quarta-feira, 16 de abril de 2008

OS PORTÕES DE SARAMAGO



Gláucia Lemos


Todo mundo já sabe que sou Saramagólatra incurável. Quanto mais o conheço, mais o quero conhecer. É minha bebida, meu cigarro, meu time de futebol, já que não bebo, não fumo e não me interesso por bola, concentro na palavra de Saramago aquela fixação dos que a têm naqueles vícios.
Estou lendo agora A bagagem do viajante, crônicas, editado pela Cia das Letras. Tão encantador cronista quanto o admirável romancista de O Evangelho segundo Jesus Cristo, e de Memorial do convento. Uma página após outra, delicio-me. Como sempre tendemos a ressaltar alguns textos, poderiam ser alguns outros, mas elejo Os portões que dão para onde? Uma crônica, um momento emotivo que quero dividir com outras pessoas, porque não é justo guardar tamanho modelo da melhor literatura, no egoísmo de um só espírito. Depois de ler Saramago, fica um sentimento indefinível. Quem sabe... Só Beleza.
Não vou transcrever todo o texto, há que se respeitar espaço, mas detenho-me nos três últimos parágrafos, respeitando a grafia original que em alguns detalhes é diferente da nossa ortografia, enquanto convido os que me lêem a este instante de reverência.
É o caso dos portões. Em viagem, quando atravessamos os campos de automóvel, não é raro vermos afastarem-se uns portões enigmáticos em terras meio abandonadas ou já de todo baldias. Ali o caminho esconde-se entre a erva, os arbustos loucos e os detritos vegetais que o vento arrasta. Não sabemos sequer se os batentes abrem para cá ou para lá, e muitas vezes os portões não se continuam em muros ou arames, e tudo isso tem um ar misterioso de terra assombrada. Mas pior ainda é se os portões desapareceram e deles ficaram apenas os dois pilares gémeos, virados um para o outro, como quem pergunta se já não há mais nada a esperar.
“Não me acuse o leitor de obscurantista. Tenho uma confiança danada no futuro e é para ele que as minhas mãos se estendem. Mas o passado está cheio de vozes que não se calam e ao lado da minha sombra há uma multidão infinita de quantos a justificam. Por isso os portões velhos me inquietam, por isso os pilares abandonados me intimidam. Quando vou atravessar o espaço que eles guardam, não sei que força rápida me retém. Penso naquelas pessoas que vivas ali passaram e é como se a atmosfera rangesse com a respiração delas, como se o arrastar dos suspiros e das fadigas fosse morrer sobre a soleira apagada. Penso nisso tudo e um grande sentimento de humildade sobe dentro de mim. E, nem sei bem porquê, uma responsabilidade que me esmaga.
“Se o leitor não acredita, faça a experiência. Tem aí pilares carcomidos, de gonzos roídos de ferrugem, cobertos de liquens. Agora passe entre eles. Não sentiu que os seus ombros roçaram outros ombros? Não reparou que uns dedos invisíveis lhe apertaram os seus? Não viu esse longo mar de rostos que enche a terra de humanidade? E o silêncio? E o silêncio para onde os portões se abrem?

E depois de tanta emoção, fica no coração o silêncio respeitoso pelo autor.


Gláucia Lemos é autora de mais de 20 títulos, mas aqui e agora ela é a fã incondicional de Saramago. Assim como eu.