sábado, 30 de maio de 2009

O CADERNO: NOVO LIVRO DE SARAMAGO

Gerana Damulakis

Tenho que esperar, mas pelo menos já li o que traz o novo livro de Saramago porque acompanho seu blog O caderno de Saramago (http://caderno.josesaramago.org). Ainda assim, sempre fico querendo ter o livro entre as mãos o mais rapidamente possível.
Para quem não segue o caderno, pode ter uma ideia do que trata o livro lendo o parágrafo escrito por Pilar del Río no blog da Fundação José Saramago ( http://blog.josesaramago.org ):

"Caderno de Saramago não é um livro de crónicas jornalísticas, é um livro de vida. Aí Saramago conta cada dia o que o motiva, o que o indigna ou o que lhe apetece. Comenta o minuto, mas também recupera uma declaração de amor a Lisboa. Fala dos seus autores preferidos, com humor define as calças sempre impecavelmente vincadas de Carlos Fuentes, mas também o universo turbulento dos turcos de Jorge Amado descobrindo a América. Fala de Obama, sim, mas também de Bush, e do Papa, e de Garzón, e de Pessoa, e de Sigifredo López e Rosa Parks, de tantos lutadores pacíficos que conseguiram mudar o mundo ou o estão tentando, embora haja quem prepare receitas para matar um homem ou para condená-lo à fome, à miséria, a um estádio em que o humano acaba por desaparecer. E Saramago emociona-se com gente, com amigos, com pormenores… São seis meses de vida em que Saramago opta e conta com pinceladas que bem poderiam ser versos, reflexiona na companhia de quem o lê, propõe e não se cansa. Seis meses de cartas inteligentes para leitores inteligentes, sem artifícios e com tudo o que tem para dizer. Porque Saramago não se cala, expõe, entra, derruba montanhas ou aponta com o dedo se nesse dia não pode com a escavadora, ou são necessários mais para manejá-la, então diz que essa encosta é um impedimento, uma rémora, um obstáculo na vida de muita gente e avançamos para a deitar abaixo porque poderemos, se somos muitos. Fala das mulheres, revela-se, indigna-se, emociona-se."

sexta-feira, 29 de maio de 2009

REVISITANDO ADÉLIA PRADO

Gerana Damulakis

Leio e leio e leio romances e contos, mas a poesia não cala dentro de mim. A poesia dos outros, claro está. Nem de longe um ataque de vaidade, não combina, deixo a vaidade para certas pessoas que acabarão explodindo um dia desses. É sobre poesia que desejo escrever.

Maria Muadiê colocou outro dia algumas linhas de Adélia Prado no seu blog. Tive que retornar para a poesia de Adélia, precisei entrar de novo naquele seu mundo poético tão original, tão sagrado. A fé que permeia aquela poesia, quando mais não fosse pelo fato de fazê-la mais bela e encantada, seria uma nota para distinguir a poeta. Fé, amor, sexo, miudezas da vida: parece que Adélia torna poesia cada segundo vivido. De todas as facetas, escolhi o momento sublime que segue.


Casamento

Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Quero colher um poema fervente de religiosidade, outro atravessa a opção e mais outro. É tão apaixonante pegar a Poesia Reunida (Siciliano, 1991) de Adélia Prado e mergulhar completamente no universo da mineira que não resisto e colo aqui o diálogo com Drummond, responsável pela descoberta da poeta:


Com licença poética

Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

ROCK & POESIA


ROCK & POESIA NO RIO VERMELHO (Salvador/BA)SÁBADO, 30 DE MAIO, ÀS 18H, NA MIDIALOUCA
O PowerTrio punk rock Pastel De Miolos, o poeta Nelson Magalhães Filho e o quinteto de escritores CORTE (Katherine Funke, Gustavo Rios, Sandro Ornellas, Lima Trindade e Wladimir Cazé) apresentam um "rockcital" (quase-recital de rock e poesia) na Midialouca do Rio Vermelho, no sábado, 30 de maio, às 18h. No show, a energia e a sonoridade pesada da Pastel De Miolos (em formato "acústico") se somam à modernidade urbana da literatura baiana contemporânea. A entrada é franca.
Os autores do CORTE abrem a sessão com inserções literárias entre as canções próprias e clássicas do rock nacional e estrangeiro pinçadas do vasto repertório da Pastel De Miolos. Depois, o contista Diogo Costa, segundo convidado da noite, também contracena com o som da banda. Por fim, o poeta e artista visual Nelson Magalhães Júnior entra no palco da Midialouca, com sua visceralidade inata, para uma jam session com seus poemas e acompanhamento dos músicos.
O show também terá a participação de algumas figuraças do rock baiano: Jair "Mr. Guima" (Declinium), Elmo (Opus Incertum), Rodrigo Rocha (The Black Mountain Group), Sioux Machado (Jato Invisivel), Fauro (Dr. Gore) e Márcio (Barbas de Molho/Móvidos A Alcool). Algumas das músicas que constam no setlist da noite são "Who loves the sun" (Velvet Underground), "Here comes your man" (Pixies), "Break on trough" (The Doors), "Até quando esperar" (Plebe Rude), "Redemption song" (Bob Marley), "Guns of Brixton" (The Clash), "Fênix" (Declinium), além é claro, dos vários hit's da banda.
Os "rockcitais", encontros entre rock e literatura, vêm sendo apresentado pelos cinco escritores do CORTE e três músicos da Pastel De Miolos desde o ano passado, sempre com escritores convidados.
CDs/DVDs/Camisetas da banda e livros dos autores estarão à venda no evento.
SOBRE OS ESCRITORES E MÚSICOS:
NELSON MAGALHÃES FILHO - Nasceu em Cruz das Almas em 1958. É artista visual premiado nas Bienais do Recôncavo e nos Salões Regionais de Artes Visuais (FUNCEB). Em 1999 ganhou o Prêmio BRASKEM de Cultura e Arte. Tem participado em diversas mostras individuais e coletivas em vários estados do Brasil, na Espanha e em Nova York (EUA). Tem poemas publicados no jornal "A Tarde" (BA) e nas revistas "Leia" (SP) e "Exu" (BA). Publicou os livros de poemas em edições independentes "As Luminárias", "Anjos Baldios", "Imagens do Porão", "A Flor do Láudano" e "A Cara do Fogo".
Mantém o blog Anjo Baldio (http://anjobaldio.blogspot.com/).
PASTEL DE MIOLOS - Alex Costa (baixo e voz), Alisson Lima (guitarra e voz) e Wilson Santana (bateria) fazem há quase 15 anos incontáveis shows na região metropolitana de Salvador, pelo interior, em outros estados e até convites para Turnê nos Estados Unidos. Em fase de pré-produção do novo Album, que será lançamento apenas em Formato Virtual para Download Grátis e divulgando o mais recente lançamento, o DVD "Resistir..."
CORTE - O coletivo de escritores formado por Sandro Ornellas, Wladimir Cazé, Katherine Funke, Lima Trindade e Gustavo Rios já realizou ou participou de eventos em Petrolina/PE, Salvador/BA, Feira de Santana/BA, Porto Alegre/RS e San Miguel de Tucumán (Argentina).
SERVIÇO:
Onde: Midialouca, Rua Fonte do Boi, Rio Vermelho, Salvador (BA)
Quando: 30 de maio, às 18h
Quanto: Entrada franca
Realização: Verbo 21 Produções

quinta-feira, 28 de maio de 2009

quarta-feira, 27 de maio de 2009

COMO OS AMANTES...

Gerana Damulakis


Como costuma acontecer com os amantes, depois de explorar bastante um ao outro, cantos e recantos, a paixão arrefece. A paixão, não o amor. A verdade é que o tempo transforma a paixão, muda mesmo; não sejamos hipócritas, é fato que desaparece a urgência, o rasgar das roupas ou o despir das roupas quando já se pensava estar satisfeito e, logo, tudo clama por mais uma vez. Ora, não é para ser um texto sobre a paixão amorosa, é um texto sobre a paixão pela poesia. Ezra Pound é um poeta por quem me apaixonei há muito tempo, tenho livros com seus poemas em inglês, em espanhol (por que?, a paixão não tem respostas), em português. Tenho aquele tijolo Os cantos, editado pela Nova Fronteira em 1986, com tradução de José Lino Grünewald, capaz de levar qualquer amante de poesia ao êxtase. Meu encanto maior fica com os poemas de Lustra: são tantas as traduções, de Augusto de Campos, Ernesto Cardenal (espanhol) e José Palla e Carmo.
São as máscaras de Ezra Pound que me fascinam. A obra poética está em Personae e n’Os cantos (ou Cantares). Afora a poesia épica do grande volume, toda a poesia restante foi reunida em Personae. O exercício de estilo, valorizando ora a fanopéia (presente no Imagismo), ora a melopéia, ora a logopéia: quanta prática, exploração, paixão. Volto para Pound com uma sensação já conhecida, mas sem o fogo de antes, volto reconhecendo sempre o valor de uma figura que respirava poesia, a sua e a dos outros, e volto, enfim, apaziguada, com a temperatura morna do amor.
Apaziguado também, Pound resolveu reconhecer Whitman. Gosto bastante daquele “pacto” que, afinal, se dá quando as sensações intensas recolhem-se em cinzas, quando podemos conversar, admirar sem gritar, acarinhar. Na tradução de José Palla e Carmo, do volume Ezra Pound - Poemas Escolhidos (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1986), segue o poema de Ezra, “Um Pacto”:

