
Leio e leio e leio romances e contos, mas a poesia não cala dentro de mim. A poesia dos outros, claro está. Nem de longe um ataque de vaidade, não combina, deixo a vaidade para certas pessoas que acabarão explodindo um dia desses. É sobre poesia que desejo escrever.
Maria Muadiê colocou outro dia algumas linhas de Adélia Prado no seu blog. Tive que retornar para a poesia de Adélia, precisei entrar de novo naquele seu mundo poético tão original, tão sagrado. A fé que permeia aquela poesia, quando mais não fosse pelo fato de fazê-la mais bela e encantada, seria uma nota para distinguir a poeta. Fé, amor, sexo, miudezas da vida: parece que Adélia torna poesia cada segundo vivido. De todas as facetas, escolhi o momento sublime que segue.
Casamento
Adélia Prado
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Quero colher um poema fervente de religiosidade, outro atravessa a opção e mais outro. É tão apaixonante pegar a Poesia Reunida (Siciliano, 1991) de Adélia Prado e mergulhar completamente no universo da mineira que não resisto e colo aqui o diálogo com Drummond, responsável pela descoberta da poeta:
Com licença poética
Adélia Prado
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.