domingo, 17 de agosto de 2008

REENCONTRO



▫ conto para vozes e coro ▫

Fred Matos


- Era do mangue, era sim, era outra, se desconhece mulher mais séria desde então. Boto a mão no fogo, a língua no pilão, carecer não carece de maior explicação. Madalena, nome de vida, que não se pode manchar o de nascida, de batismo. E de agora de novo que é Doralice.
- Dos de lá, dos daquele tempo, não tivera notícia, até que um dia, mundo pequeno, traiçoeiro destino, não faz muito tempo. Na porta da igreja, missal na esquerda, na destra a criança, o passado nos olhos, na tez palidez, no coração o susto. Queria não ver, tenção de fugir, bambas as pernas, nada pôde fazer.
- Na vida começou mal botou peitos, ainda menina, levada pela mãe pra beira da estrada.
- É o destino: os rapazes descem pra capital ou pra São Paulo, as moças, quase todas, pra vida, naquele sertão miserável.
- É isso ou morrer de fome, deixar à míngua os velhos e os fedelhos.
- Dois anos antes pai tinha ido pro corte de cana em São Paulo com promessa de voltar com dinheiro no fim do serviço. Nunca voltou, nunca deu notícia. Um ano passou se foi João, meu irmão mais velho, prometeu trazer o pai e dinheiro, também não tinha voltado nem se sabia dele o paradeiro. José, o outro, logo arriba de eu, mãe não deixou ele ir. Entre João e José era Rita Maria, fazia a estrada desde dias depois que pai sumiu. Naquele ano que João se foi, ela tomou boléia em camião e também não deixou rastro. Ficou tudo nós com fome. Da roça nem maniva, nem agave. Na cozinha, nem açúcar, nem sal. Abaixo de eu, Quim, Rosalva, Cosme e Lia, essa, tão miúda, ainda de braço.
- Nunca foi santa. Foi sempre boa bisca. Desculpa esta esfarrapada. Não procede que vire puta toda menina pobre desta parte. É querer deslembrar o regrado das outras, no mesmo saco baralhar todas farinhas. Foi tudo ambição de luxo e luxúria. Mal de família apartada de Cristo, o pai que bebia de um tudo e arredou-se, a mãe que se fretava com qualquer um, um sem modo no sentar, a boca suja de pervertimentos. As filhas, os três vinténs perdidos na estrada. Os filhos na bebedeira e na preguiça.
- De uns não desgostava decerto, de outros engolia o nojo, uns pagavam trocados, alguns conversa fiada, outros davam porrada... e o ganho, sempre pouco, pouco era pra alimentar tantas bocas famintas.
- Um dia briguei com mãe. Cheguei da estrada cansada, a fome roendo as tripas, não encontrei de comer, nem farinha, nem carne seca, nem pedaço de rapadura, nem raspa de melaço. Eu, que de tudo comprava, nem sobra achei naquele dia, os outros tudo de bucho cheio. Fiz minha trouxa, o pouco que tinha. Tinha o destino traçado, no encalço de Rita Maria.
- Cidade da perdição, Juazeiro da Bahia. Ruas e mais ruas, transversais da ferrovia, castelos porta com porta, antro de sem-vergonhices, luzes vermelhas acesas, faróis do mau caminho.
- Uma flor murcha, chegou aqui maltrapilha, na trouxa uma muda de fedida chita mofada. Descalços os pés, rachados no asfalto quente. Os cabelos sujos, embaraçados. Fazia dó. Mas dava pra se vê que era bonita e o corpo de agradar qualquer fino freguês. Bateu na porta, pediu abrigo. Arrumei-lhe um quarto, dei roupa nova, perfume e batom. Dormiu o dia inteiro jiboiando. De noite foi sucesso no salão, ciumando as mais antigas, nenhuma tinha dela o mesmo viço.
- Fez fama no Juazeiro, a mais cobiçada de todos, até se fazia leilão para se ser da noite o primeiro. Até que um dia assucedeu.
