segunda-feira, 19 de novembro de 2007

CRÔNICA E POESIA: A TÊNUE FRONTEIRA



Gerana Damulakis

A crônica é um gênero riquíssimo, portador, antes de mais nada, da liberdade de expressão. Livre das amarras que a prosa ou a própria poesia acabam por ter que enfrentar, a crônica pode fazer fronteira com o conto, com a poesia, com o texto filosófico e, com tal eterna desculpa, o gênero, que se desenvolveu no Brasil, guarda uma fortuna de variantes, todas elas ligadas diretamente a seus escritores.
A história da nossa crônica revela que, apesar de originárias dos jornais e das revistas, seus autores viram desde muito cedo a necessidade de eternizar aqueles textos em livro. Assim, Ao Correr da Pena, de José de Alencar, é um volume que não apenas serve para contar tal história da crônica, mas e, principalmente, para comprovar que, mesmo sendo um texto datado, a crônica sobrevive décadas depois como crônica dos costumes. Exemplo é a intensa curiosidade pelas crônicas de Machado de Assis, hoje em edições várias, trazendo estudos cada hora mais aprofundados, revelando o lado mais solto do escritor.
Este século viu um desfile de cronistas, quase sempre escritores de primeira água em outros gêneros. Neste momento não se pode esquecer das exceções, ou seja, dos cronistas 100% cronistas, como Rubem Braga e o nosso Adroaldo Ribeiro Costa, ambos exercendo a crônica por algumas dezenas de anos como único gênero praticado. Até a atualidade, no entanto, o que se constata é o cronista que escreve primeiramente a sua contística, a exemplo de Hélio Pólvora, ou os seus romances como Carlos Heitor Cony e João Ubaldo Ribeiro — inclusive Luís Fernando Veríssimo, notadamente cronista, tem publicados pelo menos dois romances.
Houve época em que encontramos o poeta-cronista, como foram Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, enquanto na Bahia, exercitavam a crônica os poetas Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares, só para citar dois. No sul do estado, Sosígenes Costa muitas vezes escrevia primeiramente o texto da crônica que viria a ser um poema logo a seguir, como bem se pode lembrar o que ocorreu com "Búfalo de fogo", poema do qual Jorge Amado fez constar algumas estrofes no livro São Jorge dos Ilhéus. Aproveitando para registrar a crônica que deu origem a tal poema antológico, há de caber registro também para o fato de que ela foi publicada na Revista Única, nº 15 do ano 1, de Salvador, Bahia, em 1º de maio de 1930, intitulada "Búfalo de Fábula", enquanto o poema data de 1928. É de ser assinalado que tanto a crônica quanto o poema são de índole descritiva: há a animalização metafórica da paisagem, o humor e o lirismo associados; há, inclusive, a característica tão sosigenesiana no gosto pela rima rara, inusitada e, sabemos, proposital. Todos os elementos do poeta Sosígenes Costa marcam presença na crônica poética, ainda assim, crônica.

Búfalo de Fábula

A Jorge Amado, ilheense que aprecia búfalo

Anoiteceu. Roxa mantilha suspende o céu do seu zimbório. Que noite azul! Que maravilha! Sinto-me, entanto, merencório. Dentro da noite Ilhéus rebrilha qual grande búfalo fosfório.
Estão as casas figurando umas corcovas de camelas. Longe, o farol, de quando em quando, luze no plano das estrelas.
Estou no cimo deste monte, a cavaleiro da cidade. Dentro da curva do horizonte, Ilhéus recorda, ao pé do monte, um grande búfalo bifronte com olhos rútilos de jade.
Anoiteceu. Tudo rebrilha. Sinto-me, entanto, merencório. A noite pôs sobre a mantilha negro adereço de avelório. Como as formosas de Sevilha, a noite vai para o desposório.
Não quis a lua, para o noivado da noite azul, brilhar qual jóia; pelo infinito constelado rodar a rútila tipóia.
Não quis brilhar para o noivado, a lua, Helena astral de Tróia. Não quis a lua, o rosto amado, boiar nos céus em que ela boia com um semblante decepado de uma princesa de Savóia. Dentro da noite, iluminado, despede Ilhéus clarões de jóia, qual grande búfalo encantado, com cem pupilas de jibóia.
Petracas beijam doces Lauras junto de pélago espalhante. As flores languidas restauras, ó vento amigo e sibilante.
Crio visões de lendas mauras:
Dentro da noite sussurrante pela canção das bandas auras, Ilhéus recorda neste instante, como talvez nas lendas mauras, um lindo búfalo gigante que, perseguido por centauras, por ter olhos de brilhante e ser mais rápido que as auras, veio agachar-se palpitante, ao pé do morro, entre as centauras.
Anoiteceu. Pede a mantilha o céu a noite, em doce rogo. O bravo pélago dedilha cantos mongólicos de Togo. Protervos ventos em mantilha, como cem eras em regougo, fazem da noite na Bastilha revoluções de demagogo. Ventos, ladrões de uma quadrilha, depois do crime, vão para o jogo. Dentro da noite, Ilhéus rebrilha qual grande búfalo de fogo.


