segunda-feira, 30 de março de 2009

HOMENAGEM A ANKITO


Aramis Ribeiro Costa


Acabo de saber da morte de Ankito, aos oitenta e quatro anos de idade, e a minha surpresa foi a seguinte: eu não sabia que ele ainda estava vivo. A televisão mostrou, em seguida, algumas imagens antigas e outras novas. As antigas, todas elas, eu conhecia. As novas é que voltaram a me surpreender. Vi um Ankito velho, participando de alguma novela que seguramente não assisti. Um velho bem diferente do moço que ele fora. E pensei que, se alguma vez eu o vi numa das cenas dessa novela mostrada, não o identifiquei. No entanto, Ankito foi uma das maiores alegrias da minha infância. Muitas vezes comparado com o gênio da chanchada brasileira que foi Oscarito, essas comparações sempre o deixavam em patamar inferior ao grande cômico nascido na Espanha e rei absoluto da Atlântida. Curiosamente, entretanto, na minha infância muitas vezes preferi Ankito a Oscarito. A dupla Ankito-Grande Otelo teve-me como espectador assíduo e divertidíssimo, nas duras cadeiras sem acolchoamento do Cine Roma e do Cine Itapagipe, cinemas que também não tinham ar condicionado, tinham um som muito ruim, mas apresentavam programas duplos e triplos, que começavam a uma da tarde e terminavam às sete da noite, e representavam para mim dois redutos de sonhos e alegrias. Ankito, que se chamava Anchizes Pinto, mas ninguém queria saber disso, foi uma das estrelas de primeira grandeza dessas alegrias. Gerana não gosta de nada no Leitora Crítica que não seja literatura. Mas, peço que abra uma exceção, e me arranje um lugarzinho no blog, só desta vez, para que eu preste esta homenagem a Ankito.


Aramis Ribeiro Costa é escritor, membro da Academia de Letras da Bahia.
Foto do ator Ankito: João Miguel Júnior/TV Globo

SONETO DO ENVOLVIMENTO


Gláucia Lemos


Aonde me levam águas deste rio
com a insignificância de uma folha...
Não há como parar, não tenho escolha,
deslizo em seixos e húmus. Sol ou frio.

Ora numa vertigem, rodopio
indo à flor da corrente. Ora à bolha
da água batendo em pedras. Ora me olha
a me encantar, o seu perfil esguio.

Perderam-se os meus pés por estas águas.
Minha sorte não sei. Mas sei que trago a
ansiedade de ainda prosseguir.

Por isso me pergunto, vez em quando,
se é mesmo o rio que me está levando
ou se sou eu que estou querendo ir...


Gláucia Lemos tem mais de 30 títulos publicados. Na foto, Gláucia e o poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos.

domingo, 29 de março de 2009

SALVADOR: 460 ANOS







Gerana Damulakis


29 de março: aniversário de Salvador, a cidade mais azul do Brasil.

Quando meu avô saiu da Grécia, morou 9 anos na França e, a seguir, veio para o Brasil. Aqui, ele viveu primeiramente em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, depois foi para Santos, em São Paulo, e, ainda, para Torres, no Rio Grande do Sul. Finalmente, aportou em Salvador, Bahia, para instalar-se definitivamente. A família -meu avô, minha avó, meu pai e sua irmã- comprou um apartamento no Edifício Oceania, em frente ao Farol da Barra (fotos acima) onde ambos - meu avô e minha avó - viveriam até a morte de cada um, décadas depois. Meu pai era adolescente na ocasião da mudança para Salvador, já entrando nos anos 50 do século passado. Eu mesma, passava meses na casa de meus avós e brincava muito, com meu amado irmão e minha avó, no gramado do Farol da Barra. Mas, trago meu avô para contar esta história, porque tenho a lembrança viva do quanto ele repetia que a cor do mar de Salvador era a única no mundo que se comparava com a cor do mar da ilha de Creta, na Grécia. Creio que isto teve uma enorme influência sobre ele, a ponto de arriscar uma conclusão: foi o azul do mar da baía de Todos os Santos que fez aquele viajante incansável enfim aquietar. E, graças a isto, eu existo.



