domingo, 30 de março de 2008

ESPAÇO PARA O SILÊNCIO



Gláucia Lemos



Está faltando um espaço em minha vida. Um espaço para ser habitado pelo silêncio, pela absoluta ausência de vozes, de sons, de apelos, de chamadas telefônicas, de campainhas da porta, de toques de interfone, de pedidos e cobranças, de repetidos “com licença, o que faço para o almoço?” São tantos os sons que invadem o meu direito de ser inteira, e usurpam o domínio das horas que eu preciso dizer minhas. Rapidamente, todas as horas -frações das 24 entre um e outro nascer de sol – se atropelam e desmoronam, devoradas pela fome existencial daqueles apelos, e o que sobra para uma mulher que necessita desesperadamente de ser ela própria, soberana no seu querer, é o momento em que as pernas cansaram, a mente gritou “chega por hoje!” e as pálpebras começaram a pesar como grossos cobertores, por cima dos olhos que já estão a misturar letras e palavras e frases e os sentidos do que foi composto por Dostoiévski, ou Clarice, ou Saramago ou o que for no momento. Sobra a essa mulher somente o sono.
Para que preciso de um espaço a mais, se no que tenho já atendo e satisfaço bem ou mal a todos aqueles apelos e cobranças dos quais me canso, e que perfazem o cotidiano normal de imensurável contingente de mulheres? – perguntarão os juizes embaixo de suas togas doutorais. Ah! Eles não sabem, nem imaginam, o quanto se tem a viver em um espaço de silêncio no qual, enquanto o corpo sossega, se catuca a alma para despertar, a vê-la festejar o exercício do sonho. Da fantasia que nos alimenta ao tanger o encantamento pulsante na palavra, e então, só então, nos sentirmos vivos, abastecidos e fortes, guiados pela redentora fuga ao massacre prosaico do cotidiano. Eles não sabem, Só o entendem os irmãos de sonho.
Está faltando o espaço em que eu possa ir apanhar o Sol, para fazer engalanar-se o dia do meu mundo interior, só meu, para viver sem, como agora, me aborrecer com meus olhos fechando de sono – único que me está sobrando a cada dia.




Gláucia Lemos é ficcionista e poeta, tem mais de 20 títulos publicados e muitos prêmios conquistados.

domingo, 23 de março de 2008

POR UM PÉ DE FEIJÃO



Antônio Torres




Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.
Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.
Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?
E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.
No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.
Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.
E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:
- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?
E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.
À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.
Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.
- Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.
E disse mais:
- Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou.
Então eu pensei: O velho está certo.
Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.







Antônio Torres nasceu no dia 13 de setembro de 1940 num lugarejo chamado Junco (hoje município de Sátiro Dias), na Bahia. Aos 20 anos, em São Paulo, foi chefe de reportagem de esportes do jornal "Última Hora". Redator de publicidade desde 1963, trabalhou em algumas das principais agências do País, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sua estréia literária se deu com o romance "Um Cão Uivando nas Trevas", publicado em 1972. Em seguida, viria a publicar mais quatro romances: "Os Homens dos Pés Redondos" (1973), "Essa Terra" (1976), "Carta ao Bispo" (1979), "Adeus, Velho" (1981), "Um Táxi para Viena D´Áustria" (1991), "Balada da Infância Perdida" (1996), "O Cachorro e o Lobo" (1997) e "Meu Querido Canibal" (2000), entre outros. Pelo conjunto de sua obra, foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 2000.Embora se considere essencialmente um romancista, Antônio Torres tem alguns contos, que publicou em livros e antologias, no Brasil e no Exterior.

Publicado originalmente em "Meninos, Eu Conto", Editora Record - Rio/São Paulo, 1999, o texto acima foi selecionado por Ítalo Moriconi e consta do livro "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 586.

ESPERANDO NO OLIMPO

Gerana Damulakis


Agora é um jardim
de rosa e jasmim.
Outrora foi a pedra
sem valor a guerra medra.
Outrora foi a tramóia,
a conquista, a vitória em Tróia.
O vento é o mesmo grego
passa como apagador
em quadro-negro.
Mas se ele dobrar a esquina
e voltar com o ontem,
quem sabe traga os deuses
e eles me contem.


