sábado, 17 de outubro de 2009

A POESIA ANTES DE TUDO


Gerana Damulakis


De la musique avant toute chose — é o verso clássico de Paul Verlaine (Metz, 1844 — Paris, 1896), que conquista o lugar de chef d’école quando publica na Paris Moderne, em 1874, o poema “Art Poétique”. Escrito oito anos antes, Verlaine lança o credo de uma estética no momento em que os jovens estavam ávidos por uma, digamos, receita para exprimir o movimento simbolista: o que não quer dizer que Verlaine tenha se comportado como filósofo ou teórico-mor de uma revolução poética.

ARTE POÉTICA
-------------------A Charles Morice

Antes de tudo, a Música. Preza
Portanto o Ímpar. Só cabe usar
O que é mais vago e solúvel no ar,
Sem nada em si que pousa ou que pesa.

Pesar as palavras será preciso,
Mas com algum desdém pela pinça:
Nada melhor do que a canção cinza
Onde o Indeciso se une ao Preciso.

Uns belos olhos atrás do véu,
o lusco-fusco no meio-dia,
a turba azul de estrelas que estria
O outono agônico pelo céu!

Pois a nuance é que leva a palma,
Nada de Cor, somente a nuance!
Nuance, só, que nos afiance
O sonho ao sonho e a flauta na alma!

Foge do Chiste, a Farpa mesquinha,
Frase de espírito, Riso alvar,
Que o olho do Azul faz lacrimejar,
Alho plebeu de baixa cozinha!

A eloqüência? Torce-lhe o pescoço!
E convêm empregar de uma vez
A rima com certa sensatez
Ou vamos todos parar no fosso!

Quem nos dirá dos males da rima!
Que surdo absurdo ou que negro louco
Forjou em jóia este toco oco
Que soa falso e vil sob a lima?

Música ainda, e eternamente!
Que teu verso seja vôo alto
Que se desprende da alma no salto
para outros céus e para outra mente.

Que teu verso seja a aventura
Esparsa ao árdego ar da manhã
Que enchem de aroma o timo e a hortelã...
E todo o resto é literatura.

Traduzido por Augusto de Campos

O verso inicial, “A música antes de tudo”, influencia o mundo inteiro com sua receita: há que se procurar o verso ímpar, pois “só cabe usar o que é mais vago e solúvel no ar”. E vamos em busca de uma “canção cinza” porque, no total, é “onde o indeciso se une ao preciso”. Depois de todos os versos em defesa da nuance, do ato de velar, da coisa voejante, tudo em nome da musicalidade, vemos o quanto Verlaine está longe do cerebrismo de Baudelaire, ou da pregação de Mallamé visando o enigma como objetivo da literatura, ou mesmo e também, longe do espírito perturbado do “menino partidário de Satã “, seu companheiro Rimbaud. Diferente destes, Verlaine visa a emoção imediata criada pela fantasia musical.
Hoje, na França e fora dela, Verlaine é visto pela crítica como o simbolista puro, o poeta da emoção imediata com um calculado tom ingênuo que beneficia a aderência ao instantâneo da sensibilidade. É essa feição mais simples de seu lirismo que influencia na técnica simbolista: o Verlaine mais natural, mais voluntário e mais íntimo.
No Brasil, foi a música de Verlaine que Cruz e Souza levou para seus versos. Com Alphonsus de Guimarães, a admiração por Verlaine chegou à sujeição de sua própria poesia. Cecília Meireles fez uma verdadeira declaração ao poeta francês nos versos: “ó Verlaine, te amamos/ Lerás nos troncos. Até hoje”.
A gama de tradutores é imensa, indo de Onestaldo de Pennafort, o mais assíduo entre nós, passando por Herculano de Carvalho, Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira, Dante Milano, Jamil Almansur Haddad, até Augusto de Campos, Cláudio Veiga, José Lino Grunewald.
Vale ressaltar que a crítica biográfica que Verlaine intitulou Les Poètes Maudits, em 1884, inclui Rimbaud e Mallamé, mas, na verdade, o único ponto em comum entre os três é a contemporaneidade, porque Verlaine, sem dúvida, é quem tem um maior alcance e reverberação na poesia, então já simbolista, do final do século passado. Talvez seja a maneira mais “fácil” de ler os poemas de Verlaine, que embriaga o leitor, ou, talvez seja porque não lhe ocorre interpretar, solucionar nem adivinhar os enigmas do universo; ele tão-somente se deixa envolver em sua totalidade de sensações com aquele “sentimento oceânico” freudiano.
Quando Verlaine sentiu o excessivo entusiasmo dos jovens diante dos versos de "Arte Poética", ele disse em 1890: “Não tomeis ao pé da letra minha ‘Art Poètique’ que, afinal, não é senão uma canção”. É certamente apenas uma canção verlainiana: "Et tout le rest est littérature".


Trecho do texto "A poesia antes de tudo (sobre o poema quase receita de Paul Verlaine)" in O rio e a ponte - À margem de leituras escolhidas. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, FUNCEB, EGBA, 1999.