Fotos retiradas do Flickr (koichimura) e do skyscrapercity (Cerrado). As primeiras mostram a Av. Oceânica, o Farol da Barra e o Edifício Oceania. A última mostra o Elevador Lacerda e a baía de Todos os Santos.

sexta-feira, 27 de março de 2009

INCÊNDIO NO MEU INSTITUTO


Gerana Damulakis

No último sábado, 21 de março, o Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia sofreu um incêndio. Para nós, químicos, que vivemos pelo menos cinco anos frequentando diariamente suas salas e laboratórios, não deixa de ser algo que nos toca. E as lembranças chegam com muita força. O quinto andar, onde se deu o incêndio, acolhe também a nossa biblioteca, lugar tão presente na memória. No Instituto, passei aqueles que foram anos muito felizes: o carinho dos professores (lembro especialmente de Miguel Fascio, professor de Fitoquímica, que, acabada a aula, levava todos nós para o Barravento), dos colegas (e nossa esperança compartilhada). Ali conheci minha grande amiga Vanja, companheira de todas as horas, atualmente chefe de qualidade de uma grande empresa no Polo Petroquímico de Camaçari – um dos grandes orgulhos de nossa turma. Eu gostava tanto do Instituto que, certa vez, nas férias grandes, virei ajudante de uma professora que aprontava sua tese: passei três meses, dia após dia, fazendo titulação após titulação (não sei como não fiquei vesga). Mas tudo era uma delícia: ambiente e pessoas. Até as bobagens, tais como: escolher quem ia lavar a vidraria depois da realização de uma experiência (ninguém queria), ou colocar apelidos usando a nomenclatura química (lembrei agora do colega Metil, o radical –CH3, juro que não lembro seu verdadeiro nome). Um lugar, uma fase da vida: queremos sempre preservar o que nos foi precioso. Sinto pelo estrago ocorrido no meu Instituto.

quinta-feira, 26 de março de 2009

O QUE É "ESCREVER"?

Gerana Damulakis

Creio que nada nem ninguém me desperta o sentimento da inveja, mas ultimamente estou sentindo algo parecido com isto. Não aquela inveja que destrói, até porque a inveja é de mim mesma, de uma outra Gerana que me deixou, que se perdeu em algum ponto do caminho. Aquela Gerana escrevia, mas não entendia a razão e não entendia o que é "escrever", achava os números superiores, não poderia viver sem suas fórmulas químicas, cálculos numéricos etc. A atual entende a razão, só que já não sabe escrever (se é que algum dia soube). Recorro ao parágrafo de Clarice que tenho aqui na minha parede, em frente ao computador, bastando levantar os olhos; assim como tenho também João Cabral de Melo Neto (outra paixão).


Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador.
Clarice Lispector

segunda-feira, 23 de março de 2009

O FIM DA ARTE

Gerana Damulakis

Tenho um amigo poeta que não me entende quando coloco a minha convicção de que a arte literária não tem compromisso com "passar uma mensagem". Em conversas com o escritor Aramis Ribeiro Costa, sempre lúcido e ponderado, chegamos a conclusão de que esta é uma conversa ampla e profunda, mas, em poucas palavras, o que ocorre é que o escritor não tem compromisso com o leitor e, sim, com a arte. Inclusive porque se o escritor tiver preocupação com o leitor, acabará tirando da arte mesma a sua natureza. A arte com objetivo fica desnaturada (creio que a frase é de Todorov). Além disto, o que há? Há o desejo do leitor de encontrar algo na leitura. O que cada um encontra é outra questão. Em se tratando de encontros, eu encontrei uma das maravilhas de Fernando Pessoa que cabe bem aqui.