Do livro Guardador de Mitos.

quinta-feira, 13 de março de 2008

NO TEMPO DOS FRUTOS



Gláucia Lemos




Março é fim de verão e começo de outono. Justamente no dia do equinócio ele chegou.
A janela abria-se para a varanda. Além da varanda havia o muro. No muro, o portão fechado. Além do portão, o passeio. Da janela, eu o vi chegar. No meio-fio, parou.
Muitas fronteiras havia entre os dois, a janela, a varanda, o muro, o trinco do portão. Não sei se ele as notou, mas eu, sim, não poderia ignorá-las. As fronteiras eram minhas.
Escancarei a janela e não fiz mais um gesto, ao perceber que chegava. Não sei o motivo, mas adivinhei que era ele.

No último dia do verão que é também o início do outono, estou muito complexa. Ainda é verão com todo brilho incandescente do sol e todo calor, vapores e suores, e, no entanto, já é outono, com todos os meus frutos carecendo cuidados. Ainda estou tomada dos ardores e quero, mais que tudo, vivê-los. Pois não é no verão que as mulheres se tornam Damas de Paus? Ainda com a floresta em chamas, e já conhecendo o apelo dos frutos. Intermediária, ora transportada, ora ocupada em abafar fogueiras. Meio-rainha, meio-plebéia, metade direitos, metade deveres, reivindico em mudez o atendimento a meus incêndios, mas devo doar-me inteira a meus frutos.
O vivenciar da repressão no verão, encaminhou-me à necessária decisão de despir a fantasia. Ah! Meus demônios convenceram-me de que toda rainha veste fantasia. Os resquícios, porém, são seqüelas, por isso não conseguia tornar-me plebéia e não sabia por onde começar a rasgá-la Isso eles não me ensinaram. Assim, me guardava e me escondia, semi-despida ante o apelo da estação que me instigava. Conservo o que remanesce da fantasia e me cubro em pudores. Eis porque no derradeiro dia do verão ainda não conseguia desligar-me para inaugurar o outono tranqüila e amadurecida, como necessário para a guarda dos frutos, bem investida no encargo. Só que não estava preparada.
Esse era o conflito quando ele chegou. Abri inteiramente a janela. Vi-o estacionar no meio-fio da calçada. Não deu um passo aquém do meio-fio.

Senhor, é o primeiro equinócio, deverei perguntar-lhe o que deseja? Que quer de mim, agora? Porque hoje? E porque não apertou a campainha para que o olho-mágico me revelasse a sua figura tardia? Ah, senhor, por quê? Eu nunca lhe abriria a janela como agora. Hoje é o dia de começar a encapotar os meus frutos. Começa o outono, não sabia? Não posso sequer vê-lo. Porque veio, senhor, após tanto tempo de espera? Porque se fazer concreto após tanto tempo de sonho? Porquê? Vê-lo exatamente agora, é como o resgate da esperança, aquela mesma esperança vesga que sempre se enganou ao vir a meu encontro. No entanto, senhor, isso hoje me faz odiá-lo, sem que lhe caiba culpa. Mas, por acaso ignora a verdade dos meus frutos? Enlouqueço porque veio, senhor, e enlouqueço por eles que não sei deixá-los. Careço de lucidez como nunca, em tamanha divisão. Madrasta lucidez que por certo me avassalará.