Contigo, Walt Whitman, eu faço enfim um pacto –
Porque já te detesto há mais que basto tempo.
A ti eu me dirijo, qual o crescido filho
Cujo pai tem sido teimoso como burro;
Já tenho idade, enfim, para escolher amigos.
Se, por um lado, os toros tu cortaste,
Urge hoje outra tarefa, a de os lavrar em talha.
A seiva e a raiz nós temos em comum –
Que finalmente, pois, os dois comuniquemos.

terça-feira, 26 de maio de 2009

O EQUILIBRISTA

Flamarion Silva



Fui agraciado: o patrão disse que precisava enxugar.
— A culpa não é minha. A culpada é essa crise. Todo mundo enxugando. É preciso enxugar. Passe em dona Cláudia, ela está avisada, precisa assinar uns papéis. Preocupe-se não — disse batendo no meu ombro — logo logo arranja outro emprego, quem sabe até melhor que esse...
Passei em dona Claudia e assinei os papéis. Graças a Deus tinha o seguro-desemprego, por algum tempo ia receber um troco, dava para garantir o sustento da família.
Fui avisado da demissão no fim do expediente. E, como se não bastasse saber-me demitido, o patrão ainda ratificou à minha saída:
- Amanhã não precisa vir.
- Está bem, senhor — respondi triste.
Lembro-me que o patrão me foi muito amável naquele dia. Lembro-me que dona Cláudia, pela manhã — reparem só que besta eu fui —, uma das vezes em que passou por mim, no corredor da empresa, olhou-me diferente. Ora, meu Deus, uma moça distinta, até bonita, hierarquicamente acima de mim— eu, auxiliar de escritório, exímio digitador; ela, responsável pela contabilidade —, dando-me o ar de sua graça? Fiquei todo garboso. Eu era casado, sei, mas que homem não se sentiria brindado com tão graciosa oferta? Atribuí o olhar de dona Cláudia ao tratamento especial que o patrão estava me dando. Conclui: ora, se o chefe, que é o chefe, dá-me importância, nada mais natural que ela também o imite, uma espécie de consideração aos olhos dele. Que mais podia ser?
Besta! Besta que fui. Olhar e tratamento especial não eram senão olhar e tratamento piedosos. Olhavam-me com pena, como se dissessem: mais um a ir para a rua. Que se há de fazer? Besta que fui. Imaginem: dona Cláudia, interessando-se por mim... uma moça chic... Patrão amável... hum... Besta, besta que fui, já sabiam que eu seria demitido.
Fui para casa. Minha mulher tentava me animar.
- Daqui a pouco arranja outro trabalho. É competente, é ótimo digitador, homem sério, tem referência. Preocupe não.
As primeiras noites foram suaves, dormi bem, mas... dia sim e outro também de entrevistas que davam em nada, todo mundo enxugando, as noites tornaram-se densas, pesadas, arrastadas.
Que se pode vislumbrar em noites brancas, quando os dias são negros?
Fazer cocada. A mulher já remediava a situação, deu de fazer cocadas para vender. O menino recebia orientação diária.
- Aperta a barriga! Aperta a barriga, menino; tranca a boca; não come tudo agora, pois quem come e guarda come duas vezes.
Ah, triste vida, fiquei mais de ano desempregado. Até o dia em que, cansado de não ter que fazer, saí com essa de ser equilibrista. Isso era coisa que fazia em tempo de menino, lá no meu interior. Amarrava corda retesada em duas árvores no quintal de casa e lá me punha a dar os primeiros passos. Obtive progresso e reconhecimento rápidos. A opinião de que havia nascido para aquilo era unânime. A plateia de meninos em redor do equilibrista só crescia. Até que vim para a capital. Meu pai disse que eu precisava continuar os estudos.
- Homem sem estudo não é nada, isso de ser equilibrista na vida é coisa de palhaço.
Arrumei minhas coisas e vim. Conheci linda moça, namorei, casei, fiz-me pai de um menino e aqui estou, equilibrista, ou, como dizia meu pai, palhaço.
Mas que nada, importante mesmo é fazer o que se gosta! Fui ser equilibrista na vida. Equilibrei-me por um tempo apresentando-me na Praça da Piedade. O público era grande. Meu menino recolhia o dinheiro, coitadinho, andava em círculos, de cá para lá, de lá para cá, num vaivém incansável. Alegrava-se quando o povo era generoso; entristecia quando passava a cuia e só recebia um meio sorriso acompanhado de balançar negativo de cabeça. Eu, também, confesso, ia entristecendo, cansando, achando tudo aquilo um saco. Uma coisa é equilibrar-se na vida por brincadeira, outra é equilibrar-se por necessidade. Mas o que é a vida senão isto: um eterno brincar de viver. Pena que se cresce e...
Upa! Upa! Voltei a me apresentar com a mesma alegria do começo. A alegria veio de repentina tomada de consciência. Ora, estava eu um dia muchuruco, jantava, quando minha mulher falou:
- Vamos, homem, deixa disso! Onde está aquele menino, o equilibrista que fazia piruetas sorrindo em cima da corda?
Ainda aí fiquei calado. Depois a conversa morreu de vez. Cada um foi para o seu canto e a vida nem por isso parou. Eu sim, parei. Parei pra pensar no menino e no homem, quando, minhas sobrancelhas, sem que dessem pela falta de boca, num erguer-se conclusivo, falaram-me:
- Upa! Upa!
- Upa! Upa! — exclamei reanimado — Nada mudou. A vida continua a mesma. O que muda são os homens, que deixam de ser meninos.
Voltei a ser menino e a sorrir. Isso parece que deu certo. Eu era animado, eu era alegre, eu era um completo palhaço. Sorria de mim, sorria dos outros, e com graça dizia:
- Papai, olhe eu aqui!
Isso eu dizia para mim; para o meu filho rodando a cuia; para os espectadores e...
- Papai, olha eu aqui!
E moeda pingava na cuia.
No fundo foi essa a verdade, precisava amar o que fazia. Passei a amar a vida como um verdadeiro palhaço. A corda, retesada sob os meus pés, esta eu já não sentia. O que era abismo transformou-se em horizonte.
Até o dia em que... o equilibrista pululava no ar, driblava a gravidade e os pés iam leves, e o corpo ia solto, e a pluma no vento soprada por Deus. Mas, que diabo! Uma pedra de tropeço no caminho. Desequilíbrio. Caio. Quebro a perna. O povo se aproxima, o povo evade.
- Não, não chore, filhinho. Ajude-me aqui, ajude-me aqui. Upa! Upa! Eis que estou de pé. Desarme o circo, vamos para casa.
Bem, essa foi a trajetória do equilibrista. Sem tenda não há circo; sem circo não há equilibrista; sem equilibrista não há palhaço — conforme meu pai —, e, sem palhaço, não tem graça, então, o que é que há?
- Hoje tem circo?
- Tem sim senhor.
- Tem marmelada?
- Tem sim senhor.
Ora, senhores, não se aborreçam, há um escritor, eis aí o maior equilibrista.



Flamarion Silva é autor de O rato do capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, Selo Letras da Bahia, 2006).
Foto: L'Equilibrista, por BaD85, retirada do Flickr.

SITUAÇÃO

Gerana Damulakis


Como me situar
se espaço, tempo, energia
são conceitos relativos da teoria ?

Como me geografar
se a equação ilógica
é indemonstrável, complexa questão
da mutabilidade do mundo
a cada segundo?

Como me localizar
se o eu vaga mais que o corpo,
é totalitário e onipotente,
refazendo-se à revelia de mim?

Como me plantar
nos meus pés,
quando se fixar pode
significar a morte,
o fim absoluto,
renegado sete vezes,
sete vezes injuriado?

Rogo ... que um mapa o limite
em seu mundo, ó imaginário:
viajante de mim.

De Guardador de mitos (Edição do Autor, 1993).
Foto: Imaginário, por Patricia Carmo, retirada do Flickr.

CARDO


Gláucia Lemos


Escolheste ser cardo.
Tua lenda se inscreve no traço
das cicatrizes em sangue
que desenhas.
Do espinheiro a dádiva é a dor.

Escolherias ser chuva
afago da vida sobre sementeiras
redenção ao sedento.
Escolherias fruto,
serias ao faminto mais que seiva,
polpa madurecida.

Escolheste ser cardo,
cardo te fizeste.
Não me venhas dizer que minha dor
feriu o teu espinho.


Foto: Cardo, por Juliovet, retirada do Flickr.