- Menino mimado, tímido, criado no bem bom da capital, Jorge, neto de Seu Remígio, fazendeiro dos mais ricos, dono de légua e léguas, dez mil alqueires do norte nas barrancas do São Francisco, estava de férias com o avô.
- Um absurdo o velho safado levar para o antro o menino. O inocente pouco passara dos quinze. Correu logo a notícia, na praça, no mercado, que o coronel Remígio contratou por um mês inteiro, pagamento adiantado, a exclusividade da menina puta. Se diz que foi dinheiro tanto que muitos não ajuntam em anos de labuta.
- Era a mais nova da casa, a mais cobiçada, o coronel não regateou, pagou na bucha, adiantado, mas não foi o exagerado que o povo diz. No outro dia trouxe o imaculado. Por aquela porta entrou cabisbaixo, modos miúdos, um acanho de olhar nos olhos da gente e no derredor.
- Muito, muito lisos e muito pretos os cabelos. Bonito como um anjo menino, nunca nem vira mulher pelada, me chamou de senhora, me tratou como princesa, mas não deu fé no primeiro dia. Um fiozinho de voz mansa e calma pediu segredo, que não mangasse dele nem nada dissesse a ninguém do decorrido. Deitados, ficamos nus abraçados muitas horas, ele me beijando como se fôssemos namorados e querendo saber um tudo de mim, me compreender coisas que nem eu sei, as mãos macias correndo meu corpo, a ponta dos dedos deslizando, deslizando, me deixando louca de vontade como nunca dantes, um arrupio na pele toda. Nada houve que eu fizesse do tudo que já sabia das lições da vida. Chorei, ele me bebeu as lágrimas, abraçou mais forte, prometeu me tirava daqui, me levava com ele pra cidade da Bahia.
- Antes, quando meu avô me disse do que tratara, e eu concordando, o medo escondido na vontade do jamais, não pensava possível tanta lindeza enfiada prisioneira naquele lugar, naquela vida. O corpo formoso, as feições finas, um modo precioso de andar como voando, borboleta ou bailarina. Era em nada diferente das mais bonitas meninas de Salvador, somente no modo de falar ignorante, coisa que se aprende. Senti vertigem. Foi a fedentina do quarto, colchão de palha, lençol furado, paredes mofadas, o confuso de sons vindos do salão invadindo o quarto, eu me sentindo como se mil olhos nos observando. Pedi a vovô que a levássemos pra a Olho d’água, fazenda mais longe, onde não iam da família as mulheres, a avó, as tias. Nada nem ninguém pra atrapalhar.
- Quem nunca comeu melado, quando come se lambuza, mas é o meu neto mais velho, não lhe podia negar a prenda, passar um mês inteiro enfiado nas carnes frescas da quenga.
- Foi reboliço no mangue, de tudo se imaginou e se disse, quando se viu Madalena, vestida de moça decente, acomodada como sinhá de luxo, no banco de trás do Buick, encostadinha a cabecinha na do neto do coronel. Pareciam recém-casados saindo em lua de mel, só faltavam latas atadas no pára-choque do carro. Ao guidão, compenetrado, a feiúra mal encarada de Dalberto, pistoleiro temido, destacado pelo avô pra guardião do menino.
- De nada aqui se sabia da procedência da moça, ninguém era de saber, nem perguntar se ousava. Seu Remígio mandara avisar que o neto chegava e o trato que se devia era o mesmo que o pra ele, dono de tudo que há. Seu Dalberto trouxe os dois e o recado das ordens pra serem cumpridas.
- Bonitinho de se ver os dois no riachinho se banhando nuinhos, um fiapinho de água pequenininho, rasinho, que quando de pé um adulto só molha tornozelos. Os dois deitadinhos, juntinhos, ele alvo como leite, ela um tiquinho mais corada, na água friinha quase gelada. No outro dia Seu Dalberto avisou pra não espiar. Era ordem pra cumprir. Ninguém podia ir ao riacho quando eles se fossem pra lá.