No entanto, nada lhe pergunto, nada lhe falo. Vejo sua figura elegante, seu porte esbelto e os traços finos no rosto contido. Tem algo de nobre, justo no perfil dos nobres despidos de arrogância. As roupas empoeiradas de quem teria viajado longamente – pelo tempo? pela história? pelo sonho? – pareciam impróprias a seu porte altivo e seu rosto delgado e seu olhar aberto como um lago. Algo de nuvem esvoaçava em sua fronte. Anjo, ou cavalheiro de miragem.
Acho que o conheço sem jamais tê-lo visto . Descanso meus olhos nos seus sem completar o gesto de debruçar-me à janela. Vejo-o interromper-se também, sem concluir o passo que subiria o passeio. É um nobre, não se permite os ímpetos do populacho. Seu olhar parece calmo, mas sinto que não está pleno de paz. Talvez seja mais triste que tranqüilo, e adivinho que traz a sua solidão para juntá-la à minha.
É o meu cavalheiro da cerração que me buscou decerto nas areias atlânticas das praias longínquas, aonde jamais fui, e que andou pelos ângulos do mundo à minha procura, e que enfim me encontra em um final de estação, num limiar das febres. Sei que é ele. Veio no rastro daquela que se atrasou para o encontro marcado pro verão, em algum tempo que não sei precisar. Chegava fatigado, marcado de estradas, no pó dos cabelos trazendo fios das estrelas. Cumpria a história e chegava porque tinha que vir salvar sua dama prometida. Onde o cavalo? Onde o veleiro? Que importa...? ele veio.
Olhei-o transportada pela perplexidade de quem não acreditava que ainda viesse. Olhei-o em transporte miraculoso porque o reconhecia. E assim ele me olhou ansioso porque me encontrava. Não trazia séquito de escravos nem arcas de tesouros. Não o seguiam os dezesseis peões guardas de rei de xadrez, nem mirra, nem ouro, nem incenso do oriente. Suas mãos abrigavam não mais que uma ave pequenina que ergueu ante os meus olhos e deixou que voasse.
Eu a vi traçar um círculo perfeito no espaço, livre, e depois, dirigir-se à minha janela e repousar suave, nas conchas das minhas mãos. Começou a cantar. E a solidão da minha sala vestiu-se de alegria.
Por um momento, caminhei até a porta, abri-a, para fazer que penetrasse no mais perto de mim. Afinal, acreditava não ser mais rainha. Meus nobres e minhas aias tinham me abandonado, desde que lhes confessei que desistira de ser Rainha de Copas, e que o Rei de Ouros e de granito, eu o deixara ficar na arrogância do seu trono de pedra. Todos me condenavam porque destravara as cordas vocais para gemer as dores dos calos dos meus pés. Rainhas não gemem nunca. Não lhes é próprio. Eu já podia, pois, abrir a minha casa a meu cavalheiro que trouxera o canto de uma ave para apagar a minha solidão.
Quando descerrei a porta, ele subiu ao passeio e avançou até o portão do muro. Desci a soleira e pisei o chão da varanda para ir a seu encontro. Ele abriu o portão e começou a entrar para vir ter comigo. Por um segundo, os nossos olhos se conheceram e ele sorriu em sol que se derramou por toda a rua e incomodou os meus olhos. Sabia ser aquele o momento da minha salvação. Era aquele o momento, não outro, eu o sabia. Novamente parei, envolvida pelo canto da ave, cada vez mais penetrante e irresistível. E ele então, parou também, esperando o meu gesto. O meu gesto... que eu não fiz.
Não entendo por que, lembrei-me de que já chegara outono e eu tinha que abrigar os meus frutos desde o dia do equinócio. Era outono e eu tinha frutos a cuidar. Quando ele me estendeu a mão em convite, fui ficando indecisa, f u i f i c a n d o i n d e c i s a, e me voltei depressa, e retornei a correr para dentro da casa.
Levei as mãos à cabeça em desespero e rasguei minhas vestes e corri a abrigar com os trapos os meus sempre verdes frutos.
Então, só então, chorei. Eu que antes jamais me permitira o privilégio de chorar. Precisei enfim chorar.
Quando ergui a cabeça das mãos encharcadas, feridas da acidez de um pranto corrosivo, a ave tinha emudecido, e percebi que também ele tinha ido embora. Era sutil bastante para entender o impossível.
Pé ante pé, como em vias de um crime, pisando leve no alagado do meu piso, espiei pela janela. Lá fora, a rua era deserta. E nunca mais passou ninguém. Nem gente, nem ave, nem carro, nem barco, nem cavalo, nem inseto. Nem um riso, nem um canto, nem um choro.






Gláucia Lemos é ficcionista premiada e tem mais de 20 títulos. Este conto dá título ao volume de inéditos.