Longe de falar sobre a "versiprosa", o que é preferivelmente necessário constatar é o "deslimite" da crônica, mas precisamente quando faz fronteira com a poesia, sem se apresentar como tal. Mantendo a narrativa, a tênue fronteira fica por conta da imagem poética, do lirismo, da nostalgia tão propensa a se fazer presente no texto, haja vista o exemplo supracitado. Mas, na maioria das vezes, o escritor não transformou sua crônica em poema colocando em versos o que antes se apresentava em linha contínua; deixou a poesia lá, pertencendo ao texto chamado crônica.
Quantas vezes o cronista Adroaldo Ribeiro Costa deu vazão ao seu lado poético e expôs seus poemas na espaço do jornal A TARDE? E é aí que se quer chegar: quantas vezes mais se pode encontrar esta tênue fronteira entre a crônica e a poesia nos textos de Adroaldo, embora as tais linhas contínuas? Tudo isso pode ser atestado na reunião de 200 das suas crônicas selecionadas pelo escritor Aramis Ribeiro Costa para o livro Páginas Escolhidas, da Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia. Aí, em textos que encerram um memorialismo nostálgico, a poesia não poderia ficar de fora por prejuízo da emoção e lá está ela, plangente, pungente, em pleno texto da crônica. No exemplo de "A Mesa Vazia", de 27/ 03/ 1975, tal memorialismo, lembrando, no caso, as comemorações da Sexta-feira da Paixão, quando era um dia singular na casa do cronista, deixa o texto prenhe de poesia: "Fiquei sozinho, sem nada que me alimente o corpo e o espírito, senão as lembranças do passado morto". É expressivo que, ao contrário dos autores que pretendem fugir de fazer poesia na crônica, Adroaldo deixe claro que esta é uma crônica evocativa da fase poética de sua vida; poética porque encantada e, assim, finaliza:

O relógio baterá amanhã as doze pancadas do meio dia, mas ninguém estará sentado à mesa. À sua volta, apenas saudades, e saudades não comem iguarias servidas em pratos: alimentam-se de corações que ficaram sozinhos...

Em Adroaldo Ribeiro Costa, os exemplos de crônicas que fazem fronteira com a poesia são muitos, apesar de ser necessário lembrar que ele, cronista plural, fez sua crônica chegar perto também do conto e tantas vezes exercitou a própria poesia com veros e rimas. Aqui o objetivo é colher a poesia no texto da crônica enquanto narrativa. Belamente poética é "Cantigas da Noite", de 22/ 04/ 1978, que já inicia com a sugestão de um crescendo poético: "A noite vai crescendo lá fora. E há uma noite a crescer dentro de mim", para terminar com duas frases mais belas ainda, quando "nessa noite, em minha homenagem, todas as noites silenciarão. Eu serei o próprio silêncio".
Rubem Braga é outro que, desligado de qualquer compromisso com uma obra de outro gênero, derramou um lirismo, do qual se colhe frases que se fazem versos. No entanto, seus poemas, publicados sob título Livro de Versos, na edição da Record, de 1993, mas que teve uma pequena edição em 1980, a pedido de artistas e poetas do Recife, reunindo apenas 14 poemas, os quais foram logo avisados que seria o primeiro e último livro de versos e sem cuidados do autor, são poesia de pequena importância. A poesia de Rubem braga está nas suas crônicas, nos seus mais de dez livros que reúnem quase mil crônicas das 15 mil que escreveu para jornais, revistas e rádio. Não há como não reconhecer poesia em "O pavão":

