sábado, 27 de fevereiro de 2010

"NENHUM HOMEM É UMA ILHA"

Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do Continente, uma parte da terra. Se um Pequeno Torrão carregado pelo Mar deixa menor a Europa, como se todo um Promontório fosse, ou a Herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque Eu pertenço à Humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.
JOHN DONNE


John Donne(1572-1631), poeta inglês, em “Meditações XVII”, escreveu o trecho usado pelo escritor norte-americano Ernest Hemingway para intitular seu romance pungente de 1940, For Whom the Bell Tolls (Por quem os sinos dobram). A história da guerra civil na Espanha, uma guerra entre irmãos, deu origem ao filme (1943) com Gary Cooper, no papel de Robert Jordan, o norte-americano das Brigadas Internacionais, que tem por missão explodir uma ponte, e Ingrid Bergman, no papel de Maria, a mocinha do par amoroso. Só que o romance é muito mais que uma história de amor, é uma diatribe à guerra, à violência, à intolerância entre os homens, os quais não podem viver uns sem os outros: "Nenhum homem é uma ilha".

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

CONVERSAS

Gerana Damulakis

Quando Carlos Drummond de Andrade, no poema "Procura da Poesia", do livro A Rosa do Povo, de 1945, enumera os temas com os quais a poesia não combina, ele praticamente elimina tudo o que há ao nosso redor, pois que diz "Não faças versos sobre acontecimentos" e "Nem me revele teus sentimentos", e ainda "O canto não é a natureza/ nem os homens em sociedade". Adverte que não é para dramatizar e "A poesia (não tires poesia das coisas)/ elide sujeito e objeto", assim como não se deve trazer a infância para a poesia. É ironia? Não é nada disso. O poema quer enaltecer a poesia buscada "surdamente no reino das palavras", as palavras "contempladas", pois que "ermas de melodia e conceito/ elas se refugiaram na noite, as palavras".
Lembremos que os temas enumerados por Drummond, temas com os quais a poesia não deve ser construída, são seus temas. Vamos além do dito, trata-se de Drummond.
Partindo deste poema, o poeta Gustavo Felicíssimo criou um diálogo, pelo menos é assim que eu sinto. Sinto essa conversa. E escutei, enquanto lia.

REVELAÇÃO
-----------------Gustavo Felicíssimo


Não estamos acima da poesia
para justificar nossa imperícia frente ao verso:
à sua frente, somos a fração do imponderável
--------------entre existência e linguagem.
Tua biografia não é a tua obra
e o que dela dizem não é a melhor imagem.
Deixa o teu leitor à vontade,
oferta-lhe a poltrona mais confortável,
um gole de água fresca
e o convide ao delicado mergulho em tuas vivências.
Não perguntes sobre os teus poemas,
observa primeiro se possuem raízes
--------------e se oferecem frutos saudáveis.
Cuida que a palavra,
esse incrível instrumento que tens às mãos,
não seja mais importante que os sentidos,
mas a memória, tua fascinante e intrigante memória,
--------------dela tirarás teus versos.
Preserve-a ilesa, perene, infinda,
na imutável companhia das coisas que te são caras.
Na memória reside a chave que decifra
a inadvertida presença da poesia nas coisas.
Sua morada é escura
--------e espera que acendas as lâmpadas,
---------------após, todas as coisas se revelarão.


Ícaro - Henri Matisse, c. 1943 Image from Metropolitan Museum of Art


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

SABEDORIA MILENAR JAPONESA

O que um romancista realmente precisa não são opiniões variadas mas um sistema pessoal de contar histórias no qual suas opinões possam firmemente se apoiar.
Haruki Murakami


Sinto um especial prazer quando leio Haruki Murakami, a ponto de não ter um título preferido entre os sete já lidos. Quem sabe Dance dance dance (Estação Liberdade, 2005), quem sabe Kafka à beira-mar (Alfaguara/Objetiva, 2008), mas tenho sempre um apreço, uma inesquecível lembrança do primeiro contato e daí lembro de Caçando carneiros (Estação Liberdade, 2001), quando Murakami todavia não tinha alcançado o nome que hoje é emblema da literatura de qualidade inquestionável. Seu mais recente romance publicado no Brasil é Após o anoitecer (Alfaguara/ Objetiva, 2009), uma história que se passa numa madrugada marcada por aproximações e afastamentos.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A NOITE ESTRELADA



Gerana Damulakis

Imagino que ocorra o mesmo com os poetas e com os amantes da poesia: basta olhar uma noite estrelada e os versos de Bilac chegam naturalmente. Tantas vezes me atrapalho com alguma palavra, mas não deixo de lembrar este poema que atravessa os anos, dito nas noites estreladas. Talvez seja o exemplo mais conhecido da poesia de Olavo Bilac (1868-1918), talvez nem seja seu poema maior, mas é aquele que traz um verso, ou alguns versos, memoráveis, amiúde citados, quando olhamos as estrelas.