O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da arte superior é libertar.
Fernando Pessoa

sexta-feira, 20 de março de 2009

LANÇAMENTOS NA BIENAL DO LIVRO DA BAHIA


Prezados(as) amigos(as):


Gostaria de convidá-los para o lançamento de nossos livros na Bienal do Livro da Bahia, que será realizada no Centro de Convenções de Salvador, em uma parceria entre o Grupo Pórtico, o Movimento Internacional Poetrix (www.movimentopoetrix.com) e a Editora Livro.com (http://www.editoralivro.com/), a saber:


1. DEIXANDO DE EXISTIR – ficção holocientífica
Autor: Goulart Gomes
Século 23. Em um mundo que superou os seus conflitos, as máquinas exercem um papel fundamental. Andróides trabalham lado a lado com os humanos, ajudando a construir um mundo novo. Mas, repentinamente, estranhos acidentes começam a acontecer. O Inspetor Bert é chamado para desvendar o mistério da destruição de alguns andróides e, auxiliado por seus amigos cientistas, ele chega à fatídica conclusão: trata-se de suicídios. Ambientado em um clima de ficção holocientífica, DEIXANDO DE EXISTIR discorre sobre temas existenciais como a eutanásia, a depressão e o suicídio com uma abordagem holística e filosófica, provocando o leitor a refletir sobre a importância e o sentido da vida.

Conheça a capa, leia informações e as primeiras páginas do livro em:
http://www.goulartgomes.com/visualizar.php?idt=1476300
Data: 18 de abril de 2009 (sábado), 18 horas
Local: Stand 12 – Editora Livro.com



2. MINIMAL, DOS MALES O MENOR! – poetrix
Autor: Goulart Gomes
Livro que reúne 400 poetrix do criador do Poetrix, com várias traduções para o inglês, francês, espanhol, italiano e alemão.

Leia alguns poetrix do livro e vários inéditos em: http://www.goulartgomes.com/publicacoes.php?categoria=S
Data: 18 de abril de 2009 (sábado), 18 horas
Local: Stand 12 – Editora Livro.com



3. ANTOLOGIA POETRIX 3 – comemorando 10 anos de criação do poetrix
Organização: Goulart Gomes
Autores: Aila Magalhães, Álvaro Posselt, Andra Valadares, Angela Togeiro, Anthero Monteiro, Antonio Carlos, Beto Quelhas, Carlos Fiore, Goulart Gomes, Hércio Afonso, João Pedro, Jussara Midlej, Lílian Maial, Luciane Lopes, Marco Bastos, Mardilê Fabre, Marilda Confortin, Marilia Baetas, Martinho Branco, Oswaldo Martins, Pedro Cardoso, Regina Lyra, Reneu Berni, Romildo Azevedo, Rosa Pena, Rosane Zanini, Sandra Mamede, Tasso Rossi e os vencedores do VI Concurso Internacional de Poetrix

Conheça a capa e leia informações em: http://www.movimentopoetrix.com/visualizar.php?idt=1485724
Data: 21 de abril de 2009 (terça-feira, feriado), das 17 às 19 horas
Local: Stand 12 – Editora Livro.com



4. ANTOLOGIA PÓRTICO 3 – poesia
Organização: Goulart Gomes
Autores: Ana Cecília de Sousa Bastos, Bené Lins, Carlos Valadares, Carmelita Menezes da Silva, Djalma Filho, Goulart Gomes, Luís Antonio Vieira, Márcia Tude, Martha Galrão, Martinho Branco, Oswaldo Martins, Regina Lyra, Reneu Berni, Rose Rosas, Vicente Cariri e Vladimir Queiroz.

Conheça a capa e leia informações em: http://www.goulartgomes.com/blog.php
Data: 21 de abril de 2009 (terça-feira, feriado), a partir das 19 horas
Local: Stand 12 – Editora Livro.com



