segunda-feira, 29 de outubro de 2007

150 ANOS DE MADAME BOVARY


A edição comemorativa dos 150 anos da publicação do romance Madame Bovary, de Flaubert, pela Nova Alexandria, traz a íntegra do processo movido pelo Ministério Público de Paris contra o texto que ofendia a moral e a religião. A inclusão do processo no volume torna possível uma avaliação sobre o modo como foi recebido o romance, ainda que, pela ocasião em que se deu, Madame Bovary tivesse sido publicado na Révue de Paris, não estando em livro todavia. É tal o grau da mistura entre autor, personagem e linguagem que não se sabe quem está sendo agredido, se Gustave Flaubert, se Emma Bovary ou se o estilo do livro. Diante disso, fica imortalizada também a exclamação de Flaubert: “Madame Bovary, c’est moi!”.
O subtítulo “Costumes de província” é importante para começar a formação da idéia em torno do que se pode esperar: uma história banal dentro de um cotidiano mais banal ainda e que, talvez por isso, tenha alcançado a tragédia. Vale lembrar que Henry James definiu o romance sobre a saga de Emma como o “épico do comum”. Um comum com tal força que foi parar no dicionário: o “bovarismo” acabou por indicar a tendência de certos espíritos romanescos de fugir da realidade e emprestarem a si mesmos uma personalidade fictícia, numa definição usando um pouco dos dois dicionários, o Aurélio e o Houaiss.
Emma Bovary não consegue cumprir o destino tedioso guardado para as mulheres na vida privada burguesa e idealiza uma vida apaixonante e um viver apaixonada. Deixar de ser o que toda mulher deveria ser, levou-a ao trágico desfecho. É o olhar crítico para a sociedade oitocentista que abala tal sociedade, ou que a ameaça; enfim, é a literatura realista abrindo uma via de leitura, além do aceitável ou desejável.
A professora Eliane Robert Moraes, da PUC-SP, tem uma colocação interessante diante do reconhecimento da imparcialidade do texto de Flaubert quando o narrador não demonstra compaixão nem desprezo, tampouco apelo moral, como se o autor estivesse “transferindo para o leitor a desconfortável tarefa do julgamento”. Eliane atenta que assim fundou-se um novo pacto entre a literatura e seu público: “Não mais o pacto encarnado por Madame Bovary que se perdia nos romances para compensar a banalidade da vida, mas aquele do ‘leitor hipócrita’, cúmplice das incertezas de seu próprio criador”. Adiante com a argumentação e acrescentando a reunião dos poemas de Charles Baudelaire, As Flores do Mal, igualmente causadora de processo, a professora conclui que há 150 anos nasciam as duas primeiras obras-primas do modernismo.
A edição comemorativa é primorosa e a leitura dos autos da ação movida contra Flaubert concorre para aumentar o envolvimento do leitor com o clássico da literatura francesa. É sempre um prazer revisitar Emma e certas cenas antológicas, como a do fiacre, ou qualquer outra dentre as “artes” de Emma.

