terça-feira, 8 de abril de 2008

A FLORESTA

Gerana Damulakis


Quando a ânsia surge
e a alma derrete feito gelo,
chegam juntos mundos de medos,
de fraquezas,
de incertezas,
de perguntas.
Quando a espera já não se aguenta,
se olha o tempo, passando sem passar,
se deseja sem esperanças,
se cria relógios imaginários,
então nada resolve
para amenizar, ou para fingir
que tudo acabou.



De Guardador de mitos (Edição do Autor, 1993).

UMA OBSERVAÇÃO

Gerana Damulakis


As nuvens cobriram o azul do céu,
a plena tarde ficou parecendo um
começo de noite.
Cairá uma bela tempestade.
O barulho das gotas grossas de chuva
abafará o som do tráfego,
diminuirá o tom estridente da sua voz,
irá enternecer o sentimento do mundo.
Virá uma tristeza pura
e muda.



De Guardador de mitos (Edição do autor, 1993).

POEMA DO MÊS

VIAGEM

Ana Cecília de Sousa Bastos


Ela registrou seus sonhos no caderno que lhe dei
de presente.
Ela arrumou na mala pedaços de sua alma.
Suas veias abertas sangram em despedida.
Ela diz adeus para lugar nenhum e parte,
sem quandos nem ondes.
Fantasmas melancólicos dormem em sua cama
solitária.

A lágrima sobre a mesa.



Ana Cecília de Sousa Bastos é autora de A Impossível Transcrição - De tudo fica a poesia (Salvador, 2007).

AUTOMN'S LEAVES & GAIVOTAS



Gláucia Lemos


A senhora grisalha recostou a cabeça na almofada do espaldar e se entregou à contemplação da dança das gaivotas. Uma coreografia contínua, sem jamais se repetir. Sempre amara as gaivotas. Nas excursões costumeiras eram elas o seu espetáculo preferido. O marido não saira naquela manhã. Andava indisposto. Seria um mal-estar passageiro, era melhor que ficasse lendo no camarote. Ele não gostava de excursionar, acompanhava-a para ser gentil, preferia uma rede na varanda com um livro policial diante dos olhos. No mar, qualquer motivo servia para permanecer lendo, recolhido, não deveria aborrecê-lo. Ficaria em companhia das gaivotas. Era gostoso o silêncio do convés. Só o ruído das ondas e agora a música de algum rádio, a pouco volume, iniciando os compassos de Automn`s leaves. Fazia tempos não escutava aquela melodia. Lembrava uma excursão, há quantos anos? Trinta? Era solteira ainda. Dançava nas festinhas a bordo. O rosto iluminou-se. As ruguinhas dos cantos dos olhos como que desapareceram, a pele como que se aveludou novamente. A brisa agitou-lhe os fios grisalhos, desfazendo o penteado simples, de cabelos aparados.
Dançara Automn`s leaves noite adentro e depois fora para o convés com o rapaz, aproveitar a lua cheia. Era um rapaz moreno de olhos azuis, tão azuis! Namoraram durante toda a excursão e, encantados, olhavam juntos as gaivotas. Onde andaria agora aquele moço, tão docemente recordado trinta anos depois?
Aquela senhora, parecia já tê-la visto em algum lugar. O sorriso. Era o sorriso, era o jeito de postar-se no convés olhando as gaivotas. Lembrava alguém. Seria possível? Os cabelos grisalhos curtinhos... Ela possuía uma bela cabeleira castanha caída sobre os ombros. Bobagem, seria a sugestão da manhã amena, do vôo das gaivotas, daquela música, no ar. Aquela música... Não, não parecia exatamente com ela, apenas fazia-o lembrá-la. Estava ficando um sentimental com o passar dos anos. Claro. Boas lembranças não precisam ser esquecidas. Para que as vivemos senão para podermos recordá--las? Era uma moça alta, esbelta, aquela parece um pouco menor, e os olhos, os dela eram maiores. Mas o sorriso e o jeito de postar-se no convés. Coincidência. Apenas coincidência.
- Bom dia, senhora. Gosta de olhar as gaivotas?
- São lindas.
- São mesmo. Também perco horas acompanhando seus passeios pelo céu.
- Eu acho que ganho horas olhando para elas. Ganho também em recordações enquanto as contemplo.
- Como eu.
Os olhos azuis e os olhos castanhos encontraram-se e riram ao mesmo tempo demoradamente, tão demoradamente.
- O barco está atracando. Foi um prazer conhecê-la, senhora. Recomende-me a seu marido.
- Também tive prazer em conhecê-lo senhor.
O senhor moreno avançou pelo cais, lentamente. Nos olhos azuis luzia um sorriso de jovem. A senhora grisalha aconchegou o cachecol ao pescoço do marido, apoiou-se em seu braço e começou a caminhar com ele. Sorria, um sorriso de trinta anos atrás.