Goulart Gomes------------------------------------------------ 2009: 10 ANOS DO POETRIX! http://www.movimentopoetrix.com/GOULART GOMES: 25 ANOS DE LITERATURA! http://www.goulartgomes.com/

quarta-feira, 18 de março de 2009

10º ANIVERSÁRIO DA MORTE DE J. J. VEIGA




PRAZER E TURBULÊNCIA


Aramis Ribeiro Costa


Objetos turbulentos é o título do mais recente livro de José J. Veiga, um título que poderá não atrair algum leitor, mas que é no mínimo pertinente ao conjunto das onze histórias curtas que a Bertrand Brasil entrega ao público com um subtítulo que é também uma sugestão: “contos para ler à luz do dia”.
Tendo como elemento detonador de cada trama um diferente objeto, a princípio insignificante ou de menor valia, mas que se transforma em centro de atenções dos personagens — e, obviamente, dos leitores —, Veiga percorre em cada história a curva ascendente e descendente do prazer à turbulência, fazendo com que esses mesmos simples objetos desencadeiem crises existenciais, como no excelente “Cachimbo”, transcendam a realidade pelo onírico, como em “Cadeira” e “Vestido de Fustão”, ou se tornem símbolos de um indesejado reverso da vida, como em “Espelho”.
Primoroso na sua concepção e no seu significado, “Cachimbo”, certamente o mais impactante do conjunto, faz do objeto de prazer e relaxamento um instigador da inveja, do preconceito e até, mais explicitamente, do racismo, curiosamente entre os da mesma raça. “Espelho”, na sua dimensão metafórica, admitiria a célebre leitura das entrelinhas na análise da sua real significação. “Cadeira” levaria o leitor àquela outra realidade jamais inteiramente desvendada, a do imaginário, tantas vezes mais incômoda e complexa que a cotidiana. O desejo de reconquista do objeto extraviado, em “Manuscrito Perdido”, é a ascendência da curva, que vai descender na turbulência da compreensão da sua exata importância. E o “Caderno de Endereços”, na verdade tão insignificante, seria a causa da perdição de um menino pobre, cujo sonho era viver na Alemanha.
Dessa maneira e assim por diante, embora o conjunto apresente como ponto em comum o enredo em torno do objeto, e os relatos tenham o prazer como partida e a turbulência como chegada, cada episódio possui, de forma independente, a sua acepção própria e a sua própria intencionalidade, bem como o seu ritmo e o seu plano narrativo.
Poderá parecer que os onze contos, por certo planejados para formarem a unidade do livro, sejam textos altamente elaborados com a intenção de impressionar a crítica ou, quem sabe, um público mais qualificado literariamente, tornando-se herméticos ou desinteressantes para o chamado grande público. Mas são exatamente o oposto. Sem deixarem de atender às exigências da qualidade — afinal, trata-se de um veterano e conceituado autor —, eles fluem suavemente, repassados de ternura e de fino humor, por vezes ironia e até uma discreta indignação, como se fossem narrados por um contador a viva-voz, voz mansa e pausada de quem ferra uma conversa gostosa.
Em “Manuscrito Perdido”, o personagem, que é um escritor, pensa, a respeito de algo que escrevera: “o conto tinha muitas sutilezas, muitas sinalizações disfarçadas, variações de ritmo, por isso gostara dele, talvez fosse o melhor de toda a coleção, o mais trabalhado para parecer espontâneo na leitura”. Isto é o que pensa o personagem de José J. Veiga sobre o que ele considera ser a sua obra-prima. Quem sabe não será precisamente isto que pensa o próprio José J. Veiga sobre o que seja um ótimo conto, e não se encaminhe, no seu ato de criação, para essas diretrizes? O fato é que são, em sua maioria, assim mesmo as suas narrativas, leves, sutis, com sinalizações ocultas, alternâncias de ritmo e, sobretudo, espontâneas. E vão levando o leitor de história a história, despertando inclusive uma curiosidade extra, por se saber antecipadamente que cada trama é motivada por um objeto: como será a da “Luneta”? E a do “Tapete Florido”? O que ocorrerá com a “Pasta de Couro de Búfalo”? E com o “Cinzeiro”? E, afinal, o que será esse objeto misterioso chamado “Cantilever”?
Esse livro, Objetos turbulentos (Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1997, 157 pgs.), que o autor recomenda seja lido à luz do dia, é um bem sucedido exercício de composição ficcional. Uma curiosa experiência que resultou em páginas, como a já citada “Cachimbo”, que, sem dúvida, se tornarão tão antologiadas quanto tantas outras do consagrado autor de Os Cavalinhos de Platipanto.