VIA LÁCTEA

-------------Olavo Bilac

-------XIII

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,

Que, para ouvi-las, muita vez desperto

E abro as janelas, pálido de espanto...



E conversamos toda a noite, enquanto

A via láctea, como um pálio aberto,

Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,

Inda as procuro pelo céu deserto.



Direis agora! "Tresloucado amigo!

Que conversas com elas? Que sentido

Tem o que dizem, quando estão contigo?"



E eu vos direi: "Amai para entendê-las!

Pois só quem ama pode ter ouvido

Capaz de ouvir e de entender estrelas".



Ilustração:
A Noite Estrelada
Vincent van Gogh, 1889
óleo em tela
73,7 × 92,1 cm
Museu de Arte Moderna de Nova York

VIVA A POESIA VIVA


terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

MARIA SAMPAIO E PALOMA AMADO


As amigas de infância Paloma Amado e Maria Sampaio lançarão os livros Tio Tomás, primeiro infantil de Paloma , e Continhos para Cão Dormir II, sequência do último livro de Maria Sampaio. Os livros continuam a Coleção Cartas Bahianas, da P55, sucesso editorial do ano passado em Salvador.
Para reservar seus exemplares e seguir a divulgação em torno do lançamento, basta ir ao blog:
Lançamento dos livros: 9 de março, uma terça feira, a partir das 17 horas e até o último cliente, na livraria Tom do Saber, no Rio Vermelho.
Maria e Paloma, Salvador, 1965. Foto: Zélia Gattai

CONTOS DE VILARINHO

Gerana Damulakis

O escritor Carlos Vilarinho é meu afilhado literário. Isto porque seu primeiro livro foi aprovado por mim para edição na Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Secretaria de Cultura e Turismo. O volume de contos As Sete faces de Severina Caolha & Outras Histórias saiu em 2005. Ali, apontei no prefácio como o escritor alia o fato e a angústia cotidianos nas suas narrativas. Sei que posso esperar mais ainda da segunda reunião de contos de Vilarinho.
Lançamento de O Velho - 18 contos cotidianos e fantásticos: na livraria LDM, dia 6 de março, pela manhã, a partir das 10 horas.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A MALETA DO MEU PAI

(...)

Mas a minha história tem uma simetria que naquele dia me lembrou imediatamente outra coisa, e me provocou um sentimento de culpa ainda mais profundo. Vinte e três anos antes do dia em que meu pai me deixou sua maleta, e quatro anos depois que decidi, aos 23 anos, me tornar romancista e, abandonando todo o resto, me recolhi, acabei o meu primeiro romance, Cevdet Bey e Filhos; com as mãos trêmulas, entreguei ao meu pai os originais datilografados do livro ainda inédito, para que ele pudesse lê-lo e me dizer o que achava. E não só porque eu confiasse no seu gosto e no seu intelcto: a sua opinião era muito importante para mim porque ele, diferentemente da minha mãe, nunca se opusera ao meu desejo de me tornar escritor. Àquela altura, meu pai não estava conosco, estava muito distante. Esperei pacientemente pela sua volta. Quando ele chegou, duas semanas mais tarde, corri para abrir a porta. Ele não disse nada, mas na hora me abraçou de um modo que me fez entender que tinha gostado muito. Por algum tempo, mergulhamos no tipo de silêncio desconcertado que tantas vezes acompanha momentos de grande emoção. E então, depois que se acalmou e começou a falar, meu pai recorreu a uma linguagem rebuscada e exagerada para manifestar a sua confiança em mim e no meu primeiro romance: disse que um dia eu ainda iria ganhar o prêmio que estou aqui para receber com tanta felicidade.

Orhan Pamuk in A maleta do meu pai - discurso da cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 2006 (Companhia das Letras, 2007), tradução Sérgio Flaksman.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

UMA NOITE E UMA CARTA DE AMOR



Cidade do México, 12 de setembro de 1939.