SONETOS EM PORTUGAL

Ildásio Tavares


Antônio José Queiroz (o chamo Tonzé, carinhosamente), grande poeta, grande pessoa, encantado com meus modestos sonetos, sugere que eu faça com eles um livro e os edite pela Labirinto de Fafe, uma das mais tradicionais editoras de poesia de Portugal. Aceito sem mais delongas. Pessoa diz: o homem sonha, Deus quer, a obra nasce. Assim nasceram As Flores do Caos, 68 sonetos peneirados de mais de 800 que já escrevi, desde a adolescência, e postos na rua pelo editor da Labirinto, o encantador João Arthur Pinto que, com sua mulher, Cristina, puxaram o tapete para este velho poeta no Porto.
No Porto, uma confusão de muitas esteiras que os portugueses botam fora de ordem, justamente para atrapalhar baiano. Corri pra lá e pra cá até achar a esteira n° 6 que, com uma lentidão baiana, me devolveu minha pequena mala. O cara da alfândega, braços cruzados, sorridente, me fez sinal, “venha”. Nada de sinal verde ou vermelho, bens a declarar, nada a declarar. Eles implicam com brasileiro mesmo.
Quando abriu minha mala cheia de livro, o fiscal nada disse. Só fez futucar lá embaixo de minha mala com aquelas mãos nodosas que nunca viram um livro. Me liberou.
Lá fora, a presença sempre augusta de Francisco Topa, uma das maiores autoridades em Gregório de Mattos, no mundo, senão o maior, com sua alentada de mais de duas mil páginas. Topa é meu filho acadêmico em Portugal e me orgulho muito de sua seriedade, argúcia e tirocínio. Ele e Teresa formam um belo casal e até adotaram um casal de miúdos, Pedro e Jéssica, esta xará de minha filha mais velha. Topa me leva, sorridente, ao meu hotel predileto no Porto, o Grande Hotel Paris, fundado em 1880 e que era a coqueluche na Belle Époque, com seus vitrais, com seu teto de gesso finamente trabalhado, com a classe e a categoria de seus recepcionistas.
E começam os lançamentos. O primeiro na Universidade do Porto, promovido pelo Chico Topa, em que fiz uma conferência sobre a presença de Angola na Bahia. O segundo na Biblioteca Municipal de Fafe, onde uma platéia seleta foi surpreendida pela minha atitude incomum em lançamento. Ao invés de dissertar sobre minha obra, o que eu não faria com prazer, mandei distribuir o livro entre os presentes e lhes pedi que escolhessem um soneto de seu gosto e que lessem para nós. Foi um sucesso. Tonzé começou sugerindo a leitura dos IX Sonetos da Inconfidência, que ele acha meu melhor trabalho. Depois vieram as escolhas do público. E ficamos até tarde lendo poesia.
Refleti que o melhor que um poeta pode dizer está nos seus versos. Ao dar ao público a chance de ler os poemas, o poeta está ouvindo o seu pensamento, a sua música, com a inflexão do outro com a expressão do outro, uma outra leitura, diferente da sua. É uma experiência muito rica, para a platéia como para o autor que, inclusive, quebra a atitude de estrelismo que poderia assumir, e se irmana, democraticamente com o público.
Em Lisboa repeti a experiência com igual sucesso.

Foto: Porto - Portugal, por Francisco - PortoNorte, retirada do Flickr.

domingo, 24 de maio de 2009

TERRACOTA


Gerana Damulakis


Durante os 8 anos na comissão editorial Selo Letras da Bahia (Fundação Cultural do Estado, Secretaria da Cultura e Turismo e EGBA) passaram pelas minhas mãos uma quantidade impressionante de originais. Aprovei vários, reprovei outros tantos. Alguns ficaram marcados. Continuei acompanhando a produção literária de muitos daqueles autores, mas não sei sobre todos, se o livro aprovado na comissão ficou sendo o primeiro e único, se o escritor era escritor de uma estação.

Fiquei bastante contente com o número de livros que recebi (todos juntos) de Vladimir Queiroz, exemplo de um escritor que teve o original aprovado no Selo, seguiu publicando e, hoje já tem uma bela lista de títulos.

No entanto, quando aprovei o volume de poesias Terracota, em 2001, Vladimir, que estreou em 1996 com o livro Seres & Dizeres, já havia recebido alguns prêmios e foi o primeiro colocado no Projeto Cultural Petrobras, na categoria poesia, em 1998. Sua obra traz: Infantilis: um manifesto à criança, de 2003, Apokálupsis do sertão, de 2006 e Luminescência, de 2008, além dos já citados.

Pensei em colocar um poema de Terracota, só que este livro tem uma organicidade tal, fazendo-se necessário por inteiro, daí busquei os versos de "Mar" em Lumininescência:

O sol auscultou o mar:
o mar bateu bateu bateu
arrebentou-se.

Sujou a cara de areia
seguiu pegadas
foi em busca do nada
infiltrou-se.

Trouxe a brisa rouca
ouviu murmúrios: coisas (de) vagas
aquietou-se.

Enraiveceu-se, espumou
viu o sol (tão lindo!)
expirou.

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morreu na praia.

sábado, 23 de maio de 2009

A MENINA DA JANELA

Gláucia Lemos


Indiferente à frieza e aos chuviscos, uma menina, debruçada na janela, está contemplando alguma coisa na pracinha. Deve ter uns nove anos. Em que pensa uma menina de nove anos debruçada na janela da escola, assim ensimesmada, diante da pracinha? Quase imóvel, só lhe estremecem, levemente, umas poucas madeixas, que o vento da manhã molhada teima em tentar agitar. Não compareceu a professora certamente. O inverno que, precoce, chega em maio, escandalosamente em aguaceiros, altera o ritmo da cidade, e atrapalha a rotina de muitos. Professores entre os muitos.
A menina está sem aulas neste horário. Por trás dela há cabeças que se movimentam ininterruptas. Colegas inquietos liberam a energia que represam durante as aulas, a menina, porém, parece tranqüila apoiada ao parapeito da janela, um braço dobrado com a mão imóvel voltada para perto da face, e o outro antebraço repousado na extensão do peitoril.
Cá embaixo, a manhã da pracinha segue a rotina quase perfeita. Ainda está o jornaleiro sentado no banco, embora a esta hora já tenha amenizado o fluxo dos carros que sempre diminuem a marcha para que alguém lhe compre o jornal do dia. Está a mulher com seu vaso de paçocas. Só não está o painel dos CDs piratas que também habita a calçada em dias mais enxutos. E transeuntes. Que será que atrái com tamanha atenção o interesse da menina?Que a toma tanto até deixá-la desinteressada do movimento vivido pelos colegas atrás dela, provavelmente ruidosos. Ou não esteja sua atenção voltada para a praça e a menina apenas tenha ficado envolta por seus pensamentos?
Tento adivinhar o que se passa na cabeça de uma menina de nove anos quando se põe sozinha, completamente abstraída do seu redor. Em que pensava a menina que conheci mais de perto, quando tinha nove anos?
Também era pensativa muitas vezes, mesmo quando se envolvia com a graça de um livro. Também gostava de se pôr sozinha e quieta, para se devotar ao que vivia em seu recolhimento. Inventava histórias e sonhava. Planejava realizar viagens para mundos distantes. Aqueles mundos que visualizava quando lia os contos de As mil e uma noites, transitar entre aquelas construções de torres em abóbadas, que via nos filmes em que se narravam enredos passados no Oriente. E fazia poesias, enfileirava versos no caderno que tinha na cabeça, para depois escrevê-los e guardar. Então não via o que estava acontecendo em torno, e se alguém a chamava nesses momentos, despertava com inevitável susto.
A menina da janela agora voltou a cabeça para o interior da sala. Alguém a teria chamado. Lentamente, deixa a janela, e na janela deixa os seus pensamentos. Seus sonhos ficam interrompidos para atender ao chamado. Seus planos abandonados, evanescendo no mármore do parapeito, para serem levados pela primeira lufada de vento desta manhã chuvosa, e perdidos, definitivamente. Como se perdem todos os sonhos de todas as meninas de nove anos que começam cedo a se abstrair da vida, para, em silêncio, fantasiar os seus anseios.
Quando os nove anos por alguns anos de multiplicarem, a menina entenderá a vanidade de todos os sonhos, mas sentirá saudades deles, como se os tivesse vivido, em algum lugar que não o peitoril da janela, e em algum tempo que, infelizmente, se perdeu.