A resenha de Aramis Ribeiro Costa foi publicada no suplemento Cultural do jornal A TARDE, em 1997, e agora está resgatada como uma forma de homenagear o escritor de Góias. Na época, J. J. Veiga escreveu uma carta para Aramis, expressando o quanto havia gostado do texto; em outras palavras, chegou a escrever que foi a melhor resenha que ele já havia lido sobre um livro seu. GD

NOSSA COLETÂNEA


Misture, contos, poesias, crônicas e prosas em um livro... Você terá um Balaio de Idéias.
São 25 escritores, cada um com seu estilo - alguns novatos no mundo das letras, outros nem tanto - compondo de forma homogênea uma Coletânea que priorizou o espaço de cada escritor e tratou a cada um como AUTOR (com todas as letras maiúsculas mesmo).
Nas 124 páginas da Coletânea, leituras interessantes, autores de vários Estados do Brasil e dois de Portugal, que nos presenteiam com textos singulares, compondo a I Coletânea Scriptus - Um Balaio de Idéias.

( capa da I Coletânea Scriptus - Um Balaio de Idéias)

domingo, 15 de março de 2009

GRANDE BAÚ, A INFÂNCIA

Gerana Damulakis


Recebi a reedição do livro Grande baú, a infância, de Arriete Vilela. A escritora é de Alagoas, tem vários títulos publicados e muitos prêmios em sua bagagem. Faz bastante tempo que venho recebendo seus livros, seguindo sua produção literária e, principalmente, admirando seus textos.
Como escrevi, este Grande baú... é uma reedição, mas, ainda que logo no início a leitura me certificasse que os textos já foram lidos por mim em algum outro ano, não consegui parar de ler. Arriete tem um estilo que faz fluir a frase, o parágrafo, cada texto, enfim. E o conteúdo é um transporte do leitor para um tempo e uma criança que cativam. O texto nº 9 é especial; começa assim:
"- Avó, eu tenho medo.
- Está com medo de quê, menina?
- Eu não estou com medo, avó. Eu tenho medo."
Quando a menina lista de um só fôlego seus medos, garanto que cada leitor se identificará com muitos deles: são os medos que povoam a infância. Só que o mesmo leitor tomará um choque quando perceber que a menina disse tanto e a avó já não estava ali, havia passado para outro cômodo. "Teria me escutado a avó? Teria?"
É um livro repleto de emoções, é um encontro com um ontem carregado de intensidade, é enternecedor... Arriete traz sempre para seus livros, além do talento evidente, uma pungência que só pode ser traduzida em uma palavra: vida.

CAIO FERNANDO ABREU: ÊXTASE


Gerana Damulakis

A literatura brasileira nos anos 80 do século passado tem uma marca forte: o conto de Caio Fernando Abreu. A incorporação da cultura pop, do rock, de tudo que não é considerado material digno, literário (como apontava o próprio autor), foi um choque necessário. A leitura dos textos de Caio Fernando Abreu causa êxtase, um êxtase literário.
Só para lembrar: quando, no conto "Morangos mofados", ele encerra dialogando com A hora da estrela, de Clarice Lispector, isto é o verdadeiro êxtase literário.
E as frases que pinçamos aqui e ali, que ficam na memória como parte de nós, como: "... tudo já passou e minha vida não passa de um ontem não resolvido, bom isso".
"A cada junho, sei que não suportarei o próximo agosto."
"O infinito é nunca. Ou sempre."
"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra."