Gláucia Lemos é ficcionista e poeta. Esta crônica foi publicada na coluna Ultraleve, de A TARDE, há dez anos. A foto das gaivotas é de Matheusgf, retirada do Flickr.

AS CEM MELHORES CRÔNICAS BRASILEIRAS


Goulart Gomes

O livro AS CEM MELHORES CRÔNICAS BRASILEIRAS (Ed. Objetiva), organizado por Joaquim Ferreira dos Santos, merece uma crônica. Poucas são as coletâneas organizadas nos últimos anos que reuniram uma amostra tão bem selecionada quanto esta obra. Classificada cronologicamente, por décadas, o organizador teve o cuidado de escolher trabalhos muito representativos de cada período, numa precisa e deliciosa mostra do que de melhor já se escreveu nesse gênero, no país.

Um gênero que, aliás, já traz em si mesmo um desafio. É que algumas crônicas são evidentes, não deixam a menor dúvida quanto ao seu “caráter”. Mas outras são de difícil classificação, espreitando os limites do conto, das quais são primas. Esse é o caso de alguns textos inseridos na obra: “Os dois bonitos e os dois feios”, de Rachel de Queiroz; “O inferninho e o Gervásio”, de Stanislaw Ponte Preta; “Viúva inconsolável”, de Nelson Rodrigues e “Uma boneca ao relento”, de Ivan Lessa. Mas isso não tira o valor da antologia, ao contrário, enriquece-a e provoca a discussão, para quem gosta de uma boa briga.

A leitura das mais de 300 páginas é só prazer, desde “O nascimento da crônica”, de Machado de Assis até a sensacional “Bar ruim é lindo, bicho”, de Antonio Prata, passando por João do Rio, Lima Barreto, José de Alencar, Rubem Braga, Vinicius, Oswald e Mário, Graciliano, Paulo Mendes Campos, Drummond, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Millôr, Clarice, João Ubaldo, Cony, Ferreira Gullar, Jabor e tantos outros craques da nossa literatura. Confesso que comprei o livro meio desconfiado, ainda “escaldado” pela série “Para Gostar de Ler”, que era “obrigado” a ler na juventude e me deixou alguns traumas. Mas, feridas cicatrizaram: fui resgatado por essa bela obra.

Rachel de Queiroz, em “Talvez o último desejo”, desabafa por todos nós, premidos entre o beijo e o escarro, entre mandar tudo para o inferno e cair de joelhos ante o humano. Em “A Sra. Stevens”, Mário de Andrade nos apresenta uma das suas mais patéticas personagens. Humberto de Campos destrói toda a bucólica ilusão dos casamentos de contos de fadas em “A mosca azul”. Mas, ao contrário, Rubem Braga realiza o sonho de todos os apaixonados em “Os Amantes”. Nelson Rodrigues mais uma vez devassa a alma do brasileiro em “Complexo de vira-latas”. O inimitável Campos de Carvalho retrata toda a desolação de um estrangeiro em “Londres, novembro de 1972” . João Ubaldo faz o desabafo que todo escritor que já viveu situação semelhante gostaria de fazer em “Dialogando com o público leitor” e Arnaldo Jabor faz um terno e cômico relato pessoal em “Meu avô foi um belo retrato do malandro carioca”. Isso só para falar de alguns, não necessariamente os melhores, mas aqueles que mais me encantaram.

Além de extinguir o pouco que me restava de antipatia a crônicas e a seleções de “melhores”, a leitura de AS CEM MELHORES CRÔNICAS BRASILEIRAS me proporcionou horas de verdadeiro prazer, viajando na criatividade e talento dos nossos verdadeiros “heróis”.





Goulart Gomes é autor, dentre outros, de Minimal (Copygraf Editora, 2007).------------------------------------------------Visite: http://www.movimentopoetrix.comhttp://www.goulartgomes.com