domingo, 29 de agosto de 2010

ROSA POETA


Gerana Damulakis

Não só a vida é um negócio muito perigoso, desfrutar a poesia também é um negócio muito perigoso porque aguça a sensibilidade e, se ela envolve tanto a alma, igualmente aprofunda amor - uma delícia - e medo - consciência maior dos riscos.
Tirei da estante João Guimarães Rosa (1908-1967), o grande Rosa. E que beleza este "Pavor".

PAVOR
------João Guimarães Rosa

Em torno de mim
círculos concêntricos se fecham,
como as órbitas lentas de um corvo...
Tudo é torvo e pesado,
falta de ar e de amor...
Para mim já se apagou a última cor.
E a minha alma se enfurna
em poços velhos de hulheiras,
de onde foi tirado e queimado o carvão todo.
Como um cego
que dormisse na treva, amedrontado,
para sonhar que mais uma vez cegou...

in Magma (Nova Fronteira, 1997)

Ilustração: "Parábola dos Cegos", de Peter Bruegel.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

COM ÂNGELA


O mundo murmura a música
monumental e única

da solidão

Ângela Vilma in "A Música", do livro Poemas para Antonio (P55 Edições, 2010)

COM MÔNICA


já está decidido:
amanhã despertarei borboleta

Mônica Menezes in "Amanhecer", do livro Estranhamentos (P55 Edições, 2010)

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

ODE A MATISSE


Gerana Damulakis

Conheci, no mundo real, Caio Rudá de Oliveira, do blog http://www.dasideiasdecaioruda.com/, no lançamento dos livros de Ângela Vilma e Mônica Menezes (aliás, foi muito interessante tantos blogueiros deixarem a existência virtual). Caio levou um presente para mim: um exemplar de seu livro de poemas Das ideias (Editora Virtualbooks, 2010). Eu poderia colocar aqui o poema "nunca me dê flores, meu bem", que considerei um dos melhores. No entanto, escolhi aquele que li primeiramente, usando a técnica (já mencionada em outra oportunidade) de Myriam Fraga: abre-se o volume ao acaso e, se a leitura do poema for satisfatória, o livro será lido desde a primeira página; coube ao poema "Ode a Matisse" ser o primeiro. Mas, sendo um poema curto, acrescento outro, "Testamento".


ODE A MATISSE
Caio Rudá

No final do arco-íris repousa um pote de ouro
Diziam pai, mãe e um livrinho sobre gnomos
cresci, morri e reencarnei num Matisse
E só então entendi tal asserção.

TESTAMENTO
Caio Rudá

Eu quero morrer louco
são nem um pouco
doido de pedra
demente, decadente
sem mente, sim
completamente doente.

Eu quero morrer assim
para não fechar meus olhos
ciente de que é o fim.

Ilustração: Música, de Henri Matisse.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

24 DE AGOSTO DE 1899: NASCEU JORGE LUIS BORGES


BORGES EM MINHA LEMBRANÇA

Silvia Zappia

Foi numa tarde de agosto de 1974 quando três amigos e eu tocamos, com total atrevimento, com a impunidade que só a adolescência nos dá, a campainha do quarto andar de um edifício do bairro portenho de Palermo.
Fazia dias que havíamos decidido, assim, sem mais nem menos, sem titubear: fazer uma reportagem com o mestre, entrevistar a Borges.
Quando Maria Kodama, então sua secretária, abriu a porta para nós, os quatro adolescentes que éramos (alunos do último ano do secundário), perdemos a segurança e também a voz. Foi Mario aquele que pode balbuciar um “Viemos entrevistar o senhor Borges”.
E foi assim, tão simplesmente, como entramos na sala do apartamento, antiga, pequena, descuidada. Lembro de uma grande biblioteca que ocupava três paredes e a janela que dava para uma varanda iluminada. Perto desta janela estava sentado Borges, como se estivesse nos esperando, com uma mão segurando uma bengala e com a outra acariciando um gato, branco e gordo, que dormia em seu colo.
Nos cumprimentamos, nos sentamos em duas poltronas velhas, Marcelo ligou o gravador e, sem que fizesse uma pergunta ele começou a falar. Apenas ele falou, sem deixar de acariciar o gato, sem nos permitir ao menos uma palavra. Durante essas quase duas horas perdi a noção do tempo e do espaço; apenas sentia a respiração de Mônica sentada ao meu lado e a voz, a voz do mestre Borges.
Quando decidiu que nosso tempo havia terminado, pediu que fossemos embora, sem nenhuma amabilidade. Simplesmente assim, tão simplesmente como havíamos chegado.
Descemos os quatro pisos em silêncio, com as pernas tremendo, e quase no mesmo estado tomamos o trem suburbano que nos devolveu à casa e ao mundo.
Quando escutamos a fita, pouco foi o que entendemos. A gravação era de má qualidade e as palavras de Borges soavam quase incompreensíveis; nessa época apenas conhecíamos linguística, Spinoza, e as verdades de Confúcio.
Essa fita gravada foi para as mãos de nossa professora de língua e literatura; dela, foi para outra professora e, como se pode supor, jamais voltou para nós.
Nenhum dos quatro amigos que estiveram com ele, com Borges, recordam com clareza o que ele disse, por ter havido mais emoção do que atenção; eu, particularmente, nunca esquecerei o timbre de sua voz enquanto falava de Tao, e seus olhos já sem luz.
Hoje sei que Borges não falava para nós. Falava para ele mesmo, ou para esse outro que o habitava, perdido em seu labirinto, em seus círculos eternos, nas bifurcações do tempo.