sábado, 14 de março de 2009

quarta-feira, 11 de março de 2009

APARTAMENTO 1001



Gláucia Lemos


Saiu do banheiro enxugando as mãos e sentou-se na borda da cama. Olhos no relógio, pouco mais de zero hora. Levantou-se bruscamente. Contemplou ainda uma vez o companheiro silencioso sob o cobertor de lã colorida. Era muito bonito. Fascinante demais para ser tão amado. O fascínio pode tornar as pessoas excessivamente seguras. Conceder-lhes a falsa impressão de absoluto poder e levá-las ao fio da navalha, a zombar dos limites. Os mais belos deveriam nascer cegos, para que os espelhos não viessem a cegar suas almas. Os espelhos cruéis que não a poupavam de testemunhar no próprio rosto as marcas do tempo.
O suspiro saiu profundo e dolorido, como se o arrancasse de dentro da alma.
Dois passos até a janela. O silêncio da rua era algumas vezes maculado pelos motores dos carros que transitavam maciamente. Convenceu-se de que nunca estariam dormindo todas as pessoas de uma cidade. Havia muitos olhos insones. Mesmo no décimo andar, escutava os motores resfolegando insistentes. Nunca permitiam que a noite dormisse, sempre haveria algum rumor no silêncio das ruas, como no silêncio das almas, onde o rumor do feito e do desfeito persistiria até que se consumassem as consciências. Que estariam fazendo outras pessoas despertas naquele momento? Quantas delas teriam a crepitar no íntimo o mesmo fogareu de angústias e horror que consumia sua paz? Todos têm suas dores, dizem. Mas, todos as têm tão intensas? Um choro convulsivo tomou-a inteiramente e ela levou as mãos ao rosto, limpando as lágrimas e cobrindo a boca, como temendo que os soluços despertassem o homem.
De repente, como se não fosse óbvio, descobriu que estava nua. Apanhou o vestido ao pé da cama e se vestiu apressada. Arrumou os cabelos ligeiramente com dedos nervosos. Alcançou o chaveiro em cima da mesinha e o ruído sobre o mármore lhe pareceu um gemido áspero. Nas faces brancas do homem quieto, a pouca luz fraca do spot projetava-se como o enfoque a uma obra de arte. Contemplou-o uma última vez com olhos de dor e despedida. O desenho do nariz, a boca sensual. Quanto era belo! Desligou a luz. Saiu, fechando maciamente o trinco, enquanto ainda todas as coisas estavam envoltas em tons de sépia.
O elevador não demorou, àquela hora ninguém estaria utilizando alguma das cabines. A descida fez-se muito rápida.
No saguão silencioso o ritmo dos saltos semelhava marcação de relógio. O recepcionista do plantão cochilava por trás do jornal que conservava aberto, fingindo ler. Como um robô, o manobrista esticou a mão, seguida de um bocejo, recebendo as chaves.
- O Mercedes branco.
Manobrou, abriu a porta na penumbra, recebeu a gorjeta e retornou à porta de blindex, empertigado, de olhos sonolentos, sem olhar o rosto da mulher, enquanto ela se foi. Estava mais que acostumado a ver senhoras distintas deixando os quartos do hotel antes do amanhecer. Sempre sozinhas, os parceiros desciam depois, ou não desciam, ficavam para o café da manhã, no próprio hotel. Uma a mais, uma a menos, não tinha por que estar olhando os rostos, todas tinham a mesma cara misteriosa, de olhos enormes às vezes encravados em olheiras acinzentadas, rímel nas pestanas, e volumosos cabelos tingidos. E aquele caminhar arrogante de queixo levantado e passos largos. Todas empacotadas em roupas sedosas e sapatos de saltos. E deixando um leve perfume no ar, quando passavam, como se tivessem o mundo a seu dispor. Era só mais uma.
O Mercedes acompanhou pelas avenidas o rolar dos pneus de outros raros carros boêmios. A maresia suave turvava o parabrisa.
Parou em frente ao prédio. Lentamente o portão de aço foi se movimentando e o carro transpôs, descendo a rampa do estacionamento para sua vaga. Ainda não havia ninguém por ali. Só o gato marisco que morava na garagem e dormia embaixo da caminhoneta azul-piscina.
Saltou apressada, bateu a porta com cuidado. Era preciso substituir a velha placa. Abriu o bagageiro depois que afrouxou o único parafuso que retinha a placa, e aparafusou a que retirara da mala. O container da coleta de lixo que se encontrava ao lado das garagens, ainda com restos de papéis, estava bem à mão para receber a placa rejeitada. De quanta manobra se necessitava para viver um mero plano de vida, pensou. Mas agora tinha a respiração opressa, quase insuportável. Caminhou até o elevador e sem demora subiu ao apartamento.
Inutilmente tentou dormir algumas horas antes de retornar à garagem. Uma agitação interior não permitiu. De olhos no relógio aguardou. até que depois das oito desceu, confortada pelo banho quente e por novas roupas. Rádio ligado, atenta ao noticiário da manhã, rodou até a periferia da cidade, sem mais que as notícias corriqueiras de todos os dias. Um crime a mais, um assalto a mais. Lá estava uma oficina de pintura a qual nunca recorrera.
- Quero trocar a cor. Sempre quis um carro vermelho. Quero um tom bem forte, cor de sangue.
Havia muito sangue nos lençóis. Só um pequeno corte na garganta. Canivete ou outro pequeno objeto cortante, o perito escreveu no laudo Era um belo pescoço de grego, ensangüentado.
Ninguém notou quem entrou ou saiu do apartamento 1001 do hotel cinco estrelas. O hóspede ali estava há uma semana, era hóspede costumeiro, todas as vezes que retornava à cidade ocupava aquele mesmo apartamento. A recepção não soube informar quem teria subido, eram tantas as mulheres elegantes que subiam em companhia de certos hóspedes, executivos, políticos de prestígio, celebridades, gente que exigia a maior discrição.
O manobrista não tinha idéia, eram tantas as senhoras distintas que saiam nas madrugadas dos sábados.




