devias ter, no entanto, um monumento
Um dia consagrado, um pensamento
Do mundo contristado e agradecido.

Homem, mulher, criança, não importa!
Salvando vidas, tua carne morta
Revive, ó imortal desconhecido.

Aramis Ribeiro Costa tem 17 títulos publicados: romance, novelas, contos, poemas e histórias infantis. Este poema está em Espelho Partido (FUNCEB, 1996).

MIRADA

Gerana Damulakis


para os grandes CDA e Mario Quintana

Possuo uma ânsia de andar este caminho

e concentrar as alegrias momentâneas

de viver completamente

uma fantasia que se fez real.

Possuo tanta angústia - muita angústia -,

muita consciência e muito medo

e uma dúvida constante nestes instantes

que me cobre e me pergunta

sobre o limite.

Possuo lágrimas de emoção

e risos de satisfação.

E possuo, finalmente, a certeza da tênue

fronteira entre a plenitude da vida

e o abismo do fim

- e daí me consumo.

De Guardador de Mitos. Homenagem a Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana, Praça da Alfândega, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, por rvolcan, retirada do Flickr.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA 2008


Gerana Damulakis

Anunciado o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura 2008: Jean-Marie Gustave Le Clézio.
O romance O peixe dourado (Companhia das Letras, 2001) é uma bela amostra da literatura do novo Nobel, nascido em Nice, em 1940. Comentarei em breve.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

ADORMECIDA


Castro Alves

Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
Pra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! - tu és a virgem das campinas!
"Virgem! - tu és a flor de minha vida!..."

De "Espumas Flutuantes".
Foto da Praça Castro Alves, em Salvador - Bahia, de koichimura, retirada do Flickr.

POEMA INESQUECÍVEL: A canção de amor de J. Alfred Prufrock, de T. S. ELIOT


Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão . . .
Oh, não perguntes: "Qual?"
Sigamos a cumprir nossa visita.

No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.

Tradução de Ivan Junqueira.

O poema é longo. Fico dividida entre a tradução de Ivan Junqueira e a de João Almeida Flor. Segue outro trecho, mais ou menos na metade do poema; desta vez a tradução é de Almeida Flor.

Vou correr o risco
De perturbar o universo?
Num só minuto há tempo
Para decisões e revisões, a revogar noutro minuto.

Pois já conheço todas bem, conheço todas -
Sei as noites, as tardes, as manhãs,
Às colheres de café andei medindo a minha vida;
Sei que se esvaem as vozes em breve agonia
Abafadas na música de um quarto mais além.
Como havia eu de ousar, assim?

sábado, 4 de outubro de 2008

UM POEMA DE MANUEL ANASTÁCIO

Aestus


A terra cheira a vinho abafado.
As couves, tenras, aconchegam caracóis.
As vides, soltas, erguem falanges, tecem fantasmas.
A terra cheira a vinho abafado.
A mosto guardado em formol,
Como a doçura de quem nunca morreu.
Só mais umas gotas desta dor que, ardendo
Sabe a mel.
Em vez de fumo, nevoeiro,
E em vez de brasas, bagas de romã.



Manuel Anastácio assina o blog Da Condição Humana (http://literaturas.blogs.sapo.pt/) e está preparando um livro de poemas.

Foto de marina vrgs, da série "por dentro - romã", retirada do Flickr.

VERSOS INESQUECÍVEIS



Gerana Damulakis

Sempre que tenho vontade, coloco aqui versos que estão na minha memória e ficam se repetindo em mim. Basta ouvir a palavra "esperança" para lembrar o poema "Viver", do livro As impurezas do branco, de Carlos Drummond de Andrade. Inesquecível a última estrofe:

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?

E aproveito para ir postando fotos dos monumentos aos poetas pelo Brasil. Depois de Cabral em Recife, Drummond no Rio de Janeiro. A foto é "Carlos Drummond de Andrade em Copacabana", de Mauricio M. Favero, retirada do Flickr.

AUSÊNCIA


Gerana Damulakis


Senti muito a ausência de Kátia Borges na nossa reunião de ontem. Eu havia prometido, na anterior, que leria quatro poemas. Fiquei repetindo isto, Kátia. E, pior, enumerando-os, mas não fiz a leitura. Luís Antonio Cajazeira Ramos atacou com Fernando Pessoa e leu os 14 "Passos da Cruz", com repeteco para alguns passos. Imagine o quanto reclamei, dizendo que tenho limite para ouvir poesia em voz alta sem interrupções. Aquela coisa: Lima fica rindo quando eu digo para Luís parar de ler e Luís não atende, obviamente. Lima Trindade leu Eugênio de Andrade; já o escritor Carlos Emílio C. Lima achou o poema fraco. Gláucia Lemos, bela por dentro e por fora, feliz com seu mais novo romance premiado e publicado. Ela e eu não lemos, só ouvimos. A parte que se refere à gastronomia estava péssima: foi a pior reunião em se tratando do que comemos, uma lasanha horrorosa e dois pudins (dois!!!). Vai abaixo um dos quatro poemas que eu pretendia ler para você. É de David Mourão-Ferreira

Tombam secretas madrugadas

e rios densos de pavor

de tuas pernas devassadas

por meu instinto e meu amor.

Em teus joelhos levantados

tocam as pontas de uma estrela.

