terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O CORPO



Flamarion Silva

Descontinuariam a festa por causa da morte de Romildo? Tomara vivalma não se lhe dê conta. Achado, decerto não haverá festividade. É costume do povo, que é respeitoso, não demonstrar alegria quando parte um irmão. É uma cumplicidade de dor, como quando o amigo se vai, deixando saudade colada à lembrança. Quem não se lembra de Seu Aniceto de dona Carmélia? Expirou no Jardim das Flores, mas lá, sem campo-santo, veio às carreiras ser enterrado em Barcelos. No dia do sepultamento, uma bebedeira no bar de Preto. A radiola alta. Mas, pronto, bastou o povo avistar o cortejo lá em cima, no Mirante, ligeiro o som silenciou. Quem estava de chapéu, sacou-o fora. Todos persignaram-se e fizeram o sinal da cruz em reverência. Um cujo abriu caminho para o dito:
“Vá com Deus, meu irmão.”
E logo todos o seguiram:
“Vá com Deus.”
Indo.
O sino principiou a bater na igreja de Nossa Senhora das Candeias. Anunciava a morte e convocava o povo para o cortejo. Quem ouvisse a trágica canção, logo fazia a leitura:
“Vixe, meu Deus, morreu um’alma, e não miúda, de anjo; pelo ritmado do badalo... o alteado... gente grande.”
Porém, o povo queria a dança, a cachaça, a esfregação, a safadeza, a putaria. Trezentos e sessenta e cinco dias na folhinha subtraídos, um a um, do levantar ao cair do sol, os dias compridos. Tão aguardada festa! Pois bem. Romildo que ficasse lá. Quem mandou subir em árvore? Pegar passarinho a mão? Eis o que se deu: despencou lá de cima. E cá embaixo, nas estacas, o corpo cravado. Alguém, sem coração, dirá depois:
“Quem lhe tem pena? Estragar a festa... Vá ser azarado assim no inferno!”
Olhe o diabo: dona Branca, mulher de Seu Miguel de dona Rola, havia-o de ver. Um mal estar a levou aos matos, arrancar folhinhas de chá. Bateu os olhos no corpo de Romildo. Diria, não diria, apodreça até amanhã! Nem isso a peste pensou. Deu a gritar. Gritos de morte. Diferenciados das batidas no anúncio de alguém já morto. Aí o momento é desigual. Diferente do sino que já bate consciencioso da morte. O grito de dona Branca declarava o exato momento do antecipado confronto. Pois quem morre, mata muitas vezes, até aquietar-se sob o terreno da memória, o defunto. É uma cadeia que se sucede. Primeiro o morto original, e no justo instante dona Branca de Seu Miguel de dona Rola, mais logo todo o mundo a morrer mais um bocadinho. Todos com o seu quinhão da Dona Fatídica. Até o morto, o de verdade, ser enterrado de vez. E, ainda assim, mesmo depois de amanhã e mais, mesmo sob o chão lacrado, às vezes, na lembrança vem, como alva garça, avoada a alma matar um pouco quem vive. E como apossa-se-lhe suave no pouso! Mas cravam-se-lhe as unhas na alma, irmão. A gente chora que doem os ossos. É costume da gente se lembrar, gostar de se matar, avivando o sofrer.
Por esse então, a gente embriaga-se toda. Um motivo tem: se há dor, é preciso esquecer. E, na bebedeira, os motivos se confundem, os objetivos tornam-se desvirtuados, os braços se agarram a tudo, pois a tontice é muita, e as pernas, tantas embaralhadas, assim vão-se a valsar essa dança doida de bêbado.
A gente concorda em fechar os olhos diante do morto. Gente, pois não somente dona Branca de Seu Miguel de dona Rola o viu, assim como Zeca da Biriba, Manuel do Brejo, o rapaz que se enamora de Dadinha, e quem mais, só Deus sabe! Que mundo, este!... Bem, o fato é que, resolvido, sem encontro marcado, ficou tudo conforme: ninguém viu o corpo de Romildo enfiado nas estacas. Foi tudo assim como se concluíssem: os mortos, aos mortos; a gente vai à festa.


Flamarion Silva é autor de O rato do capitão da Coleção Selo Letras da Bahia (EGBA, 2006).