domingo, 17 de janeiro de 2010

LIVROS, ABISMOS E O CANTO DO RINGUE


Fernando Molica


O ponto da partida foi mais cedo para o chuveiro. Após ganhar de Acenos e afagos, de João Gilberto Noll, acabou derrotado por Flores azuis, de Carola Saavedra, nas quartas de final da Copa de Literatura Brasileira. O jogo foi decidido por Leandro de Oliveira.

Nada a reclamar, claro: como já ressaltei aqui, o mais importante da Copa é a oportunidade de se discutir a produção literária. Para fazer isso, o torneio brinca com a possibilidade de enfrentamento entre romances. Este quase paradoxo - livros não são escritos para participar de disputas - dá gás e areja esse pequeno universo. No caso específico, o Leandro foi equilibrado, ressaltou qualidades nas duas obras e fez uma escolha baseada em suas próprias expectativas como leitor. E é bom que tenha julgado na condição de leitor, livros existem para serem lidos.

Aproveito o embalo para levantar um tema que considero fundamental. A relação - ou melhor, a inexistência de uma relação - do público com a produção literária contemporânea brasileira. De um modo geral, não somos lidos por muita gente, é só conferir as listas de mais vendidos. Disse no outro parágrafo que livros existem para serem lidos. Deveria ser assim. Na prática, sofremos todos com uma incômoda ausência de leitores. Exceções como os livros de Chico Buarque não contam - o ótimo Budapeste vendeu muito porque nasceu assinado por um nome que é referência de qualidade para boa parte da população. Como diria nosso presidente, Chico não faz merda. Dá pra comprar sem muito risco.

Talvez estejamos todos - autores, editores, críticos - fascinados por uma festa em que somos os únicos convidados. Melhor, uma festa que só tem melhorado: os encontros literários se multiplicam, ganham visibilidade, charme e, volta e meia, rendem um cachê. Mas, como diz o Marçal Aquino, não saímos da nossa confraria, nos consumimos, nos frequentamos, nos elogiamos - nem brigar temos brigado. Nossa produção pouco circula fora do universo do leitor profissional. Não dá para achar que isso é normal, que podemos abrir mão do diálogo com leitores comuns, não ligados ao mercado editorial.

Não chego ao radicalismo dos que veem numa certa busca da inovação pela inovação a responsabilidade por esse não-encanto do leitor. Para eles, o jogo literário teria assim se transformado numa brincadeira auto-referente. Algo para iniciados, que excluiria os que estivessem de fora do baile. Mas este argumento radical não deve ser descartado, é bom trazê-lo para a discussão.

O problema é que a inanição do público também afeta autores que, em tese, poderiam ser mais populares. Nem dá para se falar numa conspiração formalista - ainda que o aspecto da suposta inovação seja volta e meia alardeado como fundamental para se definir a qualidade de um livro. Não é difícil encontrar resenhas que insistem em enfatizar, de uma maneira mais elaborada e sofisticada, a separação entre forma e conteúdo: aquela costuma ser apontada como mais relevante do que este. Tenho dificuldades para separar uma boa história de um bom jeito de narrá-la - um quesito depende do outro.

Tendo também a desconfiar desta busca pela suposta novidade. Antes de ser escritor, sou um leitor; um leitor desorganizado e não-sistemático, meus gostos são muito variados e não-enquadráveis - não consigo dizer que um livro é bom porque inova ou que é ruim pelo mesmo motivo. Um livro é bom porque se impôs, despertou meu interesse, me fez ter vontade de retomar logo a leitura. Não dá para medir a qualidade de um improviso pelo tempo em que o saxofonista ficou sem respirar. Machado de Assis morreu há cem anos, mas continua jovem, inovador. Ao mesmo tempo, há novidades que nascem caquéticas.

Talvez por isso - o critério é mais do leitor do que do escritor - me assusto pela busca literária do equivalente a um duplo twist carpado (ou esticado, ou com mortal na segunda pirueta). Na literatura, o tamanho do salto e seu índice de dificuldade não podem ser usados como referências finais de qualidade - até porque, na vida e nos livros, quedas costumam ser muito mais interessantes que as vitórias. Temo que uma eventual hegemonia desses critérios leve a literatura a um impasse como o que, de certa forma, empurrou as artes plásticas para o canto do ringue. A menos que, a exemplo do personagem de Cordilheiras, do Galera, estejamos todos fascinados pelo abismo.

Claro que nenhuma opção pode ser condenada de cara - ainda mais num momento que nem mesmo o livro em si, o próprio objeto, capas e miolo, se vê ameaçado por suas versões eletrônicas. Repito: não quero ser excludente nem separar e qualificar livros por suas características mais ou menos formais. Como dizem os bicheiros, vale o escrito, o publicado.

Admito, claro, que na literatura, não dá para associar qualidade a um bom desempenho de vendas. Mas não podemos cair no oposto: passarmos a considerar como bom o livro que não vende, que não é lido. Ter uma boa história não é sempre garantia de qualidade de um livro; assim como a ausência de um enredo mais palpável não deve ser vista como sinônimo de excelência. Talvez seja preciso um pouco menos de arrogância, de predisposições contra e a favor. O livro tem que valer pelo que é, pelo impacto que nos causa. Tanto melhor se essa experiência vier a ser compartilhada por muitas pessoas - não nos orgulhemos da exclusão deliberada. As melhores saídas não podem ser o desejo do canto do ringue ou o fascínio pelo pulo no abismo.

Fernando Molica é autor dos livros: Notícias do Mirandão (Record, 2002), O Homem que morreu três vezes (Record, 2003), Bandeira negra, amor (Objetiva, 2005), O ponto da partida (Record, 2008).
O texto foi autorizado pelo autor para publicação no Leitora.