22 de agosto de 2010

Ilustração: foto, tirada por Celeste, filha de Silvia, do mural que foi pintado sobre azulejos, pelo artista gráfico Rep, na Plaza Borges, ciudad de Mar del Plata.

O texto de Silvia Zappia foi escolhido para que o Leitora pudesse homenagear Jorge Luis Borges no dia de seu aniversário, su cumpleaños, com um relato de uma lembrança, de um recuerdo, de quem que teve a oportunidade de conhecê-lo: viu sua pessoa, ouviu sua voz.
Silvia é poeta e tem o blog:
GD

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

AMANHÃ: MUITA FESTA!

Amanhã, terça-feira, Ângela Vilma e Mônica Menezes no lançamento de seus respectivos livros: Poemas para Antonio e Estranhamentos. Festa, festa, festa!

domingo, 22 de agosto de 2010

DA SENSIBILIDADE



Gerana Damulakis

Álvaro de Campos e os domingos estão associados. Nada de extraordinário. O poeta remete muitos dos seus versos aos domingos ("Nenhum domingo.../ Nunca domingo..."). São seus gritos, no entanto, que tenho vontade de colocar aqui. Como eles estão em um longo texto, segue um trecho muito pequeno de "Ultimatum":

..........................................................................................................................................................................

------------------- ----------------------ATENÇÃO!

--------------------------------- Proclamo, em primeiro lugar,

----------------------------A Lei de Malthus da Sensibilidade

Os estímulos da sensibilidade aumentam em progressão geométrica; a própria sensibilidade apenas em progressão aritmétrica.

..........................................................................................................................................................................

Álvaro de Campos

Ilustração: Golconde, de René Magritte (1898-1967).

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

MENESTREL DAS PARCAS E DAS FÚRIAS

Gerana Damulakis


Konstantinos Kaváfis nasceu em Alexandria, no dia 29 de abril de 1862, de pais descendentes de gregos tradicionais, vindos de Constantinopla, mais precisamente do bairro Fanar, daí fanariotas, onde residiam os gregos aristocratas já aburguesados no serviço ao comércio. Alexandria é personagem importante na obra de Kaváfis, uma cidade sempre louvada, que lhe impregnou o corpo e o espírito. Ali, ele viveu tudo e toda a sua vida.

Os poemas colocados na categoria hedonística ou poemas eróticos, ou ainda, autobiográficos, carregam dramaticamente a culpa por uma homossexualidade que ele não aceitou, mas não resistiu e assumiu. Contudo, é à maneira de Eliot que Kaváfis recorreu às alusões históricas ou literárias, até com a intercalação de citações. Enfim, Konstantinos Kaváfis, um simbolista, absorveu o influxo de sua época.

Original, portanto, principalmente na sua exposição conceitual do prazer, quase uma provocação, desvinculando o desejo do amor. Escolhi, no entanto, o poema “Muros”, metáfora perfeita de certas ocasiões na vida, quando não há escapatória.

MUROS
Konstantinos Kaváfis

Sem cuidado nenhum, sem respeito nem pesar,
ergueram à minha volta altos muros de pedra.