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores: é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. [...] Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! Minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Já com um escritor reconhecidamente poeta pode ocorrer um fato curioso: no primeiro livro de prosa de Vinicius de Moraes, Para viver um grande amor, o autor coloca seu ponto de vista quanto ao lirismo da crônica, o qual tem uma relação mais próxima com o subjetivismo do cronista, ao contrário do que acontece com o contista ou o romancista. Na sua definição da crônica, sem esquecer que é uma definição de um poeta, ele mostra que a narrativa curta em cima dos fatos miúdos do cotidiano se vincula diretamente ao jornalismo. Parece um esforço em traçar limites para os espaços: a poesia no seu espaço, a crônica também. E no papel, como se deu a crônica de Vinicius de Moraes? De saída, o livro supracitado, é composto de crônicas e poemas. Por que estão juntas? A maioria das crônicas do poeta contam realmente um episódio sem notarmos qualquer poesia inserida, mas não seria Vinicius, poeta que foi dos mais poetas apesar do infeliz epíteto, que passaria incólume pelo olhar que busca poesia na sua prosa. A crônica "Poema de Aniversário" é pura poesia em linha contínua, embora o autor teime e finalize o texto, ele próprio plenamente poético, com "versos finais de uma canção que te dediquei:

'...dorme, que assim
dormirás um dia
na minha poesia
de um sono sem fim...'"

Enfim, a crônica alicia o escritor a miradas mais encantadas diante da vida, a reflexões poéticas sem sequer ter consciência disto e, menos ainda, sem ter consciência de que é neste deslize para a poesia que ele vai prendendo o leitor apressado: é pela gota de lirismo ao comentar o sempre terrível tempo em que vivemos, que a crônica ganha lugar cativo na manhã do cidadão, ao lado do café, talvez da brisa característica entrando pela janela, marcando a longa jornada do dia que começa.

A LITERATURA BAIANA CONTEMPORÂNEA



Gerana Damulakis



Embora se saiba que a literatura brasileira nasceu na Bahia com Gregório de Matos e os outros poetas da época, e se saiba igualmente de nomes famosos como Castro Alves, Adonias Filho, Jorge Amado, a verdade é que hoje não se tem conhecimento nos outros estados do que se vem fazendo de literatura da mais alta qualidade na Bahia.
Principalmente nos últimos anos tem havido uma intensa atividade literária com vasta produção de livros, inclusive de novos autores que, infelizmente, por circunstâncias de distribuição, não chegam às livrarias do país. Aqui, se torna necessário caracterizar a literatura baiana, porque há a literatura feita por escritores nascidos na Bahia, mas não residentes no estado; há alguns poucos que produzem na terra sem serem baianos natos; e há, finalmente, os que nasceram, residem e produzem em seu próprio solo. Tais divisões separam da realidade literária nacional nomes como Antônio Torres, João Ubaldo Ribeiro, assim como uma Sonia Coutinho e uma Helena Parente Cunha, moradores do Rio de Janeiro, de seus pares e conterrâneos que não deixaram ou que deixaram e logo voltaram para Salvador.
Ventos promissores vão, no entanto, engrandecendo a história da literatura baiana feita pelos autores que permaneceram na terra. Na peneirada do joio e do trigo, assoma o trigo na poesia reconhecida de Ruy Espinheira Filho, autor da Poesia Reunida e Inéditos (Record, 1998); nos versos densos de Florisvaldo Matos, cantando em clave épico-lírica a invasão holandesa à baía de Todos os Santos reunidos no volume Mares Anoitecidos (Imago Ed./ FCBa, 2000); na voz forte e igualmente telúrica de Myriam Fraga em Sesmaria (Ed. Macunaíma, 2000); e na poesia de Maria da Conceição Paranhos, que chega a intitular sua coletânea como Minha Terra (Edições Cidade da Bahia, 2001) para dialogar com a "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, sendo que sua terra fica restrita ao espaço baiano. Encontra-se a marca do amor à terra, enfim, em poetas como Ildásio Tavares, Fernando da Rocha Peres, Luís Antônio Cajazeira Ramos, porque a força telúrica advinda do tema parece ser tão suficiente como a força de outros grandes temas.
O mesmo ocorre na prosa. Aliás, o conto figura ao lado da poesia como os gêneros mais afeitos aos baianos na atualidade. O talento da contística de um mestre como Hélio Pólvora, evidente em O Rei dos Surubins (Imago Ed./ FCBa, 2000), centra sua ação dramática no espaço baiano e sobre ele está colocada toda a visão reflexiva, sem desvincular, portanto, o homem das terras do sul da Bahia e da saga do cacau. A ação dramática volta-se para a capital do estado nos contos de Aramis Ribeiro Costa, tanto em seu volume A Assinatura Perdida (Iluminuras, 1996), como também em seu outro título, O Mar Que a Noite Esconde (Iluminuras, 1999). É através da visão do homem baiano e suas contingências que emerge o homem universal também nos contos de Vila Nova da Rainha Doida (Record, 1998), de Guido Guerra, na prosa límpida de Gláucia Lemos, na narrativa grapiúna premiadíssima de Cyro de Mattos, ou no conto fantástico de João Carlos Teixeira Gomes; e, ainda, na ficção de Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro.
Visto que este espaço é claramente identificado como o espaço baiano, distinguindo-o do resto do Nordeste, região a qual a Bahia pertence, a causa cultural marca presença na vivência das tradições, ora grapiúnas, próprias do sul da Bahia, ora do sertão, ora da capital. A referência assim tão explícita ao estado e ao homem enquanto personagem tão telúrico e tão enredado em ações que se acham alicerçadas nos costumes, nas lendas e mesmo na oralidade da Bahia, vem precisar as paixões, as angústias, os sentimentos que elevam o personagem à categoria de ser universal.

