quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

AVALIAÇÃO ANUAL - PARTE I


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Gerana Damulakis



Não deixa de ser um exercício de vaidade isto de listar as leituras do ano que marcaram em termos de prazer estético, prazer da leitura ou como se possa chamar a mais. A soberba me incomoda muito, talvez seja o pecado capital que tem uma relação plena de conflitos comigo. Como uma pessoa que condena a vaidade pode gostar tanto de opinar sobre literatura? Não sei responder, mas garanto que é sempre com deleite que leio, vibrando a cada frase perfeita, a cada verso tocante. Lembrei de Fernando Pessoa que soube dizer em "Gosto de dizer": "As palavras são para mim corpos tocáveis (...). Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim(...). Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. 'Fabricou Salomão um palácio...' E fui lendo, até o fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar".
É esta paixão pelas palavras, um tanto ao modo de Pessoa, que acaba levando ao desejo de escrever sobre as leituras, para mexer mais um pouco com elas, para que perdurem mais. O livro que me deu mais prazer este ano foi Istambul, de Orhan Pamuk (Companhia das Letras, 2007) e, que ironia, eu nem gosto muito de biografia, prefiro sempre a ficção. Mas Istambul é diferente: trata-se de "Memória e Cidade" numa mistura equilibrada, despojando, desta forma, o narrador de um trono. Em autobiografias o que me incomoda é o narrador se colocar como centro do mundo, parece que se qualquer pessoa respirar, só respirou porque o narrador existe! Não há isto em Istambul, Pamuk consegue algo raro: uma narrativa deliciosa sobre a cidade e sua vida dentro dela.
Seguindo em frente: há sempre um clássico que ainda não se leu, mesmo sendo uma leitora tão fascinada e com tanta gana por ler tudo; todavia há muito para ler. Li O deserto dos tártaros (Nova Fronteira, 1984), de Dino Buzzati, clássico do século XX que estava pendente. Embora já soubesse tudo sobre o livro através de ensaios, um dia teria que fazer tal leitura. Tenho que reproduzir algumas frases de Buzzati: "Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso que causa a solidão da vida".
Resta agora levantar um paralelo Buzzati - Kafka, o que iria resultar num ensaio instigante se eu tivesse o talento de César Aira. E é Aira o autor do livro de ensaios Pequeno Manual de Procedimentos (Arte & Letra, 2007) que destaco neste ano: foi saboroso porque pensamos a literatura de modo muito parecido.
Falta muito o que comentar. Para encerrar, por um jogo de associações complicado, tive necessidade de um pouco de poesia, da poesia de sempre, de versos que já estão entranhados e ficam se repetindo dentro da mente: o som das palavras de Drummond no "Poema de sete faces":

"Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco".






As fotos são de: Fernando Pessoa, Orhan Pamuk, Dino Buzzati, César Aira e Carlos Drummond de Andrade.