E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
noutra coisa: o infortúnio a mente me depreda.

E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.

Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.

Tradução de José Paulo Paes

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O JARDIM DE VEREDAS QUE SE BIFURCAM


Os escritores dão forma, traduzem em arte, os nossos sentimentos. Quantas vezes, intrigados com a questão do tempo, não pensamos e repensamos que o agora já não é mais o agora e só o agora existe e interessa...? E tanto há acontecendo no mundo, mas apenas nosso mundo parece existir nesse momento, nesse agora.
Daí o fascínio pela arte literária, daí o espanto ao encontrar exatamente alguma aflição até então considerada particular.

Depois refleti que todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora. Séculos de séculos e apenas no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e no mar, e tudo o que realmente acontece acontece a mim...
Jorge Luis Borges in "O jardim de veredas que se bifurcam", do livro Ficções

Ilustração: Jorge Luis Borges por Gabriel Caprav (3ª ou 4ª vez que ilustro postagens com este Borges de Caprav).

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

UM ESCRITOR LASCIVO



Gerana Damulakis

Não costumo ler biografias, memórias, relatos de viagens. Abro exceção para o escritor Paul Theroux e, por isso, digo outra vez: tudo é estilo.

Depois de O Grande Bazar Ferroviário (Objetiva, 2004), Theroux transformou mais uma viagem em livro: O Safári da Estrela Negra (Objetiva, 2009). E já encomendei o próximo: Até o fim do mundo (Objetiva, 2010). Mas, há uma curiosidade neste safári que reproduzo, quase na totalidade, no trecho retirado de Theroux.

O jovem e lascivo Flaubert - tinha apenas 27 anos - foi a Esna em busca de uma renomada cortesã, Kuchuk Hanem, "Pequena Princesa", e de sua famosa "Dança da Abelha". Esna, naquele tempo, era a cidade mais depravada do Egito, lotada de prostitutas que, por lei, tinham sido recolhidas no Cairo e deportadas para lá. Flaubert encontrou Kuchuk Hanem, que dançou nua para ele, em meio a músicos vendados.

A Dança da Abelha foi descrita como "basicamente um número cômico, em que a dançarina, atacada por uma abelha, tem que tirar toda a roupa". Mas o termo "abelha" é uma clara alusão, pois significa "clitóris" em arábe. Flaubert dormiu com a dançarina e registrou minuciosamente, em suas anotações de viagem, as particularidades de cada cópula, a temperatura de cada parte do corpo da mulher, seu próprio desempenho ("Eu me sentia como um tigre") e até os percevejos da cama, que ele adorou ("Gosto de um toque de pungência em tudo"). Ele anatomizou sua experiência egípcia em todos os sentidos da palavra, tornando-se um guia informal e um exemplo para mim.

(...)Ao deixar o quarto de Kuchuk, depois do encontro sexual, ele escreve: "Como seria lisonjeiro para o amor-próprio se, no momento de ir embora, eu tivesse certeza de que deixei uma lembrança, que ela pensará mais em mim do que nos outros que estiveram ali, que eu irei permanecer no coração dela!"

Mas isso é apenas um lamento, ele sabia que logo seria esquecido, pois admite mais tarde que, mesmo "tecendo uma estética em torno dela", a cortesã - vá lá, prostituta - não poderia estar pensando nele. E conclui: "Viajar nos faz ficar modestos - percebemos o lugar minúsculo que ocupamos no mundo."

Paul Theroux in O Safári da Estrela Negra - Uma viagem através da África

Gustave Flaubert (Illustration: Corbis)

domingo, 8 de agosto de 2010

ÂNGELA E MÔNICA: DIA 24

Gerana Damulakis

A arte, toda a arte, nasce da dor, da reflexão, do sentimento, da profundidade de espírito - da largueza e da profundidade de espírito.
A compreensão da ambiguidade dos valores humanos pode gerar uma interpretação que de alguma forma consiga ser plasmada: tal forma é a arte. Ou a arte é a forma, melhor dizendo. A arte plasma os elementos essenciais da vida e, de mãos dadas com a beleza, o resultado é aberto às possibilidades de leitura.
Duas poetas entendem muito bem do assunto: Ângela Vilma e Mônica Menezes.