CIRCUNSTÂNCIA

Gláucia Lemos
Descubro uma formiga saúva caminhando no peitoril da janela. Uma formiga vermelha, cabeçuda, dois ferrões à frente da cabeça. Sinto imensa alegria. Essas formigas amam roseiras. Uma dessas na minha janela, fora de qualquer dúvida, sinaliza a existência de roseiral por perto. Detenho-me, dispensando-lhe toda a minha atenção. Maravilhado, vejo que não há somente uma, mas um pelotão deslocando-se em fila indiana pela beirada do mármore que liga os peitoris do sexto pavimento. Rapidamente resolvo ir com elas. Estou convencido de que em algum lugar chegaremos a roseiras.
Incorporo-me ao pelotão. Começo a caminhar pelo relevo da parede, com minhas pernas finas e compridas e curvas, de formiga. Tenho que caminhar lentamente para acompanhá-las. No entanto, mesmo que pretendesse locomover-me depressa no meu natural passo de humano, não o conseguiria. A princípio, custo a entender como minhas pernas estão frágeis e meus passos milimétricos. Deverei fazer com centenas de passos o percurso que venceria em segundos, em não mais que três passos das minhas pernas de homem. Agora, creio que consumirei algumas horas para andar da minha janela até a mais próxima, por cima do peitoril. Não há alternativa, já que decidi segui-las.
O contingente é numeroso e todas parecem pôr as patas exatamente onde as pôs a que vai à sua frente. Mesmo não entendendo porque, procuro comportar-me como as demais.
Há algum tempo que caminho e estou notando que minha janela parece muito distante agora, embora a do vizinho também me pareça longínqua. Não é fácil ser formiga – penso. Ou não é fácil ser formiga para quem sempre foi humano. Contudo, prossigo na jornada. A meio caminho, as companheiras que me precedem param em torno de um animal muito maior que nós. Tenho que imitá-las e me ponho a examinar também o objeto da curiosidade e do interesse geral. Caminho em volta do monstro e acabo descobrindo que se trata de uma barata. Mísera barata que está morta, ou quase. Em decúbito dorsal, uma das patas ainda se movimenta. Parece acenar um adeus. Nunca entendi porque as baratas mantém um péssimo costume, de não morrer de uma vez. Demoram-se com uma perninha tremendo, tremendo, denunciando que ainda estão vivas, arriscando-se a um pisotão derradeiro. Penso em fazê-lo, mais uma vez além das muitas em que já o fiz. Mas agora sou formiga e meu pisotão é muito mais leve que o da própria barata.
Após breves momentos, tenho a impressão de que um conselho decisório achou por bem carregarmos o monstro moribundo. Cada uma das formigas agarra-se a um pedacinho para que todas consigamos transportá-la, ou quase todas. Parece haver uma disputa por uma pontinha a que se possam agarrar. Não sei se as que não colaborarem nessa tarefa deixarão de merecer banquetear-se, já que não trabalharam. Quanto a mim, não estou interessado em comer barata, mas já que participo do grupo, dou também a minha bicadinha em uma ponta da asa e cá estamos indo como quem transporta um banquete. Para mim, suficientemente desinteressante, já que não sou formiga nativa, sim uma circunstância de formiga, por conveniência.
Não sei quanto tempo gastamos para vencer da janela do meu quarto até a do quarto mais próximo, e após, à do quarto seguinte e assim por diante, rumo ao final do parapeito. Finalmente vamos ter que descer por um tubo plástico que me parece muito calibrado, mas logo percebo tratar-se da rede hidráulica. Liso, como se fosse encerado, nele os meus pés deslizam, também os das outras formigas. E assim o peso da barata nos obriga a precipitar até o chão. Caímos todas agarradas à nossa carga qual um paraquedas coletivo. Algumas soltam-se e prosseguem. Terão recebido dispensa aquelas algumas? Ou poderão estar sem fome ou fazendo dieta. Aproveito e desisto também, por nenhum dos dois motivos, pelos meus especiais, absoluto desinteresse em degustar aquele petisco. Novamente em fila indiana, as desistentes prosseguem, e eu, naturalmente, as sigo.