Minha noite é como um grande coração batendo. São três e meia da madrugada. Minha noite é sem lua. Minha noite tem olhos grandes que olham fixamente uma luz cinzenta filtrar-se pelas janelas. Minha noite chora e o travesseiro fica úmido e frio. Minha noite é longa, muito longa, e parece estender-se a um fim incerto. Minha noite me precipita na ausência sua.

(...)

São quatro e meia da madrugada.

Minha noite me esgota. Ela sabe muito bem que você me faz falta e toda a escuridão não basta para esconder essa evidência. Essa evidência brilha como uma lâmina no escuro. Minha noite quer ter asas para voar até onde você está, envolvê-lo no seu sono e trazê-lo até onde estou. (...)

Minha noite pergunta a si mesma se meu dia não se parece com minha noite. (...)

Minha noite quer que você repouse no meu ombro e que eu repouse no seu. Minha noite quer ser voyeur do seu gozo e do meu, ver você e me ver estremecer de prazer. Minha noite quer ver nossos olhares e ter nossos olhares cheios de desejo. Minha noite é longa, muito longa.(...)

Você me faz tanta falta, tanta. E suas palavras. E sua cor.

Logo o dia vai raiar.

De Frida Kahlo a Diego Rivera em Cartas do Coração - Uma antologia do amor (Rocco, 1999), organização de Elisabeth Orsini.

Ilustração: Diego y yo, de Frida Kahlo, 1949.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

UMA BELA CANÇÃO

Gerana Damulakis

Lembro bastante da sensação causada pela leitura do poema "Uma faca só lâmina ou Serventia das idéias fixas", de João Cabral de Melo Neto: um atordoamento, questões sobre a poesia (ela é isso, então é isso?), a estupefação diante da riqueza daquela edificação. Sim, todos sabem, o poeta era um engenheiro, construía poesia. Mas é uma simples canção que tenho vontade de ler agora.

CANÇÃO
-------João Cabral de Melo Neto

Sob meus pés nasciam águas
que eu aprendia a navegar,
onde um perfil eu via
ao céu se abandonar,
e um grito de criança
imóvel no luar.

Sob meus pés nasciam águas
onde um navio ia boiar,
onde mãos de máquina
me saíam a procurar,
deitado numa rua,
perdido num lugar.

in Pedra do Sono

Foto: estátua de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), confeccionada pelo artista plástico Demétrio Albuquerque.
O Circuito da Poesia, em Recife, Pernambuco, é constituído pelas estátuas de:
João Cabral de Melo Neto, na Rua da Aurora (foto acima); Manuel Bandeira, também na Aurora; Clarice Lispector, Praça Maciel Pinheiro; Mauro Mota, na Praça do Sebo; Chico Science, no memorial do artista (Rua da Moeda); Solano Trindade, no Pátio de São Pedro; Ascenso Ferreira, no Cais da Alfândega; e Luiz Gonzaga, na Estação Central do Metrô.

A GRIPE "REBOLATION"

Marcelo Torres

A música mais tocada nas rádios, nas casas, nos carros e nos trios elétricos de Salvador é uma obra de arte chamada Rebolation (baianamente cantada como o “reboleichon”), que é de um grupo de pagode de nome bastante sugestivo - Parangolé.

E não é só na Bahia que o Rebolation do Parangolé está bombando, é em todo o Brasil. Essa pérola musical, obra-prima da novíssima poesia baiana já soma nada menos que 1,5 milhão de buscas no Google - Google que hoje é a palavra da salvação.

Para você ver que o rebolation não é pouca coisa, a imagem dessa dancinha no Youtube já foi acessada 586 mil vezes. Já a procura pela letra no Google é um pouco menor, apenas 81 mil pessoas quiseram conhecê-la.

[Se você acha que é mentira, entre no Google, escreva o termo “rebolation” e veja lá; vão aparecer números de acessos à música, à letra, ao dowload, aos vídeos, ao passa a passo da dança etc, veja lá.]

Alguém disse (parece que foi Nizan Guanaes, sempre ele), que a música baiana não é feita para a cabeça, mas sim para o quadril; não é para pensar, é para dançar. Ou seja, é para você esquecer a letra. E dançar, quebrar, requebrar. Rebolar.

Porque é de lei: todo ano tem que ter uma dança nova na Bahia. Já tivemos o fricote e o deboche, quando Luiz Caldas cantava “Olha a nega do cabelo duro, que não gosta de pentear, quando passa na Baixo do Tubo...”