SENTENÇA
Ângela Vilma

O amor não nos salvará.
Não há salvação no amor.

Tu onde estás, eu onde estou,
Almas que se beijam no ar.

Apenas isso, e a doce vontade
Desesperada de amar.


MULHER
Mônica Menezes

quis para mim a graça
do sonho de ser tua
e penteei meus cabelos
e pintei minha boca
e escolhi no espelho
meu melhor olhar de mulher
mas tuas mãos não são livres
teu coração já tem dona
e eu voltei para casa
menina
trazendo a máscara na mão

O lançamento dos livros Poemas para Antonio e Estranhamentos foi transferido para o dia 24 de agosto. Vale a pena uma visita ao blog http://angelaemonica.wordpress.com/.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

SE POETA FOSSE...


Gerana Damulakis

Poesia pede poesia, que pede por mais poesia.
Tania Regina Contreiras, do blog Roxo-violeta (http://roxo-violeta.blogspot.com/), recebeu um poema de Assis Freitas, "Fantasia para tons em sépia e violeta" (o poema pode ser lido nos blogs de ambos), do blog Mil e um poemas (http://mileumpoemas.blogspot.com/). Deixei um comentário para Tania, dizendo que, se poeta fosse, também escreveria algo para ela.
Não sendo, pois, poeta, recorro a um exemplo da obra de nossa poeta baiana Myriam Fraga, sabidamente querida e apreciada por Tania e não menos querida e apreciada por mim.

ROTEIRO
--------Myriam Fraga

Decifrarei o mundo
Nestes gritos.

Sombra de luz, meu obscuro
Retorno. Viagem do nada
Ao não sei onde.

Absurdo Aqueronte
Onde um peixe navega

E este peixe é meu sonho.

De O vaso ritual in Poesia reunida (Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2008)

Foto: da esquerda para a direita, a poeta Myriam Fraga, o poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos abraça a poeta Kátia Borges e a jornalista Suzana Varjão; seguem, do lado direito, eu e o escritor Aramis Ribeiro Costa.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O CANTOR DE TANGO



Gerana Damulakis

Quando um livro transforma seu leitor em certo personagem invisível que deu a mão ao escritor e com ele anda pelas ruas de uma cidade jamais antes conhecida; quando o leitor, agora personagem, fecha as páginas do volume e sente, ainda assim, que está vivendo naquela história; então, o romance aconteceu, a arte tomou a vida real e tudo mereceu ser lido. Eu, leitora, sinto desse modo. E o escritor Tomás Eloy Martínez (1934-2010) coloca minha mão na dele, enquanto leio seus romances.


Já fiz, aqui no blog, uma pequena resenha do romance A mão do amo (Companhia das Letras, 2008), que, na época da leitura, me levou a viver com Carmona, personagem central, entre gatos e temente ao poder de uma mãe castradora. Depois, em Purgatório (Companhia das Letras, 2009), de mãos dadas com Emilia, fugimos de Buenos Aires para procurar o amado no Rio de Janeiro, em Caracas e, por fim, fomos viver em Nova Jersey.


Neste O cantor de tango (Companhia das Letras, 2004), percorremos Buenos Aires em andanças noites adentro, conhecemos ruas e cafés; daí, anotei os nomes dos cafés e das calles e fiquei com uma vontade imensa de seguir para a Argentina.


Tomás Eloy Martínez tece seus romances com extrema maestria. O cantor de tango nos remete para a Argentina convulsionada do começo do século 21, em busca de um cantor de tango fenomenal, melhor do que Gardel, mas que nunca gravou seus tangos. Misterioso, ao buscar o cantor, buscamos a história recente, buscamos o Aleph, sentimos o pulsar da cidade e o pulsar de suas marcas, a literatura pungente, o tango fascinante.


Pensei que quando acabasse “Volver” iríamos embora, mas o Martel levou as mãos ao peito, de um modo quase teatral, inesperado vindo dele, e repetiu o primeiro verso de “Margarita Gauthier” pelo menos quatro vezes, sempre com o mesmo registro de voz. À medida que a repetição avançava, as palavras se enchiam de sentido, como se ao passar fossem recolhendo as vozes que as pronunciaram em outros tempos.
Tomás Eloy Martínez, em O cantor de tango

Ilustração: "Tango", da espetacular artista plástica argentina, Virginia Palomeque.