quarta-feira, 17 de março de 2010

UM CONTO DE CARLOS RIBEIRO


DIANTE DO FAROL

Carlos Ribeiro

O homem, sentado numa pedra, diante do mar e do farol de Itapuã, remói velhas cismas, quase ele mesmo uma pedra, uma dessas rochas milenares sobre a qual, desde tempos imemoriais, o mar lambe e lava em seu vaivém incessante, acrescentando-lhe memórias ancestrais. Memórias ancestrais... De repente aflora-lhe à mente acontecimentos e imagens que pensava ter esquecido: a face de sua mãe quando lhe tomou nos braços pela primeira vez, a atmosfera mágica da casa em que viveu, em Itapuã, nos anos sessenta, seu primeiro sonho, o corredor que parecia não ter fim, o silêncio no quarto quando brincava no final da tarde, o cheiro dos sargaços, o cheiro das mangabas, o cheiro dos cajus e do mato molhado pelo sereno, uma lavadeira que cantava, o estranho e misterioso som das palavras, a espantosa descoberta da dor, a surpresa de estar alegre, a mesa do café, a família sentada à mesa, o despertador tocando na madrugada quando seu irmão mais velho saía para o serviço militar, em 1970, quando Lamarca aterrorizava os quartéis, o seu desejo de também servir o exército e que, depois (felizmente), perdeu, a vizinha que o amava, os carros passando nas ruas e nos viadutos, o cheiro do óleo em uma oficina mecânica em Nova Brasília, sua bicicleta, seu primeiro livro, seu primeiro carro, seu filho. Caminha com ele de mãos dadas pelo seu passado e de repente vê que ele é a criança.
Salvador, a cidade, a cidade ensolarada, que tanto aprendera a amar, dera-lhe o privilégio de andar de mãos dadas com a criança que foi. Mas de que adianta lembrar do que não é mais?, questiona. Prefere sair sozinho, caminhando, com as mãos no bolso, pelas ruas molhadas e voltar para casa e dormir. E sonhar com um homem que todos os dias percorre o mesmo caminho para nunca chegar a lugar algum. Mas eu posso chegar a algum lugar!, diz o homem. Veja esta casa, é a casa do meu avô, a mesma que conheci quando meu pai me levou pela primeira vez ao interior, em Conceição do Jacuípe, com seu DKW branco, que logo mais se tornaria um monte de ferro retorcido com marcas de sangue e gritos, gritos que nunca ouvi, porque eu não estava lá, naquele fatídico dia 7 de julho de 1973, no momento exato em que uma camioneta em alta velocidade saiu da estrada e acertou em cheio o carro, no qual estavam meu pai, minha irmã, de 11 anos, e meu irmão, de 3, numa curva de Amélia Rodrigues. Ele só teve tempo de dizer: “Nossa Senhora!” e se foi, e acho que seu último pensamento foi este: Nossa Senhora... e se lhe dessem tempo, pensaria também: “Isto não pode acontecer. Os meus filhos... Os meus filhos...” e o silêncio seguido de passos e de vozes das pessoas que se aglomeravam em volta do carro. Alguém fez massagens no seu coração, mas era tarde demais, e levaram as crianças para o hospital de Feira de Santana. E eu estou sentado na varanda da casa antiga do meu avô Tranqüilino – um sertanejo duro e espigado nos seus metro e oitenta, na sua careca e bigode alvos, na sua bondosa rispidez, na mão aleijada (por uma bomba de São João) que segurava o charuto sempre aceso, no jeito de olhar pela janela, vistoriando o tempo, no câncer que lhe destruiu a boca e a laringe, naquela ausência...
– Meu avô – digo eu na cozinha da casa rústica, olhando o reflexo bruxuleante do candeeiro nas paredes da casa. – Então eu sou obrigado a lhe dar essa notícia, que o seu filho, que o meu pai, que ele...
Oh, mas eu já não podia lhe dar a notícia. Meu avô já havia morrido muitos anos antes. Ele entra no recesso escuro da casa, lá onde fica a escuridão mais escura, e em toda a casa larga e extensa, em toda a casa com suas profundidades, em toda casa com suas memórias, em toda a casa com o seu obscuro passado, só há esse candeeiro que ilumina essa parede próxima a mim, e nada mais se mexe na casa além de uma lagartixa branca, quase transparente, que salta sobre uma das inúmeras formigas de asa que pululam incessantemente na parede – e tudo o mais é tão quieto e silencioso...
Veja: o carro ainda está lá, monte de ferros retorcidos, as frutas (jacas, mangas, laranjas, limas, limões) esparramadas no asfalto, e o carro – meu avô, meu avô, digo para o quarto escuro, mas ninguém responde –, e eu me lembro da alegria que tivemos, quando meu pai chegou com o carro, pela primeira vez. Morávamos ainda naquele apartamento apertado e infinito do Taboão, num tempo em que Salvador tinha aquele colorido suave de tons pastel, que saveiros e baleias passavam no horizonte calmo, que papa-figos aterrorizavam criancinhas, que a cidade mergulhava seus filhos em sua doce quietude.
Caminho para a varanda e vejo a lua branca cheia iluminando as roças de milho e os pés de lima e aquela jaqueira que ficava bem defronte à casa do meu avô. É tudo tão passado, penso. E, então, eu dormi, numa noite remota, na casa em Itapuã, onde veraneávamos, dentro do carro, na cama improvisada por minha mãe com cobertores grossos e travesseiros e lençóis, na garagem, e a minha mãe dizendo: “Deixe o vidro aberto para entrar ar”. E dormi, como Jonas na baleia, ali no ventre daquela estranha máquina que passaria, com o tempo, a fazer parte da família, juntamente com os passarinhos do meu pai, o gato, o cachorro, o cágado e a coleção de revistas em quadrinhos do meu irmão.
E eu não sabia ainda que eles não eram eternos.

Ilustração: Farol de Itapuã, fotografado pelo escritor Marcus Vinícius Rodrigues.

RETORNO DOS ENCONTROS LITERÁRIOS NA ALB