sexta-feira, 27 de junho de 2008

TRAGÉDIA GITANA



(sobre a vida e a obra de Frederico García Lorca)





Gerana Damulakis

Numa bela tarde em Madrid estávamos, eu e uma amiga brasileira de Pernambuco, sentadas numa das mesinhas da calçada de uma cafeteria da Gran Vía. Depois de algum tempo calada, em plena contemplação, observando a quantidade de gente que sobe e desce aquela grande via, minha amiga exclama:
— E pensar que os próprios espanhóis foram capazes de matar García Lorca!
O destino de Lorca, sendo ele um filho da Espanha, assassinado pelos contra-revolucionários do período inicial da guerra civil, converteu-o num emblema, um símbolo a proceder e encabeçar, premonitório, a extensa lista das vítimas de um futuro próximo, isso às portas da Segunda Grande Guerra. Era verão de 1936, quando Granada se tornou palco da execução de um poeta apolítico, por um pelotão do exército do Generalismo Francisco Franco.
Seja na forma ou no timbre, as canções ciganas e o romanceiro popular comportam-se, na história, como exemplos de estruturas folclóricas, trágicas, alicerçadas em lendas.
Devedora e seguidora dos legados folclóricos e da lírica espanhola, a poesia de Lorca tem a marca da confluência da vanguarda e do realismo, havendo se iniciado, entretanto, sob a influência do surrealismo e do ultraísmo tendente ao escândalo, ao desejo de surpreender pela via da ironia e da obscenidade. Sendo exemplo da popularização das correntes de vanguarda fornecido pela literatura de sua terra, Lorca fincou seu nome não apenas como poeta mas também como dramaturgo. Já dizia ele que “a representação dramática é a poesia que se levanta do livro e se faz humana, fala e grita, e chora e se desespera”. Seu grupo de atores ambulantes, La Barraca, viajou pelas províncias de Espanha exibindo a sua dramaturgia. Entre as 15 peças de Lorca, O malefício da Borboleta, Yerma, A casa de Bernarda Alba, Mariana Pineda, A sapateira prodigiosa, sem dúvida é Bodas de sangue a mais conhecida, traduzindo a gente e a paixão espanholas, que resultam da mistura excepcional de povos “calientes”, como os árabes e os mouros.
Os ciganos, que têm por pátria o mundo, chegaram à Espanha, como a muitos outros lugares, fugidos do Egito, por ocasião do êxodo lendário. Listz, cantor de suas glórias, acreditava que a música era a verdadeira epopéia deste povo nômade e panteísta, que se caracteriza pelo medo e pela superstição. A filosofia aciganada alicerça os temas essenciais de Lorca desde seu Libro de poemas, ainda que a crítica aponte influências de Rubén Dario e de Antonio Machado. Sem deixar de encontrar também o populismo e a já falada ciganidade, este primeiro livro é visto como um tímido começo se comparado com os mais acentuados momentos do tema carnal cigano; tema presente no definitivo Romancero, de 1928.
De 1918 a 1928, as escolas líricas agitaram com seus “ismos”. Lorca é tido como o poeta mais afinado com o Ultraísmo, uma derivação do Barroco espanhol, um retorno da tradição, que lhe confere a elegância e ao mesmo tempo a liberdade dentro do sentido da poesia moderna. Dissolvido o grupo ultraísta, o poeta já entrevisto se agiganta com seu genial Romancero Gitano, editado pela Revista de Ocidente, em fins de 1928, que reúne 18 poemas plenos de sentido popular, tomando o romance típico da poesia hispânica desde o século XV. Os temas obsessivos cabem à perfeição: a paisagem andaluza, a “gitanaria” e o erotismo.
Entre 1931 e 1934 apareceram, em várias revistas espanholas e americanas e em antologias de poetas contemporâneos, os poemas de Poeta em Nueva York. Escritos enquanto Lorca esteve na residência estudantil da Columbia University, os textos poéticos mostram a solidão no meio hostil, porque diferente da sua civilização; a solidão acaba por deixar evidente que a poesia de García Lorca é fruto de seu meio e de seu fado, enfim, de sua raça, do cigano que trazia em si.
Quando o poeta voltou ao seu país, escreveu a elegia exaltada no Llanto por Ignácio Sánchez Mejías (Pranto por Ignácio Sanchez Mejías), onde se mostra certeiro e sem vacilos. Daí que se chega àquela velha conclusão de que quanto mais regional é o autor, mais universalidade ele alcança. O tema do mais alto lirismo andaluz, a ciganaria, confere unidade e sentido épico à obra lorquiana. O mistério regional é buscado na sua profundidade, daí que atinja a amplitude pelo que conserva de tradição e história.
Em 3a. edição bilingue, a Martins Fontes e a Editora da Universidade de Brasília acrescentam 14 sonetos inéditos à Obra Poética Completa de García Lorca, ilustrada pelo próprio poeta. É um volume precioso para os amantes da verdadeira poesia do século XX.
Estátua em homenagem a Frederico García Lorca na Plaza de Santa Ana, em Madrid, por Julio López Hernández