Gláucia Lemos é autora de mais de 30 títulos. Coloquei esta foto de nós duas porque não vi Gláucia nas nossas três últimas reuniões: em dezembro, ela viajou; depois, na reunião de janeiro, eu não pude ir e na de fevereiro, ela gripou. Total que: estou com saudades.

terça-feira, 10 de março de 2009

EM VÁRIAS FASES DA VIDA: BALZAC

Gerana Damulakis

É interessante como a obra de Balzac está presente em várias fases da minha vida. Estou lendo História dos Treze (Ferragus, A Duquesa de Langeais, A Menina dos Olhos de Ouro, em volume único da L&PM Editores).

"Saudai-me, pois estou seriamente na iminência de tornar-me um gênio", escreveu Balzac em carta à sua irmã.

De fato, ele foi um gênio.

domingo, 8 de março de 2009

MINICONTO DE ANTÔNIO TORRES


MAS O RIO CONTINUA LINDO
Pensa o desempregado ao pular do Corcovado.


Foto de mistca, retirada do Flickr.

sábado, 7 de março de 2009

PARA A MARIA HELENA


Manuel Anastácio


No horizonte, na ténue linha onde os gritos morrem
E se cala o eco,
As montanhas concentram-se num fractal
Onde o bem e o mal tomam formas
De insuportáveis dimensões.
Antes do horizonte, insustentáveis, as coisas fogem ao
olhar,
E os sentidos obrigam a um só momento.
Antes do horizonte não há memória nem pensamento,
E a erosão destrói a história e qualquer outra ilusória
narração.
As imagens, oxidadas, envelhecem, veladas em poeira e
abrasão.
Os mantos abrem buracos por onde o coração das coisas
vê as estrelas
E Abraão, sem vê-las, planeia veredas.
Mas antes do horizonte apenas seguem sendas e atalhos
Cortados em retalhos sem limite.
Antes do horizonte, os caminhos
Esbarram na impossibilidade de atravessar o que a luz
obriga.
Dos mais curtos, dos prometidos, há pedaços.
Há fragmentos de percursos interrompidos.
Há farrapos de mera possibilidade.
E, na verdade, perdidos,
Somos rendidos nos caminhos pelos deuses que passam
E nos trespassam com sonhos e promessas
Que se esbatem no horizonte.

A erosão corrói a cutícula do universo
E há no seu inverso, a deposição, o mistério das coisas
como elas são.



