domingo, 9 de dezembro de 2007

ENCANTAÇÃO


Gerana Damulakis



Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui

Manuel Bandeira



Diz a lenda que a alcachofra guarda o mistério, todos os segredos do amor pleno, do romance realizado.Com sua aparência de coisa que existe desde a memória dos tempos, exige uma paciência romântica para ser degustada. É preciso despetalá-la até chegar ao coração que, ainda segundo a lenda, além de ser a parte mais saborosa, é a mais nutritiva e a que guarda, afinal, os fluídos afrodisíacos. Um ritual, portanto. Há de ser cumprido o percurso. O percurso é tudo.
O encantamento e a carne são duas palavras que se situam em cantos opostos. O encantamento está mais ligado ao lirismo, seja pela natureza, pela alma, pelo próprio amor, de preferência platônico, distante, com muita dor e sofrimento e saudade e impossibilidade.
A carne, dito assim, lembra um bife suculento; seguramente, se você não é vegetariano, pensa em algo comestível. Há, é certo, os que são movidos à libido e, então, a carne é a palavra para a apetitosa exibição de algum corpo perfeito, uma Vênus saindo da concha ainda com gotas salgadas escorregando por sua pele. De qualquer forma, encantamento e carne têm sonoridades distintas.
E é dessa conceituação que nasce a história de um homem. Um homem plenamente realizado nos setores que criamos para gerar bastante angústia e ansiedade na vida quando não perfeitamente preenchidos. Ele é um sósia apolíneo, com um perfil helênico, maçãs do rosto salientes como as dos corsos e dos sardos e um cérebro privilegiado: ali está tudo desde Zola e Sartre, de Valéry e Foucault, de Proust a Camus. Entende Einstein e sua relatividade, afora outras físicas.
Quanto às mulheres, várias passaram por sua vida, jamais deixou de conseguir aquela que despertou um mínimo de interesse. Até conhecer Maria. Foi daí que surgiu a tal expressão “encantamento pela carne”, encantação.
Ninguém entendia a razão da paixão despertada num homem como ele, primeiramente porque ela, Maria, não é uma mulher que tenha atrativos: tão normal, insípida, apagada, alguém que quase não existe.
Convencido do que queria, ele partiu para conquistar a mulher feita de carne tão especial. No início, chamava-a ao telefone apenas para desejar bom dia, carregando na voz grossa e rouca, daquelas irresistíveis. No final da tarde, mandava-lhe flores; das flores foi um passo para os bombons, chegava um telegrama convidando-a para jantar. Vinha a parte mais difícil, ele ficava horas e horas junto ao aparelho esperando que ela respondesse aos apelos e, nada.
Os amigos tentaram dissuadir o belo homem. Aliás, até os menos próximos se atreveram a distribuir conselhos, e as outras mulheres sequer podiam aceitar o fato de que alguém recebendo orquídeas arrematadas por laços de cetim colorido e caixas de bombons de chocolate, em formato de coração, recheados com licor, e telefonemas com música de Mahler ao fundo, e telegramas urgentes, sim, ninguém podia aceitar o fato da mulher, motivo de tudo isso, ser indiferente a tanta sedução.
Depois das flores e dos doces, seria a vez dos presentes: jóias para as loiras burras, livros raros para as intelectuais chatas — seguindo, claro está, as regras machistas que conceituam a mulher —, mas seria grosseiro enviar-lhe presentes nessa fase, afinal, ela ainda não os merecia. Diante da situação, ele resolveu partir para o diálogo e foi ter com Maria.
Antes do grande dia da confissão, ele prestou uma espécie de justificativa a todos que seguiram o curso dessa paixão unilateral, essa verdadeira “volúpia do inferno”, como disse Nietzsche. A explicação estava na carne de Maria. O homem deixou claro que ela tem uma temperatura diferente, ela é mais quente. Risadas por toda parte. Seriedade. Ela é rosa, mais sangüínea e, por isso, mais quente, enfim, a pele, a carne, é mais macia, daí a encantação nascida desde que com ela dançara numa festa. Confiantes na explanação, restou ao grupo esperar o que Maria diria quando escutasse aquelas baboseiras.
Deu-se o seguinte: ela adiantou que não entendia a perseguição de um homem tão belo e bem sucedido porque tinha uma avaliação correta de si mesma, sabia o quanto é monótona, e sabia mais, sabia sobre ele, um homem dado a grandes aventuras, mulheres sofisticadas ou, pelo menos, inteligentes.
Chegou o momento, ele foi totalmente franco, usou a palavra encantação, usou a palavra carne, juntou tudo, e ela ficou lívida. Maria nunca esperou ouvir algo tão bonito. Tremeu de choque, de emoção. Finalmente alguém reparou na única coisa diferente que ela possuía, somente ela. Acreditou na paixão, ele havia percebido, apenas ele. Permitiu-se despetalar lentamente.

Seduz pelo que é dentro ou será,
quando se abra.
João Cabral de Melo Neto







Este conto está na Revista iararana, n° 1 — outubro, 1998, Salvador - Bahia.
A foto da alcachofra é de Arqstein, retirada do Flickr.