(Quaisquer receios de pecados

empalidecem à luz dela...)

E as tuas ancas repousadas,

pra que o meu corpo se concentre,

esperam, cativas - que as espadas

de amor se cravem no teu ventre.

Do livro A secreta viagem

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O BRUXO DO COSME VELHO


Ildásio Tavares


A 29 de setembro próximo passado comemorou-se o centenário deste que é um dos grandes escritores da língua portuguesa e, sem dúvida, o seu maior ficcionista. Joaquim Maria Machado de Assis, pobre, mulato, epiléptico, filho de uma lavadeira do Morro do Livramento, é um excelente exemplo da capacidade do ser humano de ultrapassar as suas contingências e subir ao primeiro escalão da espécie humana. Entre outras coisas, fundou a Academia Brasileira de Letras para onde arregimentou a fina flor da inteligência brasileira de sua época que aceitou sua liderança de olhos fechados.
É, inclusive, um tapa de luva na cara dos racistas que um afro-descendente, não só tivesse o respeito e a admiração de todos escritores do seu tempo, mas também que o estilo de narrar de Machado de Assis estivesse longe de identificar-se com uma África selvagem e primitiva. Ele é dos nossos escritores o que melhor esgrimiu a finura, a classe e a sutileza, além de ser um profundo mergulhador no mar desconhecido da alma humana de onde nos trouxe perfis imortais. Não será ocioso repetir como o jogo de ambigüidade no romance Dom Casmurro criou uma dúvida eternamente insolúvel a respeito da honestidade conjugal de Capitu.
Esta ambigüidade é conseguida pura e simplesmente pela sofisticação narrativa. através do ponto de vista do narrador implicado Bentinho que é a única testemunha que nos relata a maneira de agir de sua mulher, uma personagem que vem sendo construída por ele em flash-back, até que culmina com a acusação, que ele procura comprovar para o leitor, a fim de justificar a própria crueldade com sua mulher. Afinal, não há nenhuma certeza, e até um júri já foi feito para decidir se Capitu traiu ou não traiu. Como um verdadeiro bruxo da narrativa, Machado se limita a expor as peças do quebra-cabeça e deixar para o leitor a tarefa de armá-lo.
Se grande romancista, Machado não foi menor no conto e na poesia. Alguns de seus contos ou novelas são antológicos, são leituras obrigatórias tendo encantado as gerações. "Missa do Galo" é um conto cuja linguagem poderíamos apontar como calcada numa atmosfera. em que a sutileza, e os entretons governam a ficção machadiana e não podemos arriscar um palpite sobre o comportamento feminino, este enigma que Machado gostava de construir. Em "O Alienista" temos um fantástico estudo psicopatológico da natureza humana raiando ao absurdo em que o personagem principal é a loucura humana. Outro conto magistral e que todos deviam ler é "O Espelho".
Um dos primeiros cultores deste gênero tão difícil no Brasil, Machado escandiu a narrativa curta com um primoroso tratamento de linguagem, uma prosa castiça, ritmada e de excelente seleção vocabular que superava o gênio português Eça de Queiroz.
A crônica machadiana é essencialmente leve e requintada e nela, ele consegue uma dualidade difícil: captar o sentimento de seu tempo e fazê-lo atravessar o tempo.
Para mim, de grande beleza, com a incrível capacidade de unir pensamento e sentimento, é, sobretudo sua poesia.

Ildásio Tavares assina mais de 10 títulos como poeta, mas tem romances, contos, ensaios e é compositor. Foto "Cem anos", de ailana09, retirada do Flickr.

Ó PAI


Gerana Damulakis

"Por que me abandonaste?"
Cristo


Qualquer dia, qualquer mês
e estou só.
Só as estrias de luz mostram o ar
carregando suas massas de partículas
redondas, tantas quantas são
as pessoas da multidão.
Lá fora é onde deve haver alguém.
Por que tarda?
Estou em plena tarde
sem perder o relógio de vista.
Preciso dizer-te isto, meu Pai,
que já vivo a minha tarde
e tenho medo.



Já editei neste blog o poema "Ó Pai". Mas é outubro, mês que levou meu pai, meu amor maior. Que imensa saudade, e dor. Quando escrevi este poema ele estava vivo e era a minha âncora, o meu pilar (um medo e ele resolvia) e poderia viver ainda (jamais ficou doente). Todavia há os acidentes de percurso. Fica mais difícil aceitar. Dá vontade de virar uma menininha e gritar: "Eu quero meu pai". Sem ele, eu sou nada, ou, por outra, sou lágrimas.

Foto "Cristo Redentor", Rio de Janeiro, uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno, de Leonardo Paris, retirada do Flickr.

POEMA

Gerana Damulakis

Com o poeta João Cabral de Melo Neto se faz uma viagem plural, às vezes com os pés no chão, achando que cada coisa foi bem posta em seu lugar, mas por vezes há uma sensação tal como se

"nadando/ em rios invisíveis".

Quatro versos inesquecíveis de Cabral:

Há vinte anos não digo a palavra

que sempre espero de mim.

Ficarei indefinidamente contemplando

meu retrato eu morto.

De "Poema", em Pedra do sono.



João Cabral de Melo Neto, Recife, Pernambuco, foto de marcusrg, retirada do Flickr.