terça-feira, 5 de agosto de 2008

AUSÊNCIA

Gláucia Lemos















Uma verdade em teu olhar vem como um rio,
banhar tanta aridez, e me povoa
na minha fantasia, à tua ausência,
alimentando um surto imaginário.


Guardo esta dor e te oferendo o sonho,
e sacralizo inteira esta saudade
que chove sobre mim nesta hora estreita.


Vem, quando vens, a nuvem da esperança.
Ao arrepio da ausência, recupero
o ninho,
no tecer do teu abraço.


Ao sempre desabrigo do meu dorso,
vem! Vem!!!
Pois, quando vindo, és madrugada,
és pouso de andarilho,
e barco de regresso.
E eu sempre cais,
aos ventos desta espera.




Poeta, ficcionista e cronista, Gláucia Lemos tem mais de 20 títulos publicados.

"ESTOU FARTO DO LIRISMO..."

Gerana Damulakis


É fácil constatar que a crítica literária, tal como a crônica, sofre por ser datada. Ressalva feita para quando o autor está morto, portanto a obra concluída e, no extremo, sem riscos de que apareçam títulos póstumos. O fato é que avaliar um escritor em plena produção carrega uma gama de equívocos que apenas o futuro apontará.
Fica patente quando se pode averiguar isto num livro como A Leitora e seus Personagens, daquela que talvez tenha tido a maior lucidez analítica na crítica brasileira do meado do século XX: Lúcia Miguel Pereira. O brilho de seu pensamento, nas décadas de 40 e 50, percorreu as obras das mais diversas correntes literárias do país. Com uma cultura invulgar, uma bagagem de leituras invejável e uma percepção crítica como poucos, Lucia Miguel marcou seu lugar como militante na imprensa literária. Mas nada disso evitou o erro que só o tempo, implacável, acentua.
A leitura da reunião de textos críticos deixa evidente um caso interessante. Trata-se da avaliação dos, então, últimos poemas de Manuel Bandeira, vistos pela crítica no Jornal do Comércio, em 1936. Quase uma diatribe, não fosse seu cuidado para com o poeta amigo, Lúcia diz encontrar "uma nova maneira" na poesia de Bandeira. Tal maneira nova seria a ironia, avaliada como que uma negação de tudo aquilo em que o poeta acreditara, "alguma coisa de tenso, de voluntariamente desprendido". E conclui: "essa é a grande modificação". Então transcreve uma das estrofes de "Poética", poema que consta do livro Libertinagem: "Quero antes o lirismo dos loucos/ O lirismo dos bêbados/ O lirismo difícil e pungente dos bêbados/ O lirismo dos clowns de Shakespeare./ — Não quero mais saber do lirismo que não é libertação".
A crítica vê na ânsia de libertação uma obrigação do poeta em zombar de tudo e não se deixar dominar por coisa alguma, pois a ironia está "corroendo sua inspiração". Ora, tanto a poesia posterior de Bandeira quanto o próprio Manuel em seu livro Itinerário de Pasárgada, sua autobiografia literária, atestam que o lirismo não deixou os versos do poeta de Estrela da Tarde nem o poeta teve tal intenção. A feitura do poema estava intimamente ligada ao momento modernista, daí um grito, não contra o lirismo, mas contra certos tipos de lirismo: "Estou farto do lirismo comedido/ do lirismo bem comportado..."
Imagine-se se fosse levado a sério o fim do lirismo em favor da ironia absoluta. Enfim, a ironia incorporou-se à lírica moderna. Hoje, tão distantes daquele momento, atestamos o lirismo mais do que presente, a própria poesia: o lirismo pungente de Ruy Espinheira Filho quando diz: "Quero/ me apagar na noite,/ ser a noite/ esse grande silêncio/ lá fora,/ onde espero que o mundo/ não esteja mais". O lirismo Femina de Myriam Fraga: "Revesti-me de mistério/ Por ser frágil,/ Pois bem sei que decifrar-me/ É destruir-me". O lirismo a plenos pulmões de Ildásio Tavares: "Há um resto de mim em toda a parte/ Que nunca pude ser inteiramente". O lirismo musical de Aramis Ribeiro Costa: “O sol brilhando em plena madrugada/ O desejo de ser – sem ser loucura/ A vida, num segundo, iluminada”. O lirismo apurado de Florisvaldo Mattos: "Nada sei do que me contam/ as furiosas páginas dos diários mudos". Os versos líricos de Luís Antonio Cajazeira Ramos: "O sonho acabou./ Não mais acordei./ Mas tudo que sou-/ -be, no sonho, deixei". O lirismo refinado de Maria da Conceição Paranhos: "Mor ventura não há neste meu fado/ do que mirar teu corpo e usufruí-lo,/ pausadamente, a mão a desvesti-lo,/ saboreando teu olhar de dardos,..."
Lucia Miguel Pereira reclamava do fim da simplicidade de Bandeira. A lírica moderna pode não ter o acesso fácil de outros tempos, mas aí reside o seu fascínio. O lirismo é categoria tradicional e eterna na poesia, seja ele mais claro, seja obscuro e mágico. Menos mal que a crítica não pôde ver além de seu tempo.


Este texto foi publicado no Caderno 2 do jornal A TARDE, coluna Leitura Crítica, em 01/08/2001.