Depois veio Sarajane cantando “Tá ficando apertadinha, meu amor, abra a rodinha, por favor, abra a rodinha”. Aí surgiu outro sucesso que dizia “Eu vou enfiar uva no céu da sua boca, e aí chupa toda, chupa toda, chupa toda”.

Outra obra-prima, um verdadeiro clássico da música e da dança na Bahia, dizia assim: “Desce mais, desce devagarinho, desce mais, desce mais um pouquinho... E vai ralando na boquinha da garrafa”.

Depois vieram a dança do tchan, o requebra, a volta no gueto, o arrocha, a dança da tartaruga, a dança da manivela, o vixe, mainha, o berimbau eletrizado, o levantou poeira, até chegar o “todo enfiado”, que é a dança do fio dental.

Voltando ao sucesso do Parangolé, ela só tem praticamente duas frases. Uma diz “O Rebolation é bom, bom, bom”, e repete várias vezes. A outra é “O Rebolation, tion, tion/ O Rebolation, tion, tion”, ou seja, “o reboleichon-chon, o reboleichon-chon”.

Enquanto o Ministério da Saúde só pede para o folião usar camisinha, a gripe do Rebolation derruba o Brasil. Matéria publicada neste domingo de carnaval (15/02), no Portal Terra, informa que até garçons de hotéis no Rio de Janeiro estão cantarolando esse hit do axé.

Acredite se quiser, o Rebolation fez a cabeça até do governador de São Paulo, o presidenciável José Serra, e da sua oponente, a ministra Dilma Rousseff. Embora não saibam dançar, eles já botaram o bloco na rua, e já não perdem nem aniversário de boneca, quanto mais carnaval.

Dilma e Serra estavam em camarotes vizinhos em Salvador. Ao passar pela frente dos camarotes, a cantora Ivete Sangalo brincou com os dois presidenciáveis. Do alto do seu trio, ela falou para Serra: “Tá com olhinhos de sono... Toma aí um energético”.

Mais adiante, parodiou uma música para dar uma bajuladinha na ministra. A música é Dalila e um dos versos diz “Vai buscar Dalila, vai buscar Dalila ligeiro”. Pois não é que Ivete cantou “Vai buscar Dilminha/ Vai buscar Dilminha ligeiro”?

Pois é, Serra e Dilma já começaram a rebolar atrás de voto. No São João, certamente estarão no rebolation junino em Caruaru e Campina Grande, comendo buchada de bode, montando em jegue e pegando criança pobre no colo.

Eles deram sorte por pegarem a onda do rebolation. Mas já imaginou se eles fossem candidatos no ano da “boquinha da garrafa”? E se o ano fosse o da dança da rodinha? Já pensou a dança do “todo enfiado”, hein? Como diz o outro, “quéta, minino”.

Em ano de eleição, Serra e Dilma deram as caras no carnaval da Bahia, terra de Jorge Amado e sua Teresa Batista, a rainha do rebolado. E até outubro o Brasil vai ser esse rebolation do Parangolé. O povo que dance. Ou que rebole. “O reboleichon-chon, o reboleichon-chon, o reboleichon-chon”.

Marcelo Torres, jornalista, cronista, baiano, mora em Brasília; email http://br.mc523.mail.yahoo.com/mc/compose?to=marcelocronista@gmail.com e blog http://marcelotorres.zip.net/; caso repasse, não altere o texto e mantenha os dados do autor.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

DEPOIS DA CHUVA


Gerana Damulakis


Acabei a leitura do livro de poemas de Georgio Rios, Depois da chuva (futurArte, 2009), o qual, seguramente, coloca o poeta com um lugar garantido nas letras baianas. As "orelhas" estão assinadas por Gustavo Rios, autor do ótimo O amor é uma coisa feia (7Letras, 2007), coletânea de contos que comentei aqui no Leitora. Gustavo acertadamente realça: "O cara que escreveu esse livro está em formação. Inacabado e sugestivo. Como toda boa literatura deve ser. Lírico, sutil, com domínio da tal técnica, que serve para se fazer entender: poeta, portanto. Para dar o recado pro mundo que dorme..."
É fato que há uma estrada pela frente para Georgio Rios percorrer, mas, sem dúvida, ele a percorrerá porque já está caminhando e carregando a bagagem necessária. Seus pés estão bem plantados no chão e, do sentido do dia a dia que se vai vivendo, ele retira a poesia do cotidiano. Pode um vento passar e o poeta sentir esse vento e fazê-lo poema, mas na totalidade é da reflexão do que ocorreu, do que está ocorrendo, que Georgio cria seus versos.
Um bom exemplo:


PONTE
--------Georgio Rios

Sobre a velha ponte
fiz passar meus medos.