FOGUEIRAS, ENQUANTO TEM


Gláucia Lemos



Este ano vivi um São João aquecido. Fogueiras, muita fumaça carregada pelo vento noturno, muito espoco de bombas, e danças de faíscas pelo ar. Muito vulcão jorrando das calçadas e tanta espada arriscando a segurança dos combatentes corajosos. Fogo no ar, enfim, uma noite iluminada por uma luz que negava a nossos olhos o prazer tranqüilo de contemplar a luz das estrelas.
Havia muitos anos que não via fogueiras. O fogo é um elemento que nos proporciona um especial espetáculo de beleza. O braseiro tem um vermelho particular, brilha sem fosforescer na raiz da chama, enquanto essa se inflama amarelada quase da cor da abóbora, evoluindo sorrateira e inconstante, se elevando volúvel como em uma coreografia mentirosa, sem jamais se fixar, e acaba sendo uma ilusão que fenece sem cinzas. A chama é apenas uma ilusão.
Há muita verdade na associação do fogo aos sentimentos do coração. Paixão que arde como fogo, chama de amor, morte de amor associada a cinzas, e por aí vai.
Quanto a mim, prefiro dispensar a chama dessa paixão e acreditar no sentimento escondido que permanece na raiz da chama, no braseiro que queima quieto, e ainda permanece por muito tempo depois que a chama se extingue. E ainda quando aquele vermelho da brasa, por força das chuvinhas que sempre caem nas noites de São João, as mais frias do ano, quando ele arrefece e já não brilha para o sabermos vivo, o carvão que se apresenta negro e aparenta frieza, permanece ardente, queimando em segredo, e se lhe dermos um sopro vigoroso, estalará de leve, e se mostrará na força do braseiro que alimentara a chama anterior. Assim é o fogo das fogueiras, assim são os sentimentos amorosos mais profundos, quando os chuviscos das noites juninas da vida os ameaçam e os cobrem do negrume do carvão aparentemente apagado. Um sopro e voltarão a arder. Porque a chama é ilusão, mas a brasa é a verdade do fogo.
Perco horas contemplando uma fogueira queimando, uma fascinação. Optei por esse privilégio, neste ano. O São João que não é mais, e nunca mais será, como as noites de junho da infância da minha geração, sequer da geração dos meus filhos, ainda é uma festa de alegria, embora tenha perdido a graça da credulidade nas adivinhações tão comuns e praticadas pela juventude de ontem. Não é preciso espírito saudosista para comparar as melodias ingênuas e o ritmo dos baiões do Gonzagão com a invasão sem propósito do axé. Até o forró que era dançado alegremente aos pares frente-a-frente, agora está contaminado por passos mirabolantes de rock. A dama há que se embolar pelas costas do cavalheiro, de vez em quando, e outras acrobacias. O advento do progresso às vezes invade indevidamente alguns espaços que, por tradição cultural, deveriam ser preservados. Incluindo a solta dos balões que pontuavam o espaço com suas luzes cada vez mais distantes, cada vez mais distantes, romanticamente viajando para o nunca mais, e que, por motivos mais que justificados e corretos, foram apagados definitivamente. No entanto, ainda temos os bailes nas cidades pequenas, os forrós puxados a sanfona ou a CDs, as fogueiras estalando, fabricando fumaça espessa, e tirando lágrimas dos nossos olhos. E o sempre licor de jenipapo, de mão em mão, descontraidamente, brindando ao santo que tanto foi sacrificado e cuja homenagem faz a festa mais brilhante do ano.
E viva São João, enquanto ainda tem!

Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Autora de mais de 20 títulos e muito premiada. Foto de jvc, retirada do Flickr.