segunda-feira, 21 de julho de 2008

Hugh Grant apaixonante

Somos como um mosaico. Meu lado pop é fã incondicional de Hugh Grant: apaixonante! Nestas imagens ele dança... resta suspirar! A cena Hugh Grant dançando é do filme Simplesmente Amor. Mais pop, impossível. Ainda assim, delicioso.

ELA É ASSIM

Gerana Damulakis


Não é necessário fazer isso, contudo farei porque, do contrário, irei morrer de raiva. E o que farei a seguir será contar como ela é.
Ela já amanhece pensando em coisas terríveis, catástrofes pessoais e descobertas de doenças raras. Vai direto para a cozinha e toma um copo de leite desnatado, gelado. Está toda vestida com um pijama de mangas longas já que dorme com o ar-condicionado ligado. Só então passa para o banheiro e escova os dentes e lava o rosto e se olha: toma sempre um susto diante da constatação do inchaço nas pálpebras inferiores, cada vez mais uma evidência dos anos que se passaram implacáveis. Feita a rotina, ela continua com outra, passando a rezar a oração de todos os dias, que acaba por acalmá-la um pouco. Volta para a cozinha, desta vez para tomar um café preto sem açúcar, que ela mesma prepara bem forte, e comer um pão de sal com queijo de Minas. Daí em diante há a questão sobre o que fazer. Ir ao banco, estudar o mercado financeiro, ler mais romances. A vida está assim resumida.
Os prazeres mais freqüentes entre as mulheres, tais como ir ao shopping e lá ficar até conseguir gastar o que têm e o que não têm, ir à casa de uma amiga para fofocar sobre outra amiga, ou mesmo entrar num curso de inglês sem objetivo algum já que não acrescentará nada ao currículo inexistente, nada de uma lista assim a atrai. Ela não é assim.
Ela acha que o único dinheiro bem gasto é o que se paga em troca de livros e o tempo bem passado é o que se perde, ou se ganha, lendo esses livros. Isto porque ela é como um barril cheio de vinho que jamais foi gotejado, nem mesmo para os enólogos provarem. Ela passou muito tempo lendo desde a infância e isto se agravou na adolescência e mais ainda na vida adulta. Algum período se mostrou produtivo e ela colocou bastante texto em cadernos e cadernos grandes para depois jogar tudo no lixo.
Cada instante sem leitura é um instante para tecer tragédias pessoais. Ela antecipa os inesperados golpes do destino, como quem vive em luta com o acaso. Só que o acaso não avisa, ou não seria acaso. Um lance de dados jamais abolirá o acaso, disse Mallarmé. O pai dela morria de medo do acaso, e, por conta do medo, desenvolveu uma série de superstições, de resto algo bem típico dos que nasceram na primeira metade do século XX: de nada adiantou, o acaso o pegou de jeito. Ela ficou tomada por esse medo, sem lembrar que mesmo o acaso pode levar uma lufada da sorte ou do azar, não deixando de ser exatamente o que se chama de sorte e o que se chama de azar. Quanto às superstições, não as desenvolveu, preferiu ir no certo e contar logo com a destruição antes que seja anunciada.
E cada momento sem leitura, sem busca por doenças, sem previsão de tempestades prováveis e iminentes, é um momento de elaboração de algum livro. Houve tempo que era a poesia, seguiu-se o conto, agora é o romance. Ela tece romances inteiros na mente e nunca os escreve. Passou a cultivar um olhar crítico sobre o texto dos outros e sempre encontra pontos positivos porque o simples fato daquelas pessoas terem conseguido colocar na página em branco algumas linhas, para ela, já é um fator que pede aplausos.
Assim foram elaborados verdadeiros tesouros da literatura impossível; impossível por não existir fora da cabeça de alguém. E para ir mais longe, é certo perguntar nesta altura a razão que levou tal criatura a escapulir dos chamados da literatura. Porém, a coisa se complica muito se eu resolver entrar na seara da psicologia que tenta desbravar os motivos que desviam o caminho de um destino, mudam a rota da seta antes que ela atinja seu derradeiro lugar, seja o alvo, seja o chão.
Passado o dia sem graça, ou cheio de expectativas quanto às catástrofes, ela mergulha nos romances, entra em êxtase com achados poéticos, com metáforas incomuns e inteligentes, com enredos fascinantes. Cada escritor descoberto e enaltecido por ela é um tanto ela própria, ou guarda um tanto do que poderia ter sido e que não foi, como reza um verso brilhante do grande Manuel Bandeira. Há épocas em que ela está segura de que pode viver assim, mas há épocas insuportáveis: é muita angústia, muita aflição. Um imaginário tão povoado e tão tomado pela realidade e pela ficção se assemelha a uma represa no período das chuvas intensas: um dia ela irá transbordar. E eu não quero ficar tão perto.
É verdade que não seria necessário fazer isso, contar as mazelas dela aqui, mas ela está tão entranhada em mim, tão próxima que, de alguma maneira, preciso deixá-la sair um pouco de dentro de meu corpo para não morrer em breve. Talvez seja assim como assassinar uma parte de si mesmo, o que, às vezes, se faz preciso. Assassinando-a, é de se esperar que prevaleça alguma parte mais sadia. Penso que sou melhor do que ela, eu tenho qualidades que ela não pode sequer almejar. Então, digo que ela é assim. E eu não a suporto mais.