Gerana Damulakis

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

DORIS LESSING, PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA 2007


Surpreende que o Prêmio Nobel de Literatura 2007, anunciado no último dia 11, tenha saído para Doris Lessing, não pela falta de valor de sua obra, mas porque, talvez, seu nome e o prêmio combinassem mais se o ano fosse qualquer um da década de 90, quando certos títulos foram muito festejados.
Na autobiografia em dois volumes, Debaixo de minha pele e Andando na sombra, ambos editados aqui pela Companhia das Letras, respectivamente em 1997 e 1998, Lessing deixa claro que gostam de classificá-la como “romancista das barreiras raciais, depois como escritora comunista, depois como profeta das feministas, depois como uma mística da ciência-ficção”, mas não é nada disso, ela confessa que só está escrevendo sobre o que conhece, sobre o que tem vivido. O interessante é que Doris Lessing acha que a interpretação das feministas sobre sua obra é a mais errada, pois a colocaram como ícone literário do feminismo, quando para ela, “fora as tragédias da história, o fato capital do século 20 foi o ingresso em cena da mulher” e reconhece que, acima de tudo, isto se deveu a razões tecnológicas (a pílula, principalmente) como fator determinante para a mudança da condição feminina, e não o falatório ou a pressão de um grupo. E mais: em entrevista para a revista Bravo!, em janeiro de 1998, cedida a Hugo Estenssoro, Doris diz que as feministas erraram ao fazer da vida uma questão ideológica, como ocorreu com o comunismo.
Considerada a maior romancista inglesa ao lado de Virgínia Woolf, o ensaísta Estenssoro enfatiza o quanto Doris é totalmente diferente, e sua literatura também: “Se Woolf foi produto da alta cultura da sua época, Doris, filha da classe média, com educação superficial, deixou a escola aos 14 anos, construiu sua obra lenta e dificilmente no tumulto da vida e da história”. No seu estilo sente-se o trabalho que resulta na densidade, tudo é fruto de uma indignação carregada de brio, em franca parceria com a realidade, tentando compreendê-la e contestando-a quando necessário: “Meus livros são uma tentativa de ordem”, é uma frase da escritora.
Editados pela Record/ Altaya, vale conferir O verão antes da queda e Roteiro para um passeio no Inferno. A sugestão é O Sonho mais Doce (Companhia das letras, 2005), verdadeiro passeio pelo século 20 através de três gerações, sem deixar que escapem as questões cruciais, os marcadores de uma época, desde o engodo da esquerda, o feminismo, o desarmamento nuclear, até a aids e a miséria, incluindo as alternativas, quase invariavelmente equivocadas. O choque maior fica por conta da disparidade entre a Inglaterra com seu glamour e a África com sua carência total.
Lessing fará 88 anos no dia 22 de outubro. Nasceu na Pérsia, hoje Irã, filha de capitão do Exército Britânico. Viveu na Rodésia do Sul, hoje Zimbábue, anos que marcaram sua juventude. Em 1949 seguiu para Londres, deixando a família e a África. Era hora de começar a construção da obra, agora devidamente laureada.

Gerana Damulakis

domingo, 14 de outubro de 2007

NEVE E ISTAMBUL



O belíssimo romance Neve (Companhia das Letras, 2006), do turco Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de Literatura 2006, ficou em primeiro lugar nas listas dos mais vendidos por pelo menos um par de meses. O fenômeno tem explicação na temática: tudo que se escreve sobre o islamismo, vende. A capa de Neve já traz o apelo: meio rosto de uma mulher com a cabeça coberta. Mas, esquecendo toda a publicidade em torno dos livros de Pamuk, o fato é que, antes mesmo do Nobel, o autor já estava com sua obra traduzida para 40 idiomas e já era muito aplaudido.
Neve tem no cerne da trama uma complexidade que, se olhando além da história das moças que cometeram suicídio por conta do tira e bota do véu, se vão percebendo as facetas — racial, política e étnica — presentes na Turquia. A mesma Turquia de ontem, do início do século XX, que não admite ter promovido o massacre de armênios. O olhar denunciador de Pamuk custou-lhe o exílio. No entanto, o belo em Neve está na volta de uma paixão adormecida e no tormento do poeta atrás de seus versos fugidios.
Quando mais não fosse pelo poder de uma narrativa sobre o conflito dentro de uma nação, sobre uma história de amor e sobre a procura pela arte, seria pela linguagem envolvente que a composição de Neve chamaria por tantos leitores. E é a mesma linguagem o ponto alto de Istambul — Memória e Cidade (Companhia das Letras, 2007), um livro que consegue transportar o leitor para outra cultura sem estranhamento, como se dela fizesse parte e pudesse entendê-la, tal o alcance da intimidade atingida.
De Neve para Istambul, há uma parada obrigatória para quem usufruiu com gosto a literatura de Pamuk: trata-se de Meu Nome é Vermelho, que saiu pela Companhia das Letras em 2004 e já recebeu reimpressão, desta feita trazendo o selo indicando que o autor é laureado com o Prêmio Nobel. A vendagem, embora na esteira do sucesso de Neve, não deve ter chegado perto do livro com a capa da presumível muçulmana. Além destes, Pamuk tem traduzido aqui no Brasil o volume esgotado, intitulado O Castelo Branco, que foi editado pela Record. Outros virão.

Gerana Damulakis

POEMA DO MÊS

PORTO

Destino de ser porto silencioso
vigiando tua quilha.

Tu, sempre barco
em destino distância,
nos rastos da espera
arrastando os meus olhos.

Eu, para sempre cais
em silêncio de porto
guardando pra teu barco.