Gláucia Lemos está com seu livro de crônicas, nascido aqui no blog, praticamente concluído.
Ilustrando: Mily Possoz (1888- 1967)-Menina da Boina Verde 1930, óleo sobre tela 64 x 53 cm. Centro de Arte Moderna / Fund. Gulbenkian, Lisboa, Portugal.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

RECORDAÇÃO


Gerácimo Damulakis


Ouço: DEM, DEM, dem, dem... dem. É o sino estridente, mas conhecido. Sinto as pernas frias, abro os olhos, vejo as cobertas nas mãos do sensor. Daí espreguiço-me. Eis mais um dia qualquer. O sótão do velho colégio é sempre frio ao amanhecer e muito mais frio é o banho que vem logo em seguida.
Numa carteira grande e negra, espécie de mesa de estudo, escrevo em um caderno bastante rabiscado, de capa mole, que cisma com a independência. O toco de lápis de ponta rombuda fere o papel fortemente. O caderno divide-se em folhas brancas e folhas com linhas. Escrevo: “22 de maio de 1940. Ditado”.
A velha professora, uma mulata gorda, inicia o ditado com voz alta, clara e muito explicada. Nada difere dos ditados anteriores, e o passar das horas que se arrastam tão vagarosamente faz crescer a ansiedade pelo recreio. Por fim o sino toca e me acorda imediatamente, mas me acorda de outro sono, aquele das fantasias.
Esse sino que me tirou do devaneio, soa agora com voz de soprano, bonita e alegre. Em poucos instantes o fundo do colégio enche-se de crianças, de buracos para o jogo de gude, de cheiro de merenda.
A topografia do grande pátio de recreio é toda minha conhecida. As elevações e os buracos, os pequenos montes de capim e os batentes de alvenaria. Tal um soldado que conhece o campo de batalha, lanço-me não à luta, mas ao jogo de gude. Sabendo como sei todos os truques, faço uso do terreno para ganhar muitas gudes.
Estou em grande dia. Meus dedos de unhas cheias de barro acertam sempre. Não adiantam os pedidos difíceis dos adversários:
— Quero gude presa, sem correr um tiquinho.
— Para onde pede?
— O buraco mais longe.
Logo tenho o bolso cheio. Chego a chamar a atenção e sinto orgulho. O prazer em mim foi tanto que a minha memória guardará o prazer de então como uma lembrança que faz sorrir.
No meio do recreio ecoa um repetido chamado do meu nome para comparecer à secretaria. Que chamado inoportuno e irritante! Não quero ouvi-lo. Insistem e estou na obrigação de abandonar o jogo. A secretária da diretora diz:
— Vista-se e vá lavar as mãos. Você com essas unhas sujas de barro! Um horror! Seu pai está aí, que é que ele vai dizer?
Molemente desloco-me dentro do colégio. A secretaria é o último lugar aonde quero ir. Dentro de mim um turbilhão de sensações e atitudes decididas que quero tomar. Ninguém entende ou procura entender o meu desinteresse em ir ao encontro de meu pai.
Transponho a porta. Paro ao ver meu pai. Depois, me lanço aos seus braços fortes e acolhedores. Choro sem dizer nada. Tenho-o de encontro ao meu corpo e sinto o tecido gostoso, linho branco, que ele costuma usar. Não lembro nada do que falo ou do que ouço, apenas vejo uma caixa de presente envolta em papel fino e verde. O tempo é curto. Volto choroso ao recreio. Só então me dou conta de que hoje é o meu 22 de maio.
Anos mais tarde, escrevo a data num papel para iniciar uma carta. Sem consciência do porquê, começo a pensar no passado e procuro entender aquelas vacilações que me invadiam por ocasião da visita do pai. Mas o tempo voou sem eu sentir. Outros 22 de maio surgiram sem maiores emoções. E agora farei os vinte e três anos tão sonhados. Os prazeres, as sensações e os sonhos não são mais os mesmos que tenho agora; ainda assim muita coisa tem seu equivalente. Meus olhos parados a analisar a topografia de um terreno podem conter a mesma expressão de quando eu observava o pátio do recreio. Apenas uma sensação, a estranha e esquisita, inexplicável na época, aquela sensação com a chegada de meu pai, essa não se repetiu mais. Em meio a meus pensamentos, entra a minha secretária e me avisa:
— Seu pai está aí e lhe chama.
Olhei a data no papel em que escrevia e me dei conta: é dia 22 de maio.



Publicado em 06/01/2001, no suplemento Cultural de A TARDE.

Encontrei um papel com este conto (melhor dizendo, com esta crônica) que meu pai escreveu aos 23 anos de idade, no dia 22 de maio, data de seu aniversário. A meu pedido, Florisvaldo Mattos, sempre carinhoso comigo, publicou no Cultural e quando meu pai abriu o jornal teve uma surpresa enorme. Abaixo, Florisvaldo colocou: Gerácimo Damulakis é contista, engenheiro e empresário. Foi muito gostoso aquele dia. Meu pai nunca foi contista, sempre foi engenheiro e amava seus oleodutos e gasodutos Brasil afora, mas adorou ser contista por um dia.

A foto acima (meu pai e eu) é colorida, mas foi com um propósito que postei em preto e branco. Hoje, neste 22 de maio, meu pai está em cores apenas no meu coração e no coração de Jorge, meu irmão. GD

quarta-feira, 20 de maio de 2009

MARIO BENEDETTI: 14/09/1920 - 17/05/2009


Gerana Damulakis

Soube que Benedetti estava doente através do blog de Saramago, o qual solicitava uma corrente de poemas como mostra de que os leitores estavam torcendo pelo restabelecimento do amigo Mario. Houve melhora, mas agora o escritor uruguaio se foi.
A vasta obra de Mario Benedetti foi traduzida mundo afora: em torno de 80 livros. Consagrado como poeta, seus contos e o romance A trégua (seu clássico) garantiram Benedetti entre os principais escritores latino-americanos, ao lado de, por exemplo, Juan Carlos Onetti.
Li recentemente o livro de contos Correio do tempo (Objetiva, 2007). As situações que os contos trazem são pungentes, embora muitas vezes corriqueiras. Talvez como um alerta para que prestemos atenção na sutileza do que é frugal, porém profundo se devidamente sentido. As narrativas primam pela brevidade, justo quando a mão do mestre é evidente. Há o toque da ironia mesclada com humor leve.
Nascido em 1920, em Paso de los Toros, Uruguai, Mario foi jornalista, exilou-se por 12 anos na ocasião em que se viu envolvido nas questões políticas de seu país nos idos da década de 70 do século passado.
Sua marca está registrada na literatura.

TRÊS DIAS COM HELENA


terça-feira, 19 de maio de 2009

segunda-feira, 18 de maio de 2009

INSCRIÇÕES


As formas informes do desejo
SEMINÁRIO HELENA PARENTE CUNHA
Academia de Letras da Bahia
Dias 20, 21 e 22 de maio de 2009

Inscrições até 19 de maio
através do e-mail:
http://br.mc523.mail.yahoo.com/mc/compose?to=seminariohelenaparente@ufba.br

ou diretamente na
Academia de Letras da Bahia
das 14 às 17 horas

domingo, 17 de maio de 2009

CONVITE


Livro conta a história do “Camarada Engenheiro”
- Comunista histórico, Luiz Contreiras foi preso e torturado devido às suas idéias.
A trajetória de vida e a militância política do engenheiro Luiz Fernando Contreiras de Almeida, no Partido Comunista do Brasil, é o tema do livro Contreiras, Camarada Engenheiro – uma história de luta e coerência, que o jornalista e escritor Elieser Cesar, lança, no próximo dia 22, às 18h, no Centro Cultural da Câmara de Vereadores, na Praça Municipal em Salvador. Depois de uma novela (O azar do goleiro, já na quarta edição), dois livros de contos (O escolhido das sombras e outras histórias), uma coletânea de poesia (Os cadernos de Fernando Infante) e um livro de ensaio ( O romance dos excluídos – Terra e política em Euclides Neto, fruto de sua tese de mestrado), Elieser Cesar, detentor de vários prêmios de reportagem, traz, agora, um livro-reportagem. “Trata-se, acima de tudo, de uma grande reportagem no estilo perfil, escrita com as técnicas do chamado jornalismo literário”, ressalta Elieser Cesar.
Elieser Cesar conta que o livro, publicado pela Editora Caros Amigos, nasceu de uma encomenda da família de Luiz Contreiras, para homenagear seus 85 anos de idade. “Como jornalista, percebi que a trajetória de Contreiras tinha como pano de fundo as lutas populares da Bahia, sobretudo o enfrentamento ao golpe militar de 1964, que teve no engenheiro e em sua mulher, a ex-deputada estadual Amabília Almeida, opositores de primeira hora. Esse ingrediente foi um motivo a mais para escrever a história de um homem que acreditou no comunismo, mas que viveu tempo suficiente para reciclar suas idéias, sem jamais abandonar os ideais de justiça social”, dizo autor.
“Luiz Contreiras sempre foi um homem movido a paixões. Se como engenheiro ajudou a abrir estradas, construir pontes e prédios, como comunista convicto foi, além de tudo, um construtor de utopias, essa matéria impalpável que tem a mesma volatilidade dos sonhos. Viu ruir o projeto do socialismo democrático, solapado pelo socialismo real, com a centralização burocrática do poder estatal e o Estado policialesco, sobretudo na antiga União Soviética e nos Estados satélites do Leste Europeu. Testemunhou a queda do Muro de Berlim e a extinção da URSS. Porém, jamais abdicou da crença no socialismo democrático e nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade,
tributários da Revolução Francesa”, diz o escritor, na introdução do livro.
“Contreiras, Camarada engenheiro” traz também depoimentos de companheiros de luta de Luiz Contreiras, como o ex-deputado federal Fernando Sant’Anna, decano dos comunistas baianos, o ex-prefeito de Salvador, Virgildásio de Sena, o empresário João Falcão, a esposa, Amabília Almeida, e amigos de outra geração, como o deputado federal Emiliano José, o cientista político Paulo Fábio Dantas e os advogados Dida Santiago e George Gurgel, dentre outras personalidades.


