quarta-feira, 29 de abril de 2009

DE COMO ME APAIXONO POR VIAS ESTRANHAS


Gerana Damulakis


Quando se tem uma obsessão tal como a literatura, a mente guarda versos, estrofes, frases, parágrafos. Aramis Ribeiro Costa sabe poemas inteiros. Uma tarde, na Academia de Letras da Bahia, eu estava conversando com ele, já havíamos conversado algumas vezes, só que nesta tarde, neste evento, conversamos sobre poetas e ele disse um soneto inteiro de Vicente de Carvalho, era um da série "Velho Tema". Aquilo bateu dentro de mim e, confesso, foi assim que me apaixonei. Já viu alguém se apaixonar por conta do outro dizer um soneto inteiro? Só comigo mesmo. Durante todos os anos que se seguiram, ele, volta e meia, está me dizendo algum poema. Vai mais longe: sabe todo o começo de Iracema, de José de Alencar. E diálogos inteiros de Os três mosqueteiros, de Dumas, sendo ele Aramis... É coisa de gente que tem memória, claro!
Eu insistia, quase como uma mania, em dizer que não tenho memória porque meu pai me ensinou a não decorar. Explico: meu pai me ensinava matemática e física e me ensinou de modo a chegar até as fórmulas por dedução lógica, não por decoreba. Assim, Trabalho é igual a Força vezes o Deslocamento (distância). Imagine o trabalho para arrastar uma mala: você coloca força para deslocar a mala (tirá-la da inércia, certo?) e multiplica pela distância que ela será deslocada, óbvio. Foi desta forma que me apaixonei (reparem, hoje estou muito apaixonada!) pela física, pela matemática, pela química. Ao longo de todos os anos, havia a literatura (sempre houve), que mexia com “o lado esquerdo do meu peito”. Lia os clássicos, devorava os contemporâneos, a biblioteca da minha casa era enorme, tinha o tio jornalista e escritor, o gosto próprio pela coisa toda, eu escrevia muito (quantos poemas!)...; no entanto, na hora do vestibular, eu não poderia decepcionar meu amor maior, meu deus na terra e, pronto: área 1 na cabeça, a criatura que era o máximo nas exatas no Colégio Marista, simplesmente entrou em Química, na Universidade Federal da Bahia. E continuou sem decorar. Irmão Aquiles, na época era o diretor, me chamou e vaticinou que eu iria errar de profissão porque eu escrevia no jornal do Marista, era elogiada nas redações, coisas assim. Minha mãe conta que Viana Moog leu um poema meu (uma criança) e disse que eu seria uma grande poeta. Este, sim, errou feio!
Entregue, enfim, ao mundo da literatura, não sem antes ainda fazer uma pós em Química, comecei a admirar quem sabe decorar poesia ou prosa ou ambas. E, hoje, com tanta estrada no mundo da literatura e minha única vaidade, que é o excesso de leitura e conhecimento disso a ponto de realmente saber identificar o texto verdadeiramente literário - hoje, repito, filha sem pai vivo, quase sinto que estou traindo meu deus, meu amor maior, porque decoro facilmente os versos, as estrofes, o começo de alguns romances. Todavia sei resolver qualquer problema de matemática sem precisar de papel e lápis, viu pai?

Foto -para os amantes da química:), de coy:], retirada do Flickr.