Gláucia Lemos

terça-feira, 9 de outubro de 2007

CONSPIRAÇÃO DE NUVENS


Lygia Fagundes Telles fecha com Conspiração de nuvens uma trilogia iniciada em 2000 com Invenção e memória, que teve seguimento com Durante aquele estranho chá, em 2002. Tanto o livro de 2002 quanto este lançado na Bienal do Livro do Rio 2007, foram organizados por Suênio Campos de Lucena, e todos os três saíram pela Rocco. Mas o que define os volumes como uma trilogia está justamente no título do primeiro livro: uma mistura de memória e invenção; o que, de saída, garante o prazer da leitura, haja vista a qualidade da narrativa lygiana inquestionável. Lygia Fagundes Telles é escritora para quem se tira o chapéu, estende-se o tapete vermelho e se pede para passar — figura tomada de empréstimo, pois foi emitida por Hélio Pólvora em conversa sobre a escritora.
Conspiração de nuvens traz 19 histórias curtas que contam viagens, fatos da infância, observações e casos sobre intelectuais amigos da escritora, sem deixar de lembrar a cidade de São Paulo e as cidades do interior que fizeram parte da sua vida. O belo título vem da história passada nos anos 70, de um momento de censura acirrada aos textos dos escritores, quando mais de quatrocentos livros de autores brasileiros e estrangeiros estavam proibidos. Por intermédio de Rubem Fonseca, cujo livro Feliz ano novo fora vetado por conta da violência que incentivaria mais violência, Lygia integrou uma comitiva que rumou para Brasília com O Manifesto dos Mil Contra a Censura, mil assinaturas, para entregar ao ministro da justiça Armando Falcão. Mas, no avião, sentada entre o historiador Hélio Silva e um anônimo que lia o jornal, Lygia leu a notícia sobre a ida da comissão, em negrito. O que era para ser surpresa tinha vazado! Ao olhar para fora, as nuvens se aglomeravam: uma conspiração de nuvens! O resto é história para ler, não vale antecipar o sabor da leitura.
Jósif Bródski dizia que a biografia de um escritor está nos meandros de seu estilo. Lygia vem fazendo isto com afinco. E com perfeição estilística, temperando a memória com a criação literária. Tapete vermelho para ela.

Gerana Damulakis


SARAMAGO, SEMPRE SARAMAGO

O Ano de 1993 é o título da mais recente publicação de José Saramago pela Companhia das Letras. Trata-se de uma ficção curta, um tanto diferente dos demais romances e contos do Nobel de Literatura de 1998. Todavia, é apenas um tanto diverso, não mais que isto. Os parágrafos são curtos — quando sabemos quão longos costumam ser — mas nem trazem ponto no final de cada um, o que é bem ao gosto de Saramago — a transgressão no modo de pontuar. O que se tem é um livro que foi escrito em 1975 e remete o leitor para o ano de 1993, décadas adiante, portanto. Para o futuro a previsão era a catástrofe: cidades destruídas, habitadas por lobos, subjugadas completamente por animais mecanizados. Os humanos perambulam em malta como se passassem pelas épocas da própria história. Assistimos o momento pungente do nascimento de uma criança, quando já não havia mais nascimentos, assistimos o reaprendizado do amor e assistimos, também, a mais uma tentativa para fazer o mundo de outro jeito, haja vista os três últimos parágrafos na escrita sintética da parábola saramaguiana: “Uma vez mais enfim o mundo o mundo algumas coisas feitas contadas tantas não e sabê-lo/ Uma vez mais o impossível ficar ou a simples memória de ter sido/ Consoante se conclui de nada haver debaixo da sombra que a criança levanta como uma pele esfolada”. Não são versos, mas não há como resistir, e colocá-los como se assim fossem, parece muito natural.
Este é um ritual de passagem, a poesia se despedindo e a prosa querendo ser simplesmente: este é um livro que ainda se quer poesia, e que se quer prosa, e que já é um prenúncio do que estava por chegar então. Inclusive muito da temática futura se acha presente. De mais imediato a memória detecta o Ensaio sobre a cegueira e o Ensaio sobre a lucidez, mas está ali o germe de A jangada de pedra e até de História do cerco de Lisboa, quanto à exclusão social de uns e o favorecimento de outros, ou, em outras palavras que resultam no mesmo, quanto à dominação de poucos sobre muitos.
De resto, é Saramago, sempre Saramago e mais um texto para os aficcionados que, seguramente, encontram além do prazer da leitura, motivo para admiração pelo escritor português.
Gerana Damulakis