Em fila,
os tangi para o outro lado.

Um breve aceno,
uma despedida.

Pela outra
rua,
meus novos medos
chegavam...

E eu não abri a porta...

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

UMA VIAGEM MUITO LONGA




Aramis Ribeiro Costa


--Era uma viagem de ônibus.
--Num banco, um rapaz de óculos escuros e camiseta ouvia um som muito alto. Uma música estridente num ritmo frenético. O rapaz parecia muito satisfeito, e parecia gostar muito daquela música, pois, mal ela acabava, tornava a ouvi-la. Aliás, cantarolava a música e acompanhava o ritmo com movimentos de corpo e tamborilar de dedos sobre a perna.
--Ao lado, um senhor viajava após ter perdido toda a noite no trabalho. Gostaria de relaxar um pouco, gostaria de fechar um pouco os olhos mesmo no sacudir do ônibus. Gostaria de um pouco de silêncio. E gostaria de mandar o rapaz parar a música, ou mesmo de atirar aquele pequeno e incomodativo aparelho de som pela janela do ônibus.
--Para o senhor cansado a viagem foi muito longa.


Ilustração: Salvador Dalí, Soft Watch at the Moment of First Explosion (1954)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O POEMA SEGUNDO OS POETAS



Gerana Damulakis

O metapoema me fascinou muito no passado, principalmente pelo uso de metáforas para discorrer sobre o fazer poético. Foi com a poesia de João Cabral de Melo Neto que comecei a atentar para os metapoemas dos outros autores.
Já escrevi aqui, em várias oportunidades (sou recorrente), sobre a lição encerrada no poema “Art Poétique”, de Paul Verlaine, com o deslumbrante verso (ele próprio bastante musical): “De La musique avant toute chose”, cuja tradução de Augusto de Campos é: “Antes de tudo, a música”. É um poema que ensina e é um poema que encanta. Sua última estrofe diz:


Que teu verso seja a aventura
Esparsa ao árdego ar da manhã
Que enchem de aroma o timo e a hortelã...
E todo o resto é literatura.

A razão de uma introdução que se iniciou com Cabral e foi para Verlaine era, na verdade, ficar centrada no fazer poético. Drummond tem um poema que enumera todos os temas com os quais não se deve fazer poesia e, ironicamente, o próprio poeta utilizou tais temas e fez poesia; não, ele fez grande poesia. Entre tantos poemas sobre poemas, sobre versos, há um outro, também de Carlos Drummond de Andrade, que não me deixa neste momento; trata-se de “Poesia”:

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Cheguei ao ponto. De Drummond para Leminski, ambos os poetas fizeram uma legião de seguidores, estas linhas vão para Ignacio Vázquez, do blog Lisarda Baila Cumbia (http://lisarda.blogspot.com/), a quem prometi uma postagem com poema de Paulo Leminski:

-----um bom poema
leva anos
-----cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
-----seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
-----sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
-----três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
-----uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

in La vie en close (Brasiliense, 1992).

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

EM CERTOS INSTANTES

GD

A revista mexicana, Plural, fundada por Octavio Paz, trouxe, em 1989, um poema intitulado “Instantes”, o qual teria sido escrito por Jorge Luis Borges no ano de sua morte. Segundo Alberto Manguel - ensaísta brilhante, nascido em Buenos Aires, mas atualmente cidadão canadense -, no capítulo “Falsificações”, de seu livro À mesa com o Chapeleiro Maluco – Ensaios sobre corvos e escrivaninhas (Companhia das Letras, 2009), o poema estava precedido por um “meloso comentário” de Mauricio Ciechanower, o qual apontava na obra um poder de síntese magistral. Pois bem, para Manguel, o poema é uma meditação idiota e sentimentaloide.
Três anos depois, ainda segundo o ensaísta supracitado, foi publicada uma nova tradução dos versos, no Queen’s Quarterly: “Moments”, traduzido por Alastair Reed, já experimentado na arte de traduzir o grande escritor argentino.
Em 1999, o crítico Francisco Peregil (sigo com Manguel) revelou ao jornal El País, de Madrid: “O verdadeiro autor do apócrifo é uma desconhecida poeta norte-americana chamada Nadine Stair, que o publicou em 1978, oito anos antes da morte de Borges em Genebra, aos 86 anos”.
O texto continuou a aparecer e ganhou o mundo. Prosa poética melosa? Talvez, assim se parece em certos instantes. Mas o primeiro verso é... um sonho.


