sábado, 12 de dezembro de 2009

DEZEMBRO: CLARICE E MANOEL













Gerana Damulakis

Nos anos 80, Millôr Fernandes começou a mostrar ao público, em suas colunas nas revistas Veja e Isto é e no Jornal do Brasil, a poesia de Manoel de Barros. Outros fizeram o mesmo: Fausto Wolff, Antônio Houaiss, entre eles. Os intelectuais iniciaram, através de tanta recomendação, o reconhecimento dos poemas que a Civilização Brasileira publicou, em quase a sua totalidade, sob o título de Gramática expositiva do chão, em 1990. Daí em diante Manoel de Barros seguiu encantando.

Com pelo menos 30 livros publicados, desde 1937, e muito aclamado pela crítica, vencedor de, no mínimo, 10 prêmios literários, certamente o autor da Gramática... entrou na história da poesia nacional ocupando um lugar semelhante ao que ocupa Clarice Lispector na prosa brasileira, seja pelo que há de comum entre os dois escritores, nas suas lutas com as palavras para que digam além do que elas podem, seja pela proposta movida por uma intensa insatisfação quanto à ordem natural das coisas.

Atentando para frases do tipo: “Eu escrevo com o corpo/ Poesia não é para compreender, mas para incorporar”, em Arranjos para assobio, ou para a pequena estrofe: “Caracol é uma casa que se anda/ E a lesma é um ser que se reside”, do Retrato..., tem-se, de saída, a originalidade pela qual o vate do Pantanal seduziu seus aficionados. Os temas são a infância, a natureza e o Pantanal, registrados no universo verbal que lhes confere sentidos diversos, sentidos oníricos, por vezes fantásticos.

Repito: o que fez Clarice Lispector (10 de dezembro de1920 - 9 de dezembro de1977) com palavra na prosa parece ser o que faz Manoel de Barros (19 de dezembro de 1916- ) com a poesia. Estilo feito de invenções e de achados, substantivos são adjetivados, adjetivos e verbos são substantivados, violenta-se a regência verbal e neologismos ornamentam os versos, ou melhor, as frases. Como saber qual dos dois escritores disse:

Ri de novo, em leves murmúrios como os da água
e estupefato como uma parede branca ao luar.

Ambas são frases de Clarice Lispector.

É preciso ir mais adiante um pouco para constatar o paralelo:

O silêncio piscava nos vaga-lumes (...) os vaga-lumes abriam pontos lívidos na penumbra.

Mais uma vez, Clarice Lispector. Estou certa de que houve quem pensasse que esta última frase era de Manoel.

Agora estas frases:
Os silêncios me praticam (...) Sou livre para o desfrute das aves (...) Quero cristianizar as águas, e mais estas: Só não desejo cair em sensatez./ Não quero a boa razão das coisas./ Quero o feitiço das palavras. De Manoel de Barros, do Retrato do artista quando coisa (Record, 1998).

O estilo de achados - flagrantes poéticos e iluminações - acaba comovendo mais ainda quando presente no gênero que lhe fica melhor, que é a poesia. Primeiramente é encantador, mas o risco é o de que possa descair em verbalismo, do que, vale ressaltar, Lispector livrou-se justamente devido ao gênero por ela praticado.

Uma outra pedra de toque da poesia de Manoel é o efeito da frase. Muitos, os que torcem o nariz para sua obra, rotulam-no de mero “frasista”. Pode-se dizer e classificar o poeta de vários modos, até de ecologista da palavra, mas é certo que ele chegou num momento do século passado que parecia totalmente sem perspectivas de algo diferente daquele “grafismo”, já tão longa e fartamente em moda, e deslumbrou.