Manuel Anastácio é poeta e professor, assina o blog Da Condição Humana: http://literaturas.blogs.sapo.pt/
Conservei a ortografia do português europeu.
Ilustração da postagem: "Lamentação da Virgem", de "As Horas da Cruz" do Mestre de Rohan. 1435

quinta-feira, 5 de março de 2009

DUAS ESCRITORAS DE PESO


Gerana Damulakis


As escritoras Állex Leilla e Renata Belmonte lançarão seus novos livros. Állex Leilla é, na minha opinião, uma ficcionista singular: original, ousada, seu texto sempre exerceu um enorme fascínio sobre mim justamente por ser ímpar em se tratando de tema e linguagem. E Renata vem se firmando com seus livros e seus prêmios, os quais, de saída, atestam um talento verdadeiro; espero e creio que sua profissão, consumidora de tempo em área distante da literatura, jamais conseguirá sufocar este talento. Será com muito prazer que lerei O sol que a chuva apagou (belíssimo título) e Vestígios da Senhorita B. (título que corresponde ao blog da própria Renata).

domingo, 1 de março de 2009

CASTELÃO DE MITOS

Gerana Damulakis

"Estou na berlinda/ porque tenho no meu peito,/ além dos espinhos desses cardos,/ uma saudade infinda."
Sosígenes Costa



O tratamento sobre a obra de Sosígenes Costa começa pelo caminho da admiração. É, antes de mais nada, um tratamento admirativo e isto torna difícil a escolha da direção na qual podemos lançar um olhar para avaliar sua poesia. Autor que viu apenas um livro publicado em vida, Obra Poética, Rio de Janeiro, Editora Leitura, 1959, o baiano de Belmonte, nascido em 1901, viveu 68 anos e teve dois livros póstumos, ambos publicados pela Editora Cultrix, de São Paulo, graças ao empenho do ensaísta e também poeta José Paulo Paes: a Obra Poética II e Iararana.
Se Sosígenes é mais citado pelos seus "sonetos pavônicos" de versos que se guardam na memória, seria errôneo deter a mirada nestes poemas de descrição simbolista, únicos em verdadeira originalidade, refinamento e mesmo na estranheza que suscitam quando o poeta deixa que a impregnação do luxo barroco estabeleça uma combinação que denuncia sua singularidade. Bronzes, lilases e lírios, mirra e canela, compõem sonetos simbolistas, mas ímpares no uso destes símbolos. Há sempre um quê de irônico, uma esgarçar do canto da boca, como se ao lidar com flores e aromas, o poeta evocasse um mundo que viesse diferir a sua poética a ponto de tornar impossível seu enquadramento em uma escola.
A natureza, fornecedora de ritmos naturais, atrai o poeta Sosígenes Costa assim como os mitos, porque ela mesma criou vínculos com os arquétipos. Os ritmos poéticos, para N. Frye, são ligados ao ciclo natural por estarem sincronizados com os ritmos da natureza, por exemplo, com o ano solar. O pôr-do-sol, tão caro ao nosso poeta — um exemplo mais imediato é o soneto "Tornou-me o pôr-do-sol um nobre entre os rapazes" — é um arquétipo da sátira o que, de resto, coincide muito bem com o tom com o qual Sosígenes impregna muitas de suas peças poéticas. Tal soneto, donde foi retirado o título deste texto, é uma confissão do desejo de criar um sinônimo para a poesia, ironizando os mitos:

Queima sândalo e incenso o poente amarelo
perfumando a vereda, encantando o caminho.
Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.
A saudade no ocaso é uma rosa de espinho.

Tudo é doce e esplendente e mais triste e mais belo
e tem ares de sonho e cercou-se de arminho.
Encanto! E eis que já sou o dono de um castelo
de coral com portões de pedra cor de vinho.

Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.
Entre os ases da flora, os meus lírios lilases.
Meus pavões cor-de-rosa os únicos do mundo.

E assim sou castelão e a vida fez-se oásis
pelo simples poder, ó pôr-do-sol fecundo,
pelo simples poder das sugestões que trazes.