INSTANTES
----------Nadine Stair


Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido; na verdade,
bem poucas pessoas levariam a sério.
Seria menos higiênico.
Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria
mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria
mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas
reais e menos imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveram sensata e produtivamente
cada minuto da sua vida; claro que tive momentos de alegria.
Mas, se pudesse voltar atrás, trataria de ter
somente bons momentos.
Porque, se não sabem, disso é feito a vida: só de momentos;
não perca o agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro,
uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um paraquedas.
Se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo
da primavera a continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres
e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.


Ilustração: I'd pick more daisies...(after Nadine Stair), 2006. Oil and Acrylic on Canvas 90cm x 120cm. Caroline Evans Paintings.www.carolineevanspaintings.com/.../1219347.jpg

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A BELEZA E A VERDADE



Gerana Damulakis

Nunca lhe apareci de branco (Rocco, 1998), de Judith Farr, foi um livro que me trouxe imenso prazer de leitura. Lembrei-me dele porque estava tentando recordar certos versos de Emily Dickinson, mais especificamente aqueles que travam uma conversa entre a beleza e a verdade. Estive debatendo sobre a beleza, eis o ponto de partida. A beleza, essa pseudo-virtude, efêmera e, primeiramente, relativa. Tão relativa quanto a verdade.
Voltando ao livro da poeta Judith Farr, trata-se de uma recriação de algumas das cartas que Emily Dickinson supostamente teria escrito a suas amigas íntimas, além de cartas recebidas de amigos e da família. Saímos da leitura com a sensação de termos conhecido um tanto de uma das maiores poetas americanas do século XIX.


Morri pela beleza e mal estava
Ao túmulo ajustado
Alguém veio habitar a sepultura ao lado.
(Defendera a verdade.)

Baixinho perguntou: “Por que morreste?”
“Pela beleza”, respondi.
“E eu pela verdade. São ambas uma só.
Somos irmãos”, me disse.

E assim como parentes que à noite se encontram
Entre os jazigos conversamos.
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E cobriu nossos nomes.

Tradução de Idelma Ribeiro de Faria para Poemas - Emily Dickinson (Editora Hucitec, 1991).

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

MINICONTO


ENIGMA

Aramis Ribeiro Costa

— Confesse! — ela exigiu. — Você me traiu!
— Não — ele respondeu, muito sério. — Eu nunca traí você. Mas, se tivesse traído, não diria.

Ilustração: Os Amantes, de René Magritte, 1928.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

A GAVETA DO POETA



Gerana Damulakis

Sidney Wanderley tem estrada, vários títulos publicados, de Quisera ter a beleza que (Escrituras, 1997), De Riacho do Meio a Viçosa de Alagoas (Escrituras, 1998), passando por Na pele do lado, Nesta calçada, Três vozes nordestinas, Entropia. No meio do caminho, pois foi no volume de poemas intitulado Desde Sempre (Escrituras, 2000), tive a honra de figurar nas “orelhas”, com um parágrafo, onde acentuei a autocrítica do poeta. Realmente ele, este poeta, é assim. No seu mais recente livro, Chuva e não (Editora Catavento, 2009),do qual dei notícia aqui no Leitora, ele escreveu: “Este livro reúne o que o autor suporta ler de quanto produziu em trinta e três anos de exercício literário”. Geralmente, o autor assim tão rigoroso com sua poesia, nos oferece sempre o melhor do melhor. Mas, curiosa como sou, fico imaginando quantos poemas, que poderiam nos encantar, estão todavia guardados. Daí, instigo Sidney, peço poemas, procuro saber o que anda escrevendo. E me dou bem. Ele me enviou por e-mail o poema abaixo.

Admiro bastante seus traços: a ironia fina como uma navalha, que passa por nossa pele durante a leitura e gera um arrepio, assim como a naturalidade, com a qual ele coloca em versos temas tão fortes, como a morte na cadência do agora e, outra vez, o humor que, ao fim e ao cabo, chega lá na já apontada ironia. Obrigada, Sidney, por abrir a gaveta.


