terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O RIO


Gláucia Lemos




Ali, a dez metros ele passava. Com água barrenta. Ficava espiando pela vigia. Havia uma cruzeta de ferro para que não pudesse passar uma pessoa. Atrás da cruzeta havia também uma tela de arame grosso. Para evitar a passagem de mão portadora de carinho ou de mensagem. Muito menos passassem beijos ou simplesmente palavras. Mas podia passar pensamento. Lembranças podiam passar.

Brincava à margem do rio. Corria e se banhava em suas águas turvas do barro do leito e da lama vermelha que arrastava à passagem. Pescava camarões e enlodava os pés. Amava o rio. Um pedaço muito grande do seu mundo restrito. O rio era toda a sua alegria, o que de melhor tinha na vida, onde o pouco era tudo.
Um dia as águas barrentas levaram seu pai. Manhã nunca esquecida daquela infância. O corpo raquítico escorregando na pedra limosa, a cabeça chocando-se com a pedra maior, o grito de susto, Depois o corpo caindo para a viagem das águas. As bocas aflitas dos irmãos clamando por ele. O rio e suas águas barrentas arrastando o corpo do homem desmaiado, impotente. Até que sumiu correndo mais que as pernas dos filhos. O pai tornou-se alguém encantado que foi morar para sempre no mistério das águas.
Bem ali. A vinte metros da parede. Os olhos passando pela vigia da cruzeta e da tela de arame grosso.

De noite os grilos cantando nas touceiras. O ruído das águas correndo. Os braços vigorosos de João enlaçando seu corpo. A boca de João nos seus olhos, no seu rosto, em sua boca, em seu pescoço. As mãos grandes de João nos seus braços, nos seios, nas costas, em toda a sua pele. O corpo de João, poderoso. Depois da impossível recusa, a entrega. Os grilos cricrilando em volta. O escuro quase completo. O silêncio quase palpável. O cheiro da resina do mato misturando-se ao cheiro meio doce, meio licoroso, do pescoço de João. E a cumplicidade do rio. O ruído ininterrupto tão constante, conseguindo fazer parte dos rumores do dia e também dos silêncios da noite. Sempre indo, sempre indo, não voltava nunca? Não trazia a hora do amor na noite escondida.

O ventre começando a crescer. Logo todo mundo iria perceber. João, cadê você? O filho que a gente fez naquela noite à beira do rio, você nem quer saber que estou gerando? Ninguém dava notícia de João.
- João foi embora para a capital e nunca perguntou por mim nem pelo filho que ele botou no meu ventre. O que vou fazer com um filho sem pai? Todo mundo vai me chamar de puta. Esse vai ser o meu nome, nessa vila tão pequena. Todo homem da vila vai querer deitar comigo, mas nenhum vai querer ser meu namorado. João, porque você foi embora de repente? Que é que você fez da minha vida?

Chá de folha disso, chá de folha daquilo, a dor nos rins, uma contração, uma náusea. Outra contração... Nasceu meu filho, meu Deus, valei-me! Nasceu? Não, não nasceu, morreu meu filho. Senhor, eu matei meu filho... Eu queria ter meu filho. Ia ser um homem. Pequeno, esbranquiçado, parecendo de cera. Uma cabeça enorme para o projeto do corpo, com a tripa do umbigo compridona. João, esse boneco de cera ia ser o nosso filho. Ia ser bonito como tu. Ia ter essas costas morenas que tu tens, João, mas não seria enganador que nem foste comigo. Eu não ia deixar ele crescer cruel como foste comigo. Eu ia ensinar a ele a ser amoroso como eu sou. Ainda não tinha cabelos, nem unhas, nem dedos divididos, o meu pobre filho. Era um projeto. Agora, o que vou fazer com ele? Onde vou jogar o resto do que seria o meu filho?
As águas barrentas foram levando pela correnteza o corpinho malformado, misturado a folhas podres, a peixes miúdos e a fezes de animais. O filho nas águas vermelhas, o rio levando para onde? Para o nunca mais. Até que sumiu. Tinha sido um momento tão bonito, João. Mas só ficou um filho morto.

O rio matou o pai e sepultou o filho. Sempre ele desde que ela nascera, desde antes de todas as vidas que existiam por ali, o rio acompanhava tudo.

Tempo depois João voltou. Doutor. Casado com moça da capital. E com o filho bonito da outra, que nasceu completo porque não foi feito à beira do rio.
- O mesmo rio que levou meu pai, o mesmo rio que levou meu filho, João, ainda vai levar o teu filho também. Vai levar, João, Juro que vai.

Agora ali, a vinte metros da vigia ainda estava ele acompanhando sua vida. Não sabia mais do tempo em que o amara. Agora odiava as suas águas com o ódio mudo que se vota às indiferentes testemunhas das nossas dores maiores. Dele não conseguia desligar-se. Tinha que ficar espiando, espiando suas águas correrem sempre, sem jamais se cansar, como num maldito masoquismo. Tinha que passar bem ali, a vinte metros da sua cela, ligado a ela como o cordão umbilical de um feto. Perseguindo-a. Repassava todos os dias passo a passo a sua vida
Pela cruzeta de ferro e pela tela de arame grosso da vigia não podia passar ninguém, mas o rio era mais forte. O rio podia passar. Trazia seu pai, seu filho, e o filho da outra para dentro da cela, todos os dias, trazendo com eles sua dor e sua culpa. E também todas as noites quando despertava com o barulho das águas acordando o silêncio para acordá-la também. O rio não dormia e não a deixava dormir.
Lá ia levando o corpo do pai desmaiado, afogado. O meu filho mal-formado matado às escondidas, e o corpo completo, robusto, do filho da outra, que a vingança, em uma noite qualquer, deu de presente ao rio para levar também. Esse rio só fala de coisas amargas.
Rio assassino... Rio cúmplice...
- Um dia ainda mato este rio.



Gláucia Lemos é ficcionista, poeta e cronista, autora de 33 títulos.
Foto "Rio São Francisco, Bahia", por Ararinha, retirada do Flickr.