quinta-feira, 23 de outubro de 2008

LEMBRANÇA DE UM AMIGO DISTANTE

Flamarion Silva


Carlinhos era meu melhor amigo. Eu era o melhor amigo de Carlinhos. Um dia nos apaixonamos pela mesma menina. Então Carlinhos e eu brigamos. Carlinhos passou a ser meu pior inimigo. Eu passei a ser o pior inimigo de Carlinhos. Mas, como não bastasse apenas sermos inimigos declarados, provocamos um duelo. Fazia-se necessário saber qual de nós era o mais forte.
Carlinhos era um menino muito magro. Não fiquei intimidado quando arregaçou a manga da camisa e me mostrou seu muque. Em resposta, mostrei-lhe o dedo médio, bastante rígido. Foram contar a meu pai que eu dera o dedo para Carlinhos. Por conta disso, levei uma surra.
Meu pai me batia sempre com o seu velho cinturão de couro. Pude sentir com os dedos as marcas decalcadas nas minhas costas. O meu pai nunca me batera tão forte. A partir daí, criou-se em mim um ódio especial por Carlinhos. Ódio que antes jamais sentira por alguém, e, agora, posso dizer, nem mesmo depois.
Zelito, o novo melhor amigo de Carlinhos, veio me dizer o local.
— Atrás da igreja. Daqui a pouco.
— Vou acabar com ele. Acabo com você também.
— Então vai ser você contra nós dois.
Fui eu contra eles dois. Apanhei de Zelito. Bati muito em Carlinhos. Porrada especial foi um murro que lhe acertei na cabeça. Gabei-me desse murro. Dona Juca, a mãe de Carlinhos, ficou indignada quando soube da briga.
— Ora, meu Deus, mas eram tão amigos!
— “Eram”, respondi. “Eram”, 3a pessoa do plural do verbo ser; pretérito “imperfeito”. Dei-lhe as costas.
— Ora, mas como “é” estúpido. “É”, 3a pessoa do singular do verbo ser, presente do indicativo. Hum!
Naquele tempo sabíamos conjugar verbos.
Namorei a menina alguns dias. Mas a conjugação parece que não foi perfeita e o namoro acabou. Carlinhos foi morar em outra cidade e isso faz... faz talvez uns vinte e sete anos. Nunca mais nos vimos. Soube que Carlinhos enveredou-se no mundo das drogas. Triste.
Engraçado. O que me faz escrever não é a lembrança de um amigo. Lembrança distante, porém, tão viva e rica em detalhes na minha memória. O que me faz escrever é o esquecimento. Esquecimento de um amor que foi maior que a amizade. Amor que não deixou marcas no meu coração. Amor que o tempo apagou.
O que me faz escrever, inesquecível amigo Carlinhos, é o nome. Me diga aí, meu velho, como era mesmo o nome da menina?

Flamarion Silva é autor de O rato do capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, Coleção Selo Letras da Bahia, 2006).