- Aquele quase mês mudou minha vida, aprendi ali, naqueles dias, tudo o que ela aprendera, os segredos todos do coito, um Kama Sutra sertanejo, mas não é justo que a isto se atribua a paixão que me tomou, ela nasceu antes, nasceu naquele quarto imundo.
- Disse que me ia levar com ele, mas eu sabia ser sonho, que o avô não era de consentir no destrambelho, mesmo assim preferi sonhar, pelo menos enquanto durasse, e disse que sim, que eu ia para onde ele levar me quisesse. Pra o inferno que fosse eu ia, que o paraíso com ele eu já conhecia.
- Jorge chorou, amuou-se, a razão não escutava, tive que lhe propor um trato, manteria a quenga na Olho d’água, guardada e bem tratada, como se fosse senhorita, e que ela a visitaria todos os anos nas férias juninas. Contava que um ano distante fosse tempo suficiente para sarar a loucura, eu jamais permitiria que ele a visse de novo.
- Moça, o coronel manda, eu cumpro, a ordem é lhe dar sumiço, se por bem mandou dinheiro, não é pouca coisa, dá pra ir bem longe, montar quitanda, largar dessa vida maldita. Se por mal, precisando lhe mato sem judiação, um tiro no peito está feito, mas não quero esse desfecho, carregar comigo essa culpa, que o seu é sangue inocente.
- É por bem que eu obedeço, mas não carece o dinheiro.
- Ocê se deixe de orgulho, esse vem de onde não falta.
- Se falta não há de fazer, se não é paga por coisa não feita, se não é esmola ofendida, se é de boa intenção pr’eu mudar de viva, se é pra não fazer desgosto a Seu Remígio...
- Você não volta no mangue, ninguém há de saber deste trato, nem do seu paradeiro, se lá tem coisa que queira eu busco.
- Tudo o que eu tenho, Seu Dalberto, são as prendas que Jorge me deu: um colar, um anel, roupas bonitas. Careço só de uma mala que em trouxa não se há de ajeitar esse tanto de riqueza...
- O serviço foi feito. Aquela não volta mais pra essas bandas. Não fez precisão de matar, o dinheiro não queria, foi um custo que aceitasse. Levei até Salgueiro, botei num ônibus pra Timbaúba, de lá ela traça o destino. A criatura tem juízo, não chorou, não mostrou medo, parece até que sabia que era o certo de ser feito. O coronel não se avexe, na volta passei no puteiro: avisei que a quenga escafedeu-se e que dela lá se esqueçam.
- São sete anos passados desde que ela chegou. Nem um mês levou, comprou barraca na feira, no outro mostrou barriga. Trabalhadeira que só, em mais cinco se fez comerciante na praça. Nas horas de descanso ia pra escola noturna. Pra homem não dava trela, até conhecer Vitalino.
- De nada fui enganado. Quando a pedi pra casar me contou sua toda triste história e eu dei meu nome ao seu filho. Era do mangue, era sim, era outra, se desconhece mulher mais séria desde então. Boto a mão no fogo, a língua no pilão, carecer não carece de maior explicação. Madalena, o nome tal qual o da arrependida, nome de vida. De batismo e de agora de novo é Doralice. Dos de lá, dos daquele tempo, não tivera notícia, até aquele dia, mundo pequeno, traiçoeiro destino, não faz muito tempo.
- Na porta da igreja, missal na esquerda, na destra a criança, o passado nos olhos, na tez palidez, no coração o susto. Queria não ver, tenção de fugir, bambas as pernas, nada pôde fazer. Era Jorge. Teria vindo em seu encalço? Seus olhos se encontraram, nenhuma palavra foi dita, os olhos dela molharam, os dele secos se desviaram como se ela fosse maldita, deu no chão uma cusparada, apressou os passos pesados, saiu de vez da sua vida.



Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB,2006). Foto de xbolotax, retirada do Flickr.

CATIMPLORA - CATIMPLORA???

Gláucia Lemos


Se você é da geração-internet, ganha um sorvete, escolhendo o sabor, se souber o que é catimplora, sem recorrer ao Google, ao Houaiss ou ao Aurélio.
Por falar em sorvete, hoje eu estava me proporcionando uma rara transgressão sabor-chocolate, e sentenciei que quem inventou o sorvete está no céu. Eu tenho a pretensão de conceder um lugar no céu a todos aqueles que inventam ou descobrem alguma coisa que me seja útil ou agradável. Quem inventou a lava-louças está no céu, quem criou as receitas de todos os pudins do mundo está no céu, e por aí vai também o inventor do sorvete, essa divina delícia. Meu filho embarcou no meu delírio e brincou: foi alguém que pôs o suco para gelar, perdeu a hora, o suco congelou, ele bateu no liquidificador, e assim começou o sorvete.
Bobagens à parte, que a gente às vezes precisa de um tantinho de idiotia para refrescar a cabeça - não conheço alguém que não goste de sorvete. Não há inverno que dispense um sorvete na sobremesa do almoço.
Passados das primaveras etárias, começamos a descobrir a dieta dos diet e dos zero. E entram os sorvetes diet e os zero-gordura, e –Deus do céu!- os zero-açúcar. A pergunta é: com o que são adoçados os sorvetes zero-açúcar? Aspartame? Cruz Credo! Invade as gavetas da memória sem pedir licença e embola tudo o que encontra por lá. Eu até já ando pensando 10 vezes antes de entrar em uma conversação, porque é certíssimo que, se for falar que fui comprar um presente, vou esquecer a palavra PRESENTE, se ligar para convidar alguém para jantar, vou esquecer a palavra JANTAR, acaba sempre me fugindo a palavra principal da frase. Isso graças a um decênio ingerindo o famigerado aspartame.
Se não o adoçam com aspartame, talvez o façam com ciclamato. Deus que nos defenda! Dizem que é cancerígeno. Mas o sorvete de framboesa zero-açúcar é adoçado com alguma substância, sim senhor, é gostosinho, eu o degusto todos os dias, embora ainda não saiba de onde vem a leve doçura.
No entanto, que saudade! Nada se compara ao sorvete da infância. No tempo em que não havia carrinhos de sorvete rodando pelas ruas do bairro, badalando um sininho que era uma senha para o despertar de todas as crianças que estivessem no mais profundo sono da tarde. Anterior ao carrinho de sorvete da geração dos meus descendentes, houve um tempo em que não se vendia sorvete industrializado. A gostosura era fabricada por mãos hábeis não sei de quem, preparada sem essências artificiais, sim com frutas ou coco ou chocolate ou favas de baunilha. O sorveteiro o trazia em um recipiente semelhante a um balde de madeira grossa, que continha um outro, cilíndrico, de alumínio ou de flandres, rodeado de pedrinhas de gelo e de sal grosso. Ainda não existia o isopor que hoje nos socorre.
Quando, no meio da tarde, o sorveteiro gritava na esquina da rua o pregão esperado Sorveeeeeeeete! Chocolate, coco e baunilha! a maciez gelada já começava , por antecipação, a se fazer sentir na língua, e a descer lentamente pela garganta, como a sensação mais agradável que poderia ser proporcionada a uma menina de nove anos. Era o momento em que a menina acreditava que Deus existia e gostava muito dela. Desde aquele tempo eu acredito que quem inventou o sorvete está no céu. Acho que com muito merecimento, é, ou não é?
Ia me esquecendo de contar que eu não compreendia como era que o sorveteiro, aquele mensageiro dos deuses que me fazia feliz todas as tardes, suportava carregar na cabeça aquela catimplora tão pesada. Por que era que a minha alegria de todos os dias precisava pesar tanto na cabeça daquele homem abençoado, e teria que estar guardada naquele vaso de nome tão esquisito.
Mas hoje a minha preocupação vai mais longe, penso em quão mais triste seria o mundo se a alegria de uns tivesse sempre que estar presente através de um peso para outrem. Então, por questão de consciência, a quantas alegrias seria necessário renunciar, além das muitas a que já renunciamos por motivos os mais variados.
Enfim, a própria vida já é contraditória: ela é tão má, tão sem contemplação, no entanto, é tão bom viver!

Gláucia Lemos escreve crônicas neste blog para um livro que nasceu aqui. Foto de Andre Maceira, retirada do Flickr.