sábado, 14 de fevereiro de 2009

TRECHO DE "O MAR NA CRÔNICA"


Gerana Damulakis


Da varanda de sua cobertura, inflado pela brisa marinha que sopra forte e exagera seus sentimentos, Rubem Braga define o mar, certa noite, como uma espécie de bicho gigantesco que encobre o planeta. “Ele só é mineral durante o dia”, diz. “À noite, o mar boceja, contrai-se, abocanha — torna-se um animal”. Assim José Castello fala do mar na crônica de Rubem Braga, o escritor 100% cronista.
Dentre os nossos melhores cronistas, desde Alencar e Machado, incluindo João do Rio, Lima Barreto, Manuel Bandeira e Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, todos foram cronistas bissextos, porque eram, antes de mais nada, ficcionistas — romancistas, contistas e/ou poetas — que escreveram crônicas; até mesmo Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, reconhecidamente cronistas, escreviam também outros gêneros. Então, a exceção, num patamar nacional, é Rubem Braga, que foi apenas cronista. Esta ocorrência é significativa para a história dessa expressão literária brasileira.
Pensamos, então, curiosamente, em qual laboratório foi produzido o cronista brasileiro que acena dos jornais e revistas com seu mergulho abissal em todas as experiências da vida? Já faz algumas décadas que contemplamos a nossa crônica como categoria de uma manifestação literária tipicamente nacional, afastada de sua origem gaulesa na medida em que se alforriou das características históricas ou documentais que lhes são seminais.
A crônica vestiu a camisa verde-amarela com Alencar e Machado, mas foi com João do Rio que ela encontrou seu precursor quanto a um certo jeito de ser do tipo de uma conversa de esquina quando, ao combinar autenticidade e veemência, seguiu uma nova direção, diferente desde a composição até a linguagem mais adequada. Daí em diante, solta pelas cidades brasileiras, vamos reconhecendo quem adicione seus próprios temperos; cada cronista como integrante do que Baudelaire chamou “família de olhos”.
A crônica, reza o lugar-comum, é o espaço da experimentação literária, a categoria em que os autores são livres para transmitir seu modo de ver (e de ser) sem as correntes da ficção. Fruto, pois, da observação e de uma relação íntima com a vida, o cronista esparralha no texto seu entendimento estético sobre o rotineiro; mistura, então, informação com erudição e, se acresce a isto poesia, fino humor fértil e inventivo, a crônica torna-se arte.
Assim é que o poeta pode surgir total e soberano no seu texto, e, o leitor pode passear, arqueólogo de um tempo morto, por vultos e corpos míticos, divinos ou mundanos, ou, ainda, o lirismo expedido e a aguda poesia na composição podem nascer simplesmente do comezinho do dia após dia e, mais uma vez, o leitor pode passear pelo cotidiano poetizado e, quem sabe, refletir e, talvez, relaxar.
O caráter literário da crônica, visto como prioridade, confere de imediato seu enquadramento numa ou noutra formação: o conto ou a poesia. Conforme tenda para o efeito narrativo ou poético e/ou reflexivo como característica dominante, esta característica adquirida no texto pronto, vem da visão pessoal do cronista quanto ao que ele expressa, mas, vem, também, acompanhada de uma outra característica, esta obrigatória, que é a obediência à brevidade.
Portanto, se a crônica faz fronteira com a poesia, dada a subjetividade ressaltada nas minúcias comentadas, deflagrando poeticidade da união do objeto ou assunto com a sensibilidade do cronista, então, ela mana de moto-próprio e literária, já que se vale dos recursos retóricos apropriados ao tema arremessado da imagem lírica existente em sua sensibilidade. Concluímos daí que a crônica é a poesia do cotidiano, prima da de circunstância, porém, apesar de limitada espacialmente, ela é regida pelo à-vontade da criação e, por tal, não é apenas poema em prosa, é, sim, uma associação entre ambas, poetizando o cotidiano e narrando o pretexto anímico que despertou o cronista.
Todavia a crônica não pode ser autêntica poesia e também não pode ser conto, pois fica a dever em densidade, assim, ela é uma expressão criada da confluência destes dois gêneros, tecida de modo intermitente quanto ao que mais se aproxima, às vezes predominando a vertente da poesia ou da prosa ou ambas, na famosa simbiose, que, ao fim e ao cabo, deu-lhe um lugar próprio. Vê-se claramente que o único ponto fixo de apoio de cada cronista é seu ângulo de observação do mundo. Em alguns exemplos isso está bem plasmado: Rubem Braga vê por um ângulo subjetivo para interpretar episódios, enquanto Fernando Sabino utiliza diálogos para contar os episódios e Sérgio Porto cria tipos e Carlos Drummond de Andrade chega a criar a “versiprosa”.
Concluímos que no breve texto do jornal, ao rés do chão, como chamou Antônio Candido, a liberdade passeia. Nele encontramos a poesia, a prosa, a filosofia, a história. Olavo Bilac, poeta e cronista de tão grande importância, que chegou a mudar certos aspectos da cidade do Rio de Janeiro pelas campanhas que enfeixava nas suas crônicas, sem esquecermos a campanha pelo serviço militar obrigatório, que atingiu todo o país, define muito bem este ponto, no dia 7/2/1904, no jornal Gazeta de Notícias:
Sou um fantasista, mais nada. E um fantasista serve apenas para enfeitar as colunas de um jornal, como a barra de seda que enfeita a saia de uma mulher. Quando a seda fica suja, atira-se ao lixo a barra da saia; quando o fantasista aborrece, atira-se o jornal ao chão.


Este é um trecho do ensaio "O mar na crônica" que escrevi para uma palestra realizada na Fundação Cultural de Ilhéus e que depois veio a constar do livro O mar na prosa brasileira de ficção (Ilhéus: Fundação Cultural/Editus, 1999).