domingo, 21 de fevereiro de 2010

A MALETA DO MEU PAI

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Mas a minha história tem uma simetria que naquele dia me lembrou imediatamente outra coisa, e me provocou um sentimento de culpa ainda mais profundo. Vinte e três anos antes do dia em que meu pai me deixou sua maleta, e quatro anos depois que decidi, aos 23 anos, me tornar romancista e, abandonando todo o resto, me recolhi, acabei o meu primeiro romance, Cevdet Bey e Filhos; com as mãos trêmulas, entreguei ao meu pai os originais datilografados do livro ainda inédito, para que ele pudesse lê-lo e me dizer o que achava. E não só porque eu confiasse no seu gosto e no seu intelcto: a sua opinião era muito importante para mim porque ele, diferentemente da minha mãe, nunca se opusera ao meu desejo de me tornar escritor. Àquela altura, meu pai não estava conosco, estava muito distante. Esperei pacientemente pela sua volta. Quando ele chegou, duas semanas mais tarde, corri para abrir a porta. Ele não disse nada, mas na hora me abraçou de um modo que me fez entender que tinha gostado muito. Por algum tempo, mergulhamos no tipo de silêncio desconcertado que tantas vezes acompanha momentos de grande emoção. E então, depois que se acalmou e começou a falar, meu pai recorreu a uma linguagem rebuscada e exagerada para manifestar a sua confiança em mim e no meu primeiro romance: disse que um dia eu ainda iria ganhar o prêmio que estou aqui para receber com tanta felicidade.

Orhan Pamuk in A maleta do meu pai - discurso da cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 2006 (Companhia das Letras, 2007), tradução Sérgio Flaksman.