
Eu corri para a janela ampla que havia no segundo andar da nossa casa na Pituba. Ela dava para o pátio e se podia ver o carro entrando. Corri para ela assim que ouvi o barulho do carro. Vi meu pai sair da direção, minha avó do banco de trás e minha mãe do banco da frente com ele nos braços. Procurei um bom lugar e me escondi. Depois de um tempo que me pareceu enorme, escutei vozes que subiam as escadas, mas segui escondida. Ninguém deu por minha falta porque não ouvi que estavam me procurando. Observei que deixaram o que parecia um embrulho no quarto e desceram. Conferido o silêncio, tratei de ir em busca do que foi colocado no quarto. E lá estava ele no berço. Eu não tinha idéia do que sentia sobre tudo que estava se passando, sobre coisas que estavam mudando; pois era certo que estavam mudando: meu reinado de filha única findando. Então espiei para dentro do berço e botei os olhos na mais bela criatura jamais vista por mim. Ele era lindo, com a cabeça cheia de um cabelinho fino e muito louro, todo gordinho e com um nariz que sobressaía no rostinho perfeito. Foi a maior emoção da minha então curta vida de quase quatro anos. E foi um choque sentir aquela torrente de amor súbito diante da beleza dourada. Daí para frente só aumenta o que sinto por ele: que grande amor. Ele brincou com um monte da mesma boneca, a Barbie, eu brinquei com carrinhos e trens. Fomos um apoio e um conforto em inúmeras situações. Quando fui para a Espanha fazer a pós-graduação, ele me disse que eu era a primeira grande perda da vida dele; naquele tempo nós ficávamos até alta madrugada conversando e de um dia para o outro eu não estaria mais ali no quarto ao lado. Eu fui a primeira grande perda da vida dele e ele foi o meu primeiro grande ganho. Anos depois, eu já de volta, foi a vez dele ir estudar fora, mudou-se para o Rio de Janeiro e a faculdade era pela noite; eu só dormia depois da meia-noite, após telefonar e verificar que ele havia chegado em casa. Com a recente morte de nosso pai, ele tentou preencher meu vazio no que podia, fazendo coisas habituais com as quais meu pai me mimava: comprando montes do chocolate da mesma marca, por exemplo. Também faz questão de dizer “só você para resolver tudo”, que era uma frase que meu pai dizia para mim. Fisicamente somos tão diferentes: ele tem 1,83 m e eu, baixinha, tenho 1,62m, mas somos ambos magrinhos; ele sempre foi louro, e eu jamais fui, mas temos o mesmo nariz de grego (o dele é mais bonito). No trato com as pessoas também somos diferentes; ele é reservado, já eu sou expansiva, mas lá dentro há a mesma intranqüilidade. Hoje, um é para o outro a ponte com um passado comum que gera um conhecimento profundo. Andamos pelas ruas de mãos dadas porque precisamos desse contato, nos perdemos em abraços demorados que dizem mais que palavras e temos o especial gosto ao verificar o quanto nos parecemos nos sentimentos e na maneira de encarar a vida. Somos frutos de uma mesma história.
Foto tirada por Gerácimos Damulakis, meu pai, propositadamente em preto e branco para aproveitar o raio de sol que atingia a meu irmão e a mim, conferindo um ar artístico à fotografia.