Estou ficando fatigado da jornada, só a certeza de que encontraremos algum roseiral não me permite retroceder. Andamos longamente por chão acidentado. Suponho que seja a área localizada logo abaixo da janela do meu quarto. Vista de cima, do sexto pavimento, não parecia cheia de pedras, de saliências e reentrâncias tal como a conheço agora. Logo vejo-me diante de enorme palma de bainhas serrilhadas. Eu poderia caminhar por cima dela. Limito-me, porém, a examiná-la enquanto a minha formação de botânico leva-me a reconhecer uma prosaica touceira de capim. Estou surpreso. Como mera gramínea terá crescido a tais proporções? Logo, porém, me elucido: reduzido à condição de formiga como me encontro, um pé de grama terá que me parecer agigantado. Então compreendo também que as enormes pedras com que me tenho defrontado, não passam de pedregulhos que pude avistar inúmeras vezes lá de cima, quando na janela do meu quarto. Preciso dar muitos passos para vencer o pequeno percurso em torno do capim e sinto que está sendo muito cansativo ser formiga, o que me leva a recear não atingir jamais o hipotético jardim de rosas.
Atraso um pouco para falar à companheira que me sucede na fila.
- Ainda estamos muito distante, suponho.
Ela não me entende. Sacode suas antenas na minha direção como se me examinasse e prossegue ligeira. Fico meio decepcionado, logo, porém, compreendo que não poderia esperar de uma formiga o entendimento à minha linguagem. No ar, o que percebo, é algo semelhante a um cicio que deve ser a maneira de comunicação entre elas.
Após a caminhada de toda a tarde, chegamos finalmente, ao muro alto, agora altíssimo que me parece tocar as nuvens. Sei que se trata daquele dentro de cuja área se encontra o prédio onde estou morando. Com algum tédio recordo que em circunstâncias normais não gasto mais que dois minutos, talvez menos, entre o hall e o portão principal.
A tarde quase se foi, pois noto que escurece. Caminhamos ao longo do muro , ao encontro do portão de ferro, no qual passamos tranqüilamente por entre as grades, alcançando o passeio.
Aqui fora são muitos os pés humanos pisando quase sobre as nossas cabeças e os nossos corpos. Minhas companheiras não se assustam, parecem acostumadas, eu, porém, vejo a morte descendo sobre o meu corpo, na forma de um solado de couro – ou será de borracha? Encolho-me, com o maior susto da minha recente vida de inseto. Como um filho dos deuses, consigo ficar no pequenino espaço entre a sola e o salto do sapato. – Deus meu, como me tornei insignificante! – Tem suas vantagens a minha atual minúscula estatura. Às vezes, divirto-me com a situação. Dessa vez, porém, o coração bate acelerado e respiro fundo, antes mesmo de poder considerar se formiga consegue respirar fundo. Passado o susto, sinto vontade de rir. Não crendo que formigas riam, consigo conter-me.
As outras companheiras de jornada seguem sem qualquer receio, são felizes vivendo perigosamente, pois que é a única vida que conhecem. Quanto a mim, procuro encostar-me tanto quanto possível, ao canto da parede, bem rente ao sujo rodapé dos prédios, e vou andando, sabe Deus até que lugar.
Agora sou assaltado por importante dilema: se as sigo nesse passo ínfimo, de formiga, não sei quando chegaremos ao hipotético roseiral para meu retorno às pesquisas que precisei interromper desde que transferiram a minha residência. Se desisto de segui-las e reassumo a minha natural condição humana, não saberei jamais onde encontrar as roseiras. Estou muito preocupado com isso, pois ainda não me decidi.
O que ainda não entendo é porque me trouxeram a morar naquela casa. Será tão estranho querer, como eu quero, compreender a alma das rosas, convencido como estou de que elas a possuem, e pretender, como eu pretendo, ensiná-las a falar ?
Gláucia Lemos é ficcionista, com vários títulos premiados, inclusive com literatura infanto-juvenil. Este conto pertence ao volume No tempo dos frutos.