O IMPREVIDENTE
-----------Sidney Wanderley

Na tarde em que morreu
não parecia inconformado.
Pensava que, como o outro,
raiado o terceiro dia,
quando muito, uma semana,
e ei-lo ressuscitado.
Mas o tempo foi passando
e logo se acostumou
à recente condição
de morto definitivo.
Lamentava tão somente
o esquecimento do que
duplamente lhe seria
de extrema serventia:
travesseiro e cobertor,
cobertor e travesseiro
– pois a cama ali é dura,
pois a cama ali é fria,
e no silêncio enervante
daquele quarto sombrio,
não há corpo que se atreva
a lhe fazer companhia.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

SALVADOR: PLENA DE VERÃO


Gerana Damulakis

Desde que li As Pequenas Memórias (Companhia das Letras, 2006), de José Saramago, que olho a beleza de outra maneira. Isso porque gravei de forma irremediável as palavras da avó do grande escritor português. Ela admirou a beleza da noite e disse uma frase que simplesmente ficou cravada: “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer”.


Passo olhando o mar, o azul pleno de verão, essa minha cidade exuberante de cores, e penso que realmente é uma pena ter que ir embora. Que pelo menos seja com a idade e a lucidez (sem lucidez, não adianta) da avó de Saramago. É pedir muito, mas assim somos todos nós: cheios de esperanças. Sei que é um tanto mórbido admirar a beleza da vida e pensar imediatamente no fim. Sempre fui desse jeito, só que a bela e verdadeira frase não foi dita por mim. Não tem importância, admiro quem soube dizê-la.

Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer." Assim mesmo. Eu estava lá.
José Saramago


Imagem de Salvador:
http://img253.imageshack.us/i/salvadordu7.jpg/

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

GLÁUCIA LEMOS NO TCA


Dia 7 próximo, domingo à tarde, Gláucia Lemos estará conversando com o público, sobre sua criação, seu livro mais recente, e respondendo curiosidades dos leitores, em participação do evento Conversa com o Escritor, no Vão das Letras, paralelo à feira de livros, a cargo da Câmara do Livro, um projeto da Fundação Pedro Calmon.
No foyer do TCA.
Entrada franca.
Gláucia Lemos é escritora baiana, autora de vários títulos. Sua produção inclui desde literatura infanto-juvenil, como a coleção "Marujo Verde", com quatro volumes publicados, até contos, ensaios, resenhas e romances, alguns dos quais premiados, tais como: O Riso da Raposa, pela Academia de Letras da Bahia, e A Metade da Maçã, pela Secretaria de Cultura de Recife, além do prêmio da União Brasileira de Escritores para As Chamas da Memória e o Prêmio de Literatura da UBE/Scortecci, para Bichos de Conchas. Sua obra publicada já ultrapassou três dezenas de títulos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

UM POEMA BEM AMADO


Gerana Damulakis

Sei que os poemas devem ser lidos em voz baixa, sussurrando, mas este "Amar", de Carlos Drummond de Andrade, pede uma leitura para ser ouvida. Vale reparar na beleza do verbo "malamar" que, de saída, contraria a gramática. Justamente pela transgressão, "malamar" em lugar de "mal amar", nessa aproximação tão evidente com a maneira como se fala, como se diz, é que há o ganho, o lucro se dá: a consequência estilística é notável. O "malamar" é um amar de "qualquer jeito", sem atenção, sem empenho no amor.

Na segunda estrofe, "amar" se avizinha da palavra "mar" e, seguindo, aparece o "sal". O sal da vida é o amor. O amor é o tempero da vida, dá-lhe gosto e ao mesmo tempo traz-lhe algo de acre, agro, ácido. Já na terceira estrofe está o deserto, inverso do mar, só que continuamos amando, mesmo tendo feito o resumo emocional, abarcado o mar e o deserto, sentido a brisa marinha e o chão de ferro: "este o nosso destino: amor sem conta".

AMAR
---------Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.


Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

in Claro Enigma

"NASCIDA PARA O PECADO"

Gerana Damulakis

Quando leio a poesia de Gilka Machado (1893-1980) costumo lembrar da poesia de Florbela Espanca (1894-1930), seja porque ambas levaram para seus versos a indignação com a condição da mulher aprisionada aos conceitos machistas da época, seja porque ambas carregaram seus poemas de sensualidade.

A própria Gilka se definia como uma mulher "nascida para o pecado" e, apesar de sua produção poética ter sido considerada, em alguns momentos, como imoral, conseguiu uma popularidade impressionante; de resto, evidência do quanto as mulheres se identificavam e tomavam para si o que aquela poesia clamava.