Trecho:
“Quem são mesmo esses homens barbudos, cabeludos e sujos, com cara de maus, que chegam como donos da cidade, do destino, da vida e da morte das pessoas simples? Forasteiros de passagem? Bandidos perigosos? Vão logo embora, sem deixar rastro ou saudades, como os ciganos? Que querem esses estranhos, na cidadezinha pacata? Dinheiro? Judiar dos pobres e dos bichos? Levar toda a comida e o rebanho? Tocar fogo nas casas? Pior se resolverem raptar as mulheres, deixando os homens sem esposas, os pais sem filhas e os filhos sem mãe... Não podem ser de paz, se chegam fortemente armados e prontos para a guerra.
Muitos pensamentos ruins confundiram a cabeça dos moradores do lugar (pouco mais de 800), quando, depois de palmilhar centenas de municípios brasileiros, enfrentando as forças legalistas, os jagunços dos coronéis e as volantes sertanejas, os homens da Coluna Prestes, sedentos e esfomeados, entraram na pequena Rio de Contas, na Chapada Diamantina”.
Elieser Cesar

quinta-feira, 14 de maio de 2009

UM POEMA DE MYRIAM FRAGA

Gerana Damulakis

Estive na Academia de Letras da Bahia e em conversa do tipo uma coisa puxa outra com a poeta Myriam Fraga, acabei falando de meu pai (como sempre!) e lembramos quando nós duas fomos para o Rio de Janeiro na ocasião de alguma Bienal do Livro. Meu pai e meu irmão me levaram ao aeroporto e nós quatro conversamos até o momento em que Myriam e eu embarcamos. Mas ela lembrou também que sempre encontrava com meu pai e minha mãe na Perini, nos sábados pela manhã. Tempos idos, findos, enfim. Myriam é como eu, tem muito de Electra dentro da alma. Os psicólogos diriam que somos “edipianas”, mas só entendo de literatura e é Electra quem personifica o amor da filha pelo pai.
Basta uma amostra tal como a fala de Electra diante das suas “nobres amigas” (o coro), que vieram minorar suas dores, na tragédia de Sófocles, intitulada Electra: “Não tem um mínimo de sentimento/ quem consegue esquecer por um instante/ a morte trágica de um pai amado”.
A Electra trata do retorno de Orestes (irmão de Electra) a Micenas para vingar a morte do pai. O tema da Electra foi tratado também por Ésquilo, nas Coéforas, e por Eurípedes. Para adiante, longe da idade heróica da Grécia, Eugene O’Neil e também Ezra Pound retomaram o assunto. Da Elektra do dramaturgo Von Hoffmannsthal, Richard Strauss extraiu uma ópera.
Voltando para Myriam e para o que ela me disse. Disse-me que a dor da perda não passa, fica um vazio roendo aqui dentro. Revelou que seu poema “Março” foi construído por conta dessa dor. Logo que cheguei, o que fiz? Quem me conhece, nem precisa pensar: peguei o livro de Myriam e li “Março”, agora sabedora do que detonou o poema. Só que olhando o índice do livro Poesia Reunida descobri que na parte referente aos inéditos há um poema intitulado “Meu pai”. Li. Chorei, reli. No dia seguinte, fui achar de ler para Aramis Ribeiro Costa em voz alta (claro!). Quase não cheguei ao fim, embarguei a voz, me arrepiei, lágrimas saltaram. Os olhos de Aramis marejaram. Contei tudo isto para a própria Myriam, porque fui outra vez à Academia (estou voltando..., por sinal, foi ótimo, li um poema de Antonio Brasileiro que adoro, “Das coisas memoráveis”, o qual até já foi postado aqui meses atrás).
Mas, antes de contar mais, quero colocar as estrofes finais de “Meu pai”, de Myriam Fraga:

Penso em meu pai e, num sonho, novamente,
Como num filme antigo, me vejo a seu lado,
Como se não houvesse entre nós esse espaço,
Esse rio que separa o tempo em duas partes,
Como se não houvesse esse hiato, como se...

Eternidade, talvez, seja a palavra exata.

In Poesia reunida (Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2008).

Como Myriam é tão emotiva quanto eu, logo depois de ouvir minha historinha, ela também se emocionou e, como poeta, expressou o quanto é importante quando alguém sente tão profundamente o que ela escreve. Eu disse: “Myriam, obrigada pela emoção que seu poema me proporcionou”. Ela virou-se para Edivaldo M. Boaventura e falou algo como: “Quando acontece uma coisa assim, a gente sente o quanto a arte vale a pena”.
Myriam: se um poema é capaz disso, é porque todavia há solução para este mundo que anda parecendo tão insensível. Vale a pena!

quarta-feira, 13 de maio de 2009

AS APARÊNCIAS ENGANAM

Gerana Damulakis

As aparências enganam, dizem e banalizam por muito dizerem, mas não acreditam realmente. É verdade, porém. Assim foi que gostei imensamente do artigo de Roberto Pompeu de Toledo na revista Veja, de 06 de maio de 2009, com o título “Três modelos sexuais”, quando ele aborda as figuras de Fernando Lugo, ex-bispo, atualmente presidente do Paraguai e pai de três filhos (até hoje, amanhã pode ser que mais filhos tenham aparecido), Jacob Zuma, novo presidente da África do Sul, ímpar em tantos aspectos e, finalmente, Susan Boyle, “o charme do sexo zero”. Para Toledo, todos “ofereceram ao público evidências de que, por trás das aparências de uma pessoa, pode pulsar uma outra, surpreendente, espetacular”.
Fiquei pensando em Marilyn Monroe e no modo como fixaram rótulos para ela. Os filmes nos quais atuou, sempre como loira burra, fútil, interesseira, com um cérebro igual a uma casca de noz, contribuíram para uma imagem tão errada que, ao fim e ao cabo, ela mesma não suportou ser vista unicamente daquele jeito. Entretanto, ela pensava, e como pensava. Há colocações interessantes deixadas pela loira platinada e gostosona. Ela era uma leitora (adorava Walt Whitman e as Folhas de Relva), e ela era, segundo a própria, assim como uma construção, um edifício já erguido, onde faltavam as fundações.
O assunto me toca porque senti muitas vezes juízos errados sobre certas coisas. Imagine uma criatura que andava pela faculdade (Federal!) em cima de saltos altíssimos. A maioria me achava, de pronto, uma esnobe. Por que jamais alguém pensou: “Ela deve ter complexo por medir apenas um metro e sessenta e dois”? Depois, conhecendo de perto, invariavelmente me diziam como estavam enganados, que de metida eu nada tinha. Sigo em cima dos saltos e, juro, é só porque tenho 1,62 m. Uma bobagem minha e quem quiser que pense o que quiser!
Erros de avaliação são comuns e temos que ir aprendendo a conviver com eles. Melhor seria, no entanto, aprendermos o lugar-comum da expressão nos moldes colocados por Toledo, ou seja, vamos procurar evidências, “evidências de que, por trás das aparências de uma pessoa, pode pulsar uma outra, surpreendente, espetacular”. Enfim, vamos olhar e ver. Há tanta surpresa!

"Marilyn Monroe reading Leaves of Grass, de Walt Whitman": retirado do blog O silêncio dos livros.

terça-feira, 12 de maio de 2009

A LEITORA


Gerana Damulakis


Os livros tomam conta de mim. Disto não são capazes o cinema, a música, certos assuntos... Ao acabar um livro, há sempre uma sensação, independente de ter levantando ou não a minha admiração pelo estilo, pela linguagem, pela originalidade do tema, pela peripécia bem urdida. É da sensação que persiste que quero escrever. Ela independente do final do texto – geralmente, o final importa tão pouco, é o que menos deixa resquícios na memória. Vou formando as minhas imagens, diretora que sou da minha leitura – a leitora, a que completa o texto. Quantas vezes pouso o livro e vou beber água (sou viciada em água, H2O mesmo) e sinto que a atmosfera do livro me acompanha. Isto é chamado de teoria do efeito. Wolfgang Iser discorre em O ato da leitura (Editora 34, 1996) a teoria do efeito estético. Tal efeito requer do leitor atividades imaginativas e perceptivas, diz ele (são as imagens criadas). O que é tratado é o efeito e não a recepção. Veja que interessante: o texto, o leitor e sua interação – desta relação dialética o efeito estético deve ser analisado. Iser: “Uma teoria do efeito está ancorada no texto – uma teoria da recepção está ancorada nos juízos históricos dos leitores”.
Como eu sou prolixa! Queria dizer da sensação arrebatadora de um livro que acabei de ler faz pouco tempo: Aqui nos encontramos, de John Berger. Narrativa que engana, começando de uma forma simples para logo jogar o leitor numa vertiginosa andança sem tempo. Basta esta frase da mãe do narrador: “Os mortos não ficam onde estão enterrados”. Depois de tudo, pensei que, escrevendo aqui, ficaria mais claro o que estou sentindo. Não adiantou e, caso eu não pare agora, temo que farei uma resenha do livro e não uma busca para definir a sensação.
Sairei do livro em questão. A literatura é uma grande escapatória, sempre digo. Quem tem, no ato da leitura, este imenso prazer, não sente solidão, consegue viajar sem sair do lugar (frase que já é um lugar-comum), mas, principalmente, sente a vida em dobro. Porque ele, o livro, nos toma, cresce e oferece a oportunidade de sentimentos diversos, tão distintos da experiência que se está tendo no cotidiano.
E para encerrar porque hoje não estou boa de texto, por conta disso, peço ajuda. Que diga bem, então, o grande Guimarães Rosa sobre o assunto: “Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente”, in Grande sertão: veredas.