A ANTA DE MAINARDI

Goulart Gomes
A escritora Zélia Gattai publicou, em 1979, um livro intitulado “Anarquistas Graças a Deus”. Nesse livro, ela relata os primeiros momentos da imigração italiana para o Brasil, incluindo sua própria família. Uma das maiores contribuições dos italianos para a “Merica” foi a disseminação dos ideais libertários, que influenciaram profundamente o surgimento dos nossos movimentos trabalhistas e sindicais, no final do século XIX. O título do livro, propositalmente, traz uma contradição: o anarquista é, por excelência, um agnóstico, que busca a causa e solução para os problemas sociais na terra, e não no além. Essa dicotomia me remete a outra personagem: o articulista Diogo Mainardi, um anarquista neo-liberal. Mainardi parece ter herdado, simultaneamente, o ímpeto anarquista dos seus antepassados italianos e o afã capitalista norte-americano. O propósito dessa coluna é literário, e não político. Por isso, não pretendemos entrar em discussões ideológicas sobre o seu mais recente livro publicado: “Lula é minha anta”. Nunca na história deste país um presidente foi tão exposto ao ridículo. Mas nenhum dos seus detratores tem a coragem e o talento literário de Mainardi. Ele não é uma “versão barata de Paulo Francis”. Mainardi tem um estilo próprio, que alia uma estrutura de texto que nos relembra Nelson Rodrigues, de orações curtas e frases dilacerantes, com a verve irreverente do velho Francis (falecido há exatos dez anos) e uma cultura de fazer inveja. Nas crônicas que compõem o livro, anteriormente publicadas na revista Veja, ele atinge o seu objetivo de se colocar em evidência ao escolher, estratégica e ousadamente, um alvo de grande visibilidade: o homem que dirige o país, sobre o qual estão milhões de olhos postados, diariamente. O melhor exemplo disso é a crônica “Minha vida de coiote” na qual ele compara Lula ao Papa-Léguas e ele próprio ao Coiote do desenho animado de Chuck Jones: “Lula é o Papa-Léguas. Eu sou o Coiote. Se o Coiote é Lamarck, o Papa-Léguas é Darwin. Se o Coiote é o humanista Settembrini, o Papa-Léguas é o jesuíta Naphta. Se o Coiote é Bouvard e Pécuchet, o Papa-Léguas é a tempestade que devasta sua lavoura”. Setembrinni e Naphta são personagens de Thomas Mann, em “A Montanha Mágica”; Bouvard e Pécuchet são personagens de Gustave Flaubert, no romance de mesmo nome. Mainardi é um paparazzi das letras. Polêmico, amado, odiado, processado, perseguido e aplaudido, ele vem conseguindo, do seu jeito e pagando um alto preço, inserir seu nome na galeria dos maiores cronistas políticos da imprensa escrita que o Brasil já teve. Cínico e corajoso, graças a Deus.


Goulart Gomes é ensaísta, poeta, criador da linguagem poética POETRIX. Autor, entre outros, de Minimal (Copygraf Editora, 2007)