Enquadrada no simbolismo, ou, às vezes, num momento mais perto do modernismo - por conta de certos livros -, publicou mais de uma dezena de títulos e teve a obra reunida em edições nos anos 1978 e 1991.


O romancista baiano Jorge Amado foi o capitão de sua candidatura à Academia Brasileira de Letras, todavia a poeta assim não desejou. Pouco depois, a Academia conferiu-lhe o prêmio Machado de Assis.


FECUNDAÇÃO
-----------Gilka Machado

Teus olhos me olham
longamente,
profundamente,
imperiosamente...
De dentro deles teu amor me espia.

Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura.

Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.

Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.

Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.

in Sublimação, 1928

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

MORRE TOMÁS ELOY MARTÍNEZ

Gerana Damulakis

No dia 31 de janeiro de 2010 morreu o escritor argentino Tomás Eloy Martínez, nascido em 1934. Sua obra está traduzida para mais de trinta idiomas. Pode ser lembrado principalmente por livros como Santa Evita e O cantor de tango.

Sua característica maior foi combinar ficção e realidade. Recebeu importantes prêmios, tais como o internacional Alfaguara de Romance, em 2002, por O voo da rainha, e o prêmio Ortega y Gasset de Jornalismo, em 2009.

A homenagem que uma leitora de Martínez pode fazer é lembrar momentos prazerosos que sua literatura proporcionou. Lemos, a escritora Ângela Vilma e eu, A mão do amo (Companhia das Letras, 2008), romance diferente, fora da sua linha supracitada. Cheguei a escrever uma pequena resenha aqui no Leitora. Como eu vinha "dizendo", Ângela e eu lemos o romance e trocamos impressões sobre o personagem Carmona. Ela me disse que viajou com ele durante a narração de uma insólita viagem de trem. Para mim, inesquecível foi a imagem daquela casa que, após a morte da mãe de Carmona, ficou suja e cheia de gatos, emblemática da transformação na vida do personagem, então solitário, esquisito e totalmente perdido com a falta do poder exercido pela mãe.

Purgatório (Companhia das Letras, 2009) é um romance de amor, mas traz a marca de Martínez, que não deixava a crítica política. Um casal foi separado no auge da ditadura argentina. O pai de Emilia, pessoa importante junto aos grandes das Forças Armadas, tratou de fazer sumir o genro. Emilia jamais acreditou que Simón morreu e começou a seguir pistas falsas, indo morar no Rio, depois em Caracas e, por fim, em Nova Jersey, quando o reencontrou. Só que, trinta anos se passaram, ela ficou velha e Simón permaneceu com a mesma aparência como na época em que desapareceu. Eles se reencontraram com muito amor. Emilia podia, enfim, viver tudo o que guardou para ele. O desfecho? Não conto, mas asseguro que vale a pena, não se trata de um Dorian Gray, a razão do não envelhecimento de Simón é outra.

Deixo um pequeno trecho retirado de uma daquelas páginas com pontinhas dobradas do meu volume de Purgatório.

Aquilo que não chega a ser nunca sabe que poderia ter sido. Os romances são escritos para isso: para compensar no mundo real a ausência perpétua daquilo que nunca existiu.



Foto by Gonzalo Martinez

VIAGENS COM MURAKAMI

Gerana Damulakis

Enfatizo meu gosto pela literatura japonesa em todas as oportunidades. Hoje, senti falta de mais uma obra da ficção singular de Haruki Murakami ao constatar que em Portugal já há mais títulos traduzidos do que aqui e acaba de ser lançado mais um volume; nós temos apenas seis títulos. Qualquer um deles proporciona uma leitura fascinante, porque os romances de Haruki são viagens extraordinárias, no sentido literal.
Pelo fio da falta, tomo outra vez, não seu último romance - Após o anoitecer (Alfaguara/Objetiva, 2009)-, mas o penúltimo romance de Murakami: Kafka à beira-mar (Alfaguara/Objetiva, 2008) e releio as páginas com as pontinhas dobradas, sinal de importância para mim, em busca do que me suscitaram.

A felicidade é invariável. Mas a infelicidade apresenta inúmeras facetas, se modifica de pessoa para pessoa. Exatamente como disse Tolstói. A felicidade é uma alegoria, a infelicidade é uma história.

Sou como um corvo desgarrado do bando. Essa é a razão por que adotei o nome Kafka. Kafka significa corvo em tcheco.