Tela de Edward Hopper [ Compartment C, Car 193], 1938. Retirei do maravilhoso blog: www.osilenciodoslivros.blogspot.com/

sexta-feira, 8 de maio de 2009

PEQUENA TEORIA DO CONTO


Ildásio Tavares
Para minha filha contista

Certa feita, perguntaram a Mário de Andrade, ó que é um conto? Mário respondeu: “Conto é tudo aquilo que chamamos de conto.”
Na certa, um dos corifeus do movimento porralouca da Sampa Desvairada queria pontificar sobre o primado da liberdade de criação, contra tudo que pudesse significar regra, norma, gramática, academicismo. Muito antes do surgimento da arte conceitual. O poetão modernoso de Andrade estava criando o conto conceitual. Mas não é assim. O buraco é bem mais embaixo.
O conto, concebido de maneira informal, é um gênero antiquíssimo.
Nas sociedades mais primitivas de coletores e caçadores, os homens reuniam-se à roda da fogueira para desfilar narrativas necessariamente curtas, porque muitos queriam narrar e todos tinham que ter vez. Na África, os griots saíam debulhando peripécias pelas aldeias. Na Grécia antiga, os aedos, os rapsodos, cantavam e contavam, como mais tarde os trovadores medievais. Eram narrativas curtas, conceito básico do conto, que, nesta forma concisa, objetiva e intensa começa a ser caracterizado com mais frequência a partir das Mil e uma Noites, rosário de histórias interminável em que Scherazade salva-se da degola a que eram condenadas as mulheres anteriores do sultão mantendo aceso o interesse do marido com suas primorosas narrativas.
Mas, afinal de contas, que diabo é um conto? Antes de tudo, um gênero que, se no passado tomou a forma de poema narrativo, passa a partir do Decamerão de Bocaccio e dos Canterbury Tales de Chaucer a fixar-se como prosa e se consolida em toda sua inteireza a partir de Edgar Allan Poe e Guy de Maupassant, criadores do conto ocidental clássico. Estes dois autores, principalmente, é que definem a fronteira entre um conto e uma história bem contada. Esta última limita-se a narrar um fato, um acontecimento sem nenhum compromisso além do espaço denotativo. Conta, reproduz, discorre e pronto. Já o conto cria um micro-cosmo de plurisignificações em que o menos importante é o plot, o enredo, a peripécia. O que interessa são as implicações humanas e a composição daquilo que chamarei a alma do texto. Importa não o quê contar, mas como contar , porque e para que.
Um conto é algo mais do que sua simples linguagem. De início se define estruturalmente como uma narrativa com princípio, meio e fim, conduzindo a uma surpresa no final . O hábil contista iludiria o leitor para pegá-lo com as calças na mão no fim. Nesse respeito, o escritor americano O. Henry é inimitável. Sua habilidade de tapear o leitor para surpreendê-lo no final é magnífica. A kick in the end . Mas este truque começa a se vulgarizar.
O conto moderno despreza princípio, meio e fim; despreza a pirueta da surpresa; mergulha na paisagem interior do personagem, cujo perfil psicológico supera a peripécia. Um conto passa a ser um flash, um instante de vida, um pulsar do personagem e o tempo interior prevalece sobre o cronológico. Não há mais a necessidade de fotografar exteriores mas de radiografar as personalidades.
A peripécia vira um personagem. O conto é um retrato da alma.

Foto: capa da reunião de contos O amor é um pássaro selvagem (Imago, 2000), de Ildásio Tavares.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O ENSAIO DA VIÚVA

Flamarion Silva

O marido morreu, graças a Deus. Fazia anos que ela estava só, tinha-o ao seu lado, é verdade, mas, acredite, jura por Deus, a separação de corpos vinha já há mais de dez anos. Muito tempo de seca, de calores insuportáveis, de ansiedade; vontade de sair correndo, de passear por algum lugar lindo que nunca conheceu; ir à praia... afogar-se... Por muito tempo suportou este estado e o marido, que, agora, louvado seja Deus, está junto do Pai, ou, então, jogado lá no último círculo. O cara era mau. Imagine você que, por diversas vezes, espalhou aos quatro ventos que havia... ah, feito coisas imorais com ela, coisas que se faz mas não se diz, um cretino!
Conheceu Januário no enterro. Não foi nada premeditado, ele chegou e disse que sentia muito. O Osvaldo era boa pessoa, e que bom amigo! disse com os olhos colados na boca de Dora. Todos da mesma laia, amigos de copo, ela pensou. Mas foi o hálito dele. Foi o hálito cheirando a cravo, bafejado na cara dela, o que a excitou. Nossa, mas deu um calor! Começou a passar mal. Deve ser por causa do Osvaldo, coitadinha, lamentou a irmã do peste morto. Mal sabia a cunhada que estava ali, em sua frente, o verdadeiro homem da vida de Dora.
Mas não pense que foi tudo assim tão rápido. Não foi não. Primeiro ele foi visitá-la, uma semana depois. Nesse meio tempo ela descobriu telefone; endereço; nome de mãe, ainda viva; o pai, morto faz tempo; se o signo dele, escorpião, combinava com o dela, libra; se era casado... repare como deu pulos de alegria, separado, se-pa-ra-do. Ai, graças a Deus, o vento sopra a meu favor, disse ela aspirando fundo. E, quando menos esperava, adivinhe quem bate à porta?
— Aqui mora Doralice dos S. de Jesus?
— Sim, sou eu.
O rapazinho que trazia as flores marcou um xis no livro e mandou assinar. No meio das flores um cartão.
“Dora, a vida é como estas flores: alegre e colorida, mas precisamos aproveitá-la enquanto houver viço, cor e perfume, pois um dia a vida, assim como as flores, murchará. Você tem viço, você tem cor, você tem perfume. Carpe diem! PS: meu telefone é 3324-..., me ligue. Do amigo de todas as horas, Januário.”
No mesmo dia falou com Januário pelo telefone. Mas, confessa, tremeu. Parecia uma mocinha na expectativa do primeiro beijo. Bem, é compreensível, dez anos não são dez dias, desaprende-se. Que nada! pensou, encorajando-se, deve ser que nem andar de bicicleta: a gente nunca esquece.
— Alô!
— Alô! respondeu uma voz de mulher.
— É da casa do Januário?
— Sim.
— Ele está?
— Quem quer falar?
— Uma amiga.
— Não, senhora, ele não está. Quer deixar recado?
— Não, muito obrigada, e desligou rápido. Diabo! Se não está em casa para que pergunta quem é?
Manhã e tarde pensando no Januário. Pensando em ligar de novo; em quem seria a mulher no telefone; em esquecê-lo; em... liga de uma vez.
— Alô! do outro lado voz de homem.
— Alô! Por favor, começou com uma voz educada e sexy que sabia fazer, o Januário se encontra?
— Ele.
— Oi, Januário, aqui é Dora, Doralice.
— Dora? Doralice? Ah! Oi, Dora. Poxa, mas que alegria falar com você. E aí, gostou das...?
— Adorei! São lindas!
— Não tão lindas quanto você, mas...
— Ah, deixa disso, está sendo delicado... e...
— ... ! ? : ... ... .
— ? ; ; ; ... : .
Essas coisas que todo casal de namorados conversa. Nesse mesmo dia, de noite, ele foi a sua casa. Ela, preocupada com a vizinhança. O que não dirá esse povo... O marido, morto fresquinho e a viúva já pegando fogo na cama com outro. Poxa, mas que droga! Não queria contar assim, dizendo logo que foram pra cama, mas você, leitor/leitora, querido/querida, há de compreender a aflição de uma mulher que... pelo amor de Deus, mais de dez anos na seca. Não resistiu ao cheiro da loção de barba, o cheiro de homem, o aroma de cravo na boca. Como dizem as mocinhas de hoje: gamou. Será que é assim que ainda falam? Bem, o fato é que não agüentou e deu logo. Mas não foi assim tão fácil, foi não. Mulher desacostumada em ver homem nu; pior, em ficar nua diante de homem, preocupada com o corpo que já não era o de nenhuma mocinha... afligiu-se.
— Ah, deixa disso! Vamos, por que a vergonha? Seu corpo é lindo. Estou doido para ver, ele disse com cara de safado. Ela sonhava com um homem que tivesse essa cara! Que aperta os olhos assim... que tem bigodinho... a cara tremendamente cínica e... Clarke Gable! Clarke Gable! Aquele ator que ela acha lindo de E o Vento Levou. Januário por um momento foi o Clarke Gable da vida dela e ela a Scarlett O’Hara da dele.
— Hum, doido mesmo, isso sim é o que você é, disse bem perto da boca dele, a voz sumida, fraquinha, rouquinha, os braços no pescoço dele; ele já com as duas mãos na bunda dela. Quanta carne! ele disse. Isto é o que se pode chamar de abundância. Veja como é safado!
— A luz, apagar, ela disse, compulsivamente nervosa.
— Olhe só para você, ele reparou, está roendo as unhas.
— Vou apagar a luz.
Apagou.
Acenda a luz, disse ela depois de tudo. Com a luz acesa foi descobrindo, aos poucos, seu corpo de sob o lençol. Jura, jura por Deus, essa foi sua maior ousadia: mostrar o corpo nu para um homem, quase um estranho, na cabeça um amante, esta foi a maior ousadia de sua vida. E já não estava mais temerosa, ansiosa ou nervosa. Não, estava séria, compenetrada. Alguma coisa mudou nela depois que mostrou o corpo nu para Januário. E isso ficou bem claro quando ela disse:
— Me chame de coisa ruim, me xingue, me esculhambe.
— Quê?! Ora, Dora, mas que doideira é essa?
— Quero que me chame de uma coisa.
— De que, minha florzinha?
— Não, florzinha não. Quero que me chame de puta.
— Ah, Dora, deixa disso, vai, ele deu pra trás.
— Faz coisa errada comigo, Januário, faz, pediu com lágrimas nos olhos.
— Não vou fazer isso, Dora, respeito você e...
— Então vai embora! Vai embora! Sai daqui! ela mandou, gritando.
Com cara de quem não entendeu nada, ele saiu. Durante muito tempo Dora ficou na cama se cobrindo e se descobrindo, lentamente.
O retrato de Osvaldo ainda está na parede. Dora perde horas olhando para ele. Dá voltas silenciosas pela sala, quer que ele veja como ela está, se bonita no vestido preto.
— Quer que me dispa? pergunta ao marido morto no retrato.

— Quer que me dispa?

— Quer que me dispa?



Flamarion Silva é autor dos contos de O rato do capitão, da Coleção Selo Letras da Bahia, 2006. Foto de Flamarion no dia do lançamento de seu livro. Peguei a foto no blog Da Arte dos Demônios.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A FALTA DE ASSUNTO


Gerana Damulakis


Muitas crônicas das boas começam comentando a total falta de assunto. Grande parte dos cronistas fizeram assim, desde Rubem Braga, ou Adroaldo Ribeiro Costa, até os cronistas mais atuais, como se, por este desabafo, a falta ficasse espantada ao ser comentada e, puf!, deixasse espaço para o texto fluir.

Quando eu não tenho assunto - e não sendo Braga, não sendo Adroaldo - é porque estou com medo. Fiz do meu passado uma eternidade e do meu futuro um medo enorme, disse-me um amigo. Creio que depois de uma perda, todo mundo fica assim. Não, não fica. E também não me interessa fazer uma comparação com outras pessoas. Não muda a estupidez do medo. Queria ser menos esnobe em se tratando de literatura (mas é a minha única vaidade, permita-me alguma, por Deus: eu, que diante de e vivendo entre escritores, me deparo com cada ego incrivelmente robusto) e, repito, às vezes (raramente mesmo, culpa do medo) penso que gostaria de ser mais maleável e gostaria de comprar um livro de Flávio Gikovate: quem sabe ele escreveu ali, naquele sobre a felicidade, alguma receita para espantar o demônio do medo. Não consigo perder tempo assim com tais leituras. Ele é tão inteligente, será que não sabe que receitas de felicidade não existem? Será que estou enganada e ele não passa receitas, tão somente tenta mostrar como se pode chegar devagar, de mansinho, e aplicar o golpe final na criatura do medo?

Quanta bobagem. Avisei que sou leitora. Vou ler uma escritora como Willa Cather, recomendada por Truman Capote no seu Música para camaleões (foi um livro encantador, porque além do estilo de Capote, que me arrebata, ele conta histórias, tais como a que leva à Wila Cather). Ah, vou contar um pouco: Capote estava perto de completar 19 anos, quando saiu de uma biblioteca, onde também estava uma mulher. Ambos encontraram-se fora, junto ao meio-fio. Começaram a conversar e ele disse que queria ser escritor e estava trabalhando num romance. Ela quis saber quais eram os escritores americanos que ele gostava. Como todo jovem, ele foi descartando como se dono da verdade fosse: "Não Hemingway (...) Nem Thomas Wolfe (...) Faulkner, às vezes (...) Fitzgerald, às vezes: O diamante do tamanho do Ritz, Suave é a noite. E gosto muito de Wila Cather. Já leu My mortal enemy?
Sem nenhuma expressão especial, ela disse: Na verdade, fui eu que escrevi".

Daí continua deliciosamente. Ponto altíssimo: a visão do escritor que conclui sobre a existência de uma diferença, "uma diferença entre escrever muito bem e a verdadeira arte; sutil, mas devastadora".

Foto: capa de Música para camaleões, Companhia das Letras, 2006.

terça-feira, 5 de maio de 2009

SONETO DE MAIO


Aramis Ribeiro Costa


Trazes as chuvas - maio - impiedosas
Como as lágrimas duras que trouxeste
Em ontem que a lembrança o crepe veste
Chuvas de noites ermas, tormentosas.

Tuas noites - espinhos sem as rosas
Noites partidas - dor maior que deste
Pranto que foi, ficou, e ainda reste
Das tuas noites mortas e chuvosas.

Mortas, mortais, imorredouras noites
As tuas - que magoam como açoites
Insidiosas noites como as urzes!

Enquanto atiras chuvas fortes, ventos
Na convulsão cruel dos elementos
Avivas - maio - em mim as tuas cruzes!



De Espelho Partido - Sonetos Escolhidos.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

CHUVA

Hélio Pólvora



À Gerana Damulakis


Esta chuva estava pra cair há muito tempo, me disse Edmo, que recebia no rosto as ferroadas dos primeiros pingos. Olhei: os campos cinzentos, crestados por um sol de meses, abriam agora os regos, as valas, os poros, ofereciam as intumescências e depressões ao contato germinador. Você viu as nuvens ?, me perguntou Edmo, olhos fixos na estrada. E ele mesmo lembrou que nuvens negras, pesadas e gordas, se amontoavam há três quinzenas; se despencassem agora, teríamos a enchente após a seca.
Os pingos engrossaram, semelhantes a cordas que pendessem frouxas de um teto escuro, e dançaram no asfalto, escorreram pelo pára-brisa com uma violência que os limpadores não conseguiam acompanhar. Edmo reduziu a marcha, curvou-se no volante em busca de melhor visibilidade. Um homem descalço, no acostamento, tangia porcos com uma vara. De vez em quando espetava um animal, que grunhia alto e fino.
Estamos perto, falou Edmo sem tirar os olhos da estrada. As pancadas de água no capô e nas laterais ressoavam com ruídos de tambor tenso. A paisagem em volta, atrás e à frente, mergulhava num palor opaco, translúcido, de fundo de oceano. Minha mãe mora aqui perto, na fazenda, me disse Edmo. E contou, durante dois quilômetros, que a mãe, separada do marido, quase não ia a Itabuna, nem pra fazer compras.
Diziam em Itabuna que a mãe de Edmo estava muito doente. Perguntei-lhe, por isso, se houvera melhoras. Edmo demorou a responder. Com as costas da mão limpou parte do vidro embaciado. Acho que ela tem doença ruim, me disse. Constrangido, eu não soube o que acrescentar, e Edmo contou sem pressa que a doença era no ventre. E o que ela faz na fazenda, longe de médicos, longe de socorro urgente?, eu indaguei. Edmo não respondeu. Imaginei então que a mãe dele passava os dias, quem sabe ?, deitada em espreguiçadeiras, ouvindo pios de passarinhos que, de tão agudos, pareciam rasgar-lhe a carne velha. Se arrastava pela casa, gemendo, apoiando-se em portais. Andava um pouco pelo batedor, descalça, sentindo a cócega áspera da grama nos pés. Deixava o tempo correr, deixava a noite chegar, outro dia nascer. Seria mesmo assim?
Agora vamos entrar no ramal, disse Edmo. Uma visita rápida, só pra você conhecer a fazenda. Perto da cidade, não é? Um pulo. De repente Edmo ficara mais alegre, mais comunicativo. Pelo menos foi o que senti na sua voz, na maneira como os olhos se iluminaram na minha direção. Ela tem que idade?, perguntei pra sustentar a conversa. Edmo engrenou uma segunda e entrou no ramal já cheio de poças de água que o automóvel ia varrendo, transformando em vagas. Os cacaueiros desfilavam pastosos na cortina pesada da chuva. O campo raso fremia, encharcado até o fundo, e a tarde já estava crepuscular.
Você é o filho mais velho, eu lhe disse, assim como quem confirma o que pergunta. Sou o primeiro de uma enfiada, ele respondeu. O carro seguia aos solavancos pela estrada estreita de terra batida. Cinco, seis? Eram doze ao todo. Doze? Imaginei então a mãe de Edmo: velha, alquebrada, roída pela doença e abalada por doze gestações e doze partos, sem contar possíveis abortos. Trôpega, um mulambo de mulher. Não há quem tenha doze filhos sem pagar um preço à beleza do corpo e à bem-aventurança do espírito. Mas Edmo, como se adivinhando o rumo dos meus pensamentos, disse que nem todos eram irmãos verdadeiros.
Seu pai casou outra vez ?
Ele negou com um gesto da cabeça. Somos cinco do primeiro casamento. E sublinhou a palavra casamento pra que eu entendesse que um segundo, um terceiro e quem sabe um quarto significavam uniões ligeiras, mancebias. Os outros irmãos, ele acrescentou, meu pai teve por aí, na rua. E disse isso com aquela indiferença de quem vê muitos bois na pastagem, ou infindáveis cacaueiros passarem iguais e monótonos, cacau e bois que não lhe pertencem. Todos vivos, Edmo? Todos. E eu pensei de imediato que a fazenda seria retalhada, pulverizada. Assim se desfazem fortunas construídas pelos patriarcas bíblicos do cacau. Os patriarcas semeiam em camas diversas os germes da dissolução de seus pequenos impérios de avareza e repressão. São fáceis de domar, esses velhos senhores nos seus afãs de posse e domínio...
Edmo parecia triste. Pensaria acaso na herança esbagaçada pelo pai? Morta a mãe, morto o pai, dividida aquela terra e aquelas árvores, o que restaria a cada um que desse pra viver? O carro galgava uma ladeira, fustigado nas vidraças pelos ramos molhados que a inquieta cortina de chuva fazia pender no ramal. A água se misturava ao barro, se amarelava em poças onde a chuva cravava sem cessar as pontas aguçadas dos seus chuços. Meu pai... disse Edmo — e não completou a frase. Chegamos a uma cancela. Deixe que eu mesmo abro, ele pediu. Parou o carro, entrou na chuva e escancarou a cancela, que ficou aberta como ferida recente na carne alvacenta da tarde.
O carro subiu por uma aléia calcetada até um galpão sem porta. Paramos. Em cima, a chuva batia no zinco. Quando vivia aqui, o velho mandou construir este tanque enorme pra aparar água da chuva, Edmo disse sem largar o volante. Ouvimos o estrondo da chuva na bica, o rumorejo asfixiado da água descendo revolta pelas canaletas, entrando espremida no tanque. Edmo riu. Você gosta de chuva, eu disse. Gosta do velho seu pai?
Edmo correu até a varanda da casa. Venha, convidou de lá, sapateando pra se livrar da água na bainha das calças. Pelas goteiras da varanda a chuva caía em madeixas lisas no chão de lajota. Em frente abria-se o campo, envolto naquele lençol encardido que a tarde escurecida ia transformando em crepe negro. A pouca distância vi uma represa, depois um rosto de mulher.
É a minha mãe, disse Edmo.
A mulher estava sentada à porta de um pequeno galpão, a uns cinqüenta metros da sede. Rosto parado, inexpressivo, quase desatento. Ela está nos vendo, pensei. Sim, ela nos viu chegar. Ouviu o bater da cancela, o motor do carro subindo a rampa, o sapateado na varanda. Quem será que meu filho trouxe com esta chuva?, há de se ter perguntado. E espera, quieta lá no galpão. Ela espera, sim. E vê o filho. E não diz "Olá, Edmo". Não diz: "Esperem a chuva passar. Vou coar café agora mesmo... Ou preferem beber conhaque ?"
Se a mulher não movesse de vez em quando a cabeça, e abrisse os braços sobre o parapeito, como se fossem asas molhadas, eu diria que não era uma pessoa viva. Eu diria um retrato na parede, esmaecido pelo tempo e, de longe, pela chuva. Aqueles galpões, disse Edmo. O quê? Eu fiz e ela desmanchou e refez tudo errado. Por quê? Ele me garantiu que a mãe era pessoa teimosa, opiniática, que havia desmanchado os galpões de criar aves só pra não receber orientação dele, o filho mais velho. Só por isso? Apenas por isso? Perdi meu tempo, perdi meu dinheiro, disse Edmo. Dinheiro que eu havia juntado e que poderia aplicar na poupança.
A mulher nos olhava. Entrei na casa à procura do banheiro. Vi uma mesa redonda com toalha de renda, uma cristaleira com frascos de licor e conhaques, restos de comida num prato. Ninguém dentro de casa. Vi a chuva descendo pelas bicas que regurgitavam como gargantas estreitas de emas ou avestruzes. Quer um conhaque?, perguntou Edmo. Não, obrigado. Voltamos à varanda. O campo começava a mostrar os espelhos de águas acumuladas nos baixios junto à cerca. Longe, a silhueta dos cacauais cor de sépia. O nível da represa subia, perto do galpão, perto da mulher. Bois e cavalos se aconchegavam debaixo de velha mangueira. Voltei os olhos pra mulher, que defronte de nós, no galpão, continuava quieta, sem menção de se erguer, de dizer bem-vindos sejam. Sequer levantou a mão num aceno. Estaria dopada? Apenas olhava, como olham os tigres, calmos e pestanejando a intervalos. Ela e o galpão, mais o campo encharcado, formavam uma estampa, uma gravura antiga. E nós os expectadores. Ou não seríamos nós que, sem traje de caça e sem galgos, entramos de repente no seu campo visual e formamos então aquela imagem, aquele quadro que ninguém compraria, decerto por falta de raposas, cavalheiros galanteadores e damas de ombros nus?
A chuva está passando, me disse Edmo. Vamos embora? Sim, eu queria ir. Ela está mesmo muito doente, Edmo? Não sei direito. Não tenho vindo aqui. O médico quis operar um ano atrás, ela não deixou. Medo? Mas Edmo, não seria... Me calei. Edmo não foi adiante. Olhamos uma vez mais a velha imóvel no galpão, com os braços abertos como asas postas a secar, e Edmo soltou uma risada. Me lembrei agora do que meu pai fez com o minador, ele falou. E contou com um certo prazer que o pai, no auge de uma seca histórica, mandara cavar na pastagem em busca de água. Quando a água minou, ele tapou a nascente, de modo a que brotasse apenas um mísero filete — o suficiente para as necessidades de água da fazenda. Não queria dividir água com os vizinhos. Edmo riu outra vez. Partimos sem olhar mais pra mulher, que sem dúvida continuava a olhar na mesma direção até ver o carro chegar à cancela aberta e entrar no ramal. E até ver que um empregado se aproximava, a pé, nas suas negras botas de borracha, pra fechar a cancela com um baque que a chuva, agora menos forte, havia abafado.
A chuva escorria, mansa, dos ventres dilacerados de nuvens. Ramos batiam, rangiam, gemiam. Talvez por isso eu ouvi, ou julguei ouvir?, um grito lancinante, talvez de porco espancado ou sangrado, seguido de um baque -- talvez de um corpo que se precipitara na represa.



(Do livro O Rei dos Surubins, 2000)

AO VENCEDOR, AS BATATAS

Gerana Damulakis


Na sua coluna de 22 de abril da revista Veja, Diogo Mainardi lembrava Quincas Borba e seu cachorro Quincas Borba. Tudo porque Barack Obama deu o nome Bo para seu cachorro (iniciais de seu nome, claro está!). Porém, o mais importante que encontrei no texto de DM foi a colocação que ele fez a respeito da "implacabilidade do pensamento de Machado de Assis", que “está claramente refletida na trama do romance Quincas Borba, em que os bandoleiros conseguem pilhar todas as batatas e os tontos morrem na miséria”.
Devo admitir que é inquestionável tal juízo de valor no que toca a Machado. Diogo diz que o autor trata o personagem Quincas Borba como um demente, embora a filosofia criada por Borba, o Humanitismo, pareça “condensar e caricaturar as idéias do próprio Machado de Assis, com aquele seu realismo reacionário, com aquela sua crueza fatalista, com aquele seu conformismo desiludido, com aquele seu azedume zombeteiro”. Não chegarei a reproduzir a coluna, mas confesso que preciso me conter para não fazer isto porque sinto falta do Diogo Mainardi dos tempos das resenhas literárias, seja por suas sacadas, seja pela irreverência que, também ali, ele colocava. Voltando ao romance do Bruxo do Cosme Velho: o trecho que atesta o “caráter benéfico da guerra” terá que ser inevitavelmente reproduzido. Nunca é muito reler o mestre da literatura brasileira; afinal, Machado é Machado.
O famoso trecho, então. Quincas: “Supões tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas... Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
O grande ensaísta Roberto Schwarz, intitulou um dos seus livros, Ao vencedor as batatas. Na verdade, a metade, como ele diz, de um estudo sobre Machado de Assis. Título perfeito (a leitura, imperdível). Trago tudo isto aqui para concluir o quanto da literatura está na linguagem do cotidiano, como: “A mão que afaga é a mesma que apedreja”, de Augusto dos Anjos, verso usado para expressar o espanto com a atitude de alguém que já nos acarinhou um dia; “E agora, José?”, de Carlos Drummond de Andrade, diante da falta de opção, após a estupefação; “ Vou-me embora p’ra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, quando queremos deixar tudo e partir para bem longe; “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, de Fernando Pessoa e outros tantos exemplos.
Finalizo com versos de Drummond que invariavelmente digo: “Como viver o mundo/ Em termos de esperança?/ E que palavra é essa/ Que a vida não alcança?”. Competindo sempre nos meus pensamentos, finalizo também com os versos de Bandeira: “A vida que poderia ter sido e que não foi”, ou “ Este anseio infinito e vão/ De possuir o que me possui”. Não sei de qual dos dois poetas guardo mais versos, fazendo ecos dentro de mim. Quem ganha? “Ao vencedor, as batatas”.


Foto: Bandeira e Drummond.
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