domingo, 31 de agosto de 2008

OS 100 ROMANCES INESQUECÍVEIS

Gerana Damulakis



Quando Kátia Borges começou, lá no blog Madame K http://mmeka.wordpress.com/, a listar suas 100 músicas prediletas, fiquei com vontade de fazer o mesmo, listando meus 100 romances inesquecíveis e/ou os 100 poemas que não deixam meus pensamentos. Comentei com Kátia que iria fazer isto e ela me deu a idéia de destacar um, usando trecho do texto, sempre que enumerasse 10 deles, tal como ela faz com a lista: 10 de cada vez, e ela coloca o vídeo de uma das músicas.

Aviso que a lista não segue a preferência maior enquanto os demais são menos inesquecíveis. Inesquecível é inesquecível, obviamente. Todos no mesmo patamar. O que fiz foi levantar da cadeira e passar rapidamente o olhar pelas prateleiras das estantes e quando o olhar parava, anotava o título, deixando, assim, que meu inconsciente ditasse. Quer forma mais confiável do que esta? Ledo engano. Pois que não parei primeiramente na frente dos russos (quantos romances inesquecíveis eles escreveram!) e o único russo que surgiu na memória foi Soljenitsin por conta de sua morte recente; pois que também nem cheguei na parte da literatura japonesa (que vem me seduzindo nos últimos três anos) e, que absurdo!, deixei de olhar para Hemingway e Fitzgerald e John Dos Passos e....

A LISTA (toda semana 10 títulos)

1- Daniel Deronda, de George Eliot

2- Auto-de-Fé, de Elias Canetti

3- O tambor, de Günter Grass

4- Retrato de uma senhora, de Henry James

5- Barragem contra o Pacífico, de Marguerite Duras

6- Eugênia Grandet, de Honoré de Balzac

7- Emma, de Jane Austen

8- Amsterdam, de Ian McEwan

9- O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago

10- Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Alexandre Soljenitsin

TRECHOS DE O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago (foto).

Podia ser verdade, podia ser mentira, é essa a insuficiência das palavras, ou, pelo contrário, a sua condenação por duplicidade sistemática, uma palavra mente, com a mesma palavra se diz a verdade, não somos o que dizemos, somos o crédito que nos dão.

A mais inútil coisa deste mundo é o arrependimento, em geral quem se diz arrependido quer apenas conquistar perdão e esquecimento, no fundo, cada um de nós continua a prezar as suas culpas.

O jogo entre uma memória que puxa e um esquecimento que empurra é jogo inútil, o esquecimento acaba por ganhar sempre.

O mundo esquece tudo, o mundo esquece tanto que nem sequer dá pela falta do que esqueceu.

Não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas, isto é o que se escreve quando já a morte vem subindo a escada, quando se torna de súbito claro que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de amor.

A solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz.

21

Luiz Britto


Na palidez marmórea da tarde,
apenas uma xícara vazia
uma mancha molhada na mesa,
flores fanadas num vaso,
uma tarde tão fria

E um canto lúgubre de plátanos e
pântanos,
uma certa presença erradia,
dores inauditas e secretas,
que fazem caminho nas penedias

Uma viola parada, a cítara muda,
a harpa que hoje morria,
e o vento passando, como sempre
trazendo a espuma longínqua do mar
numa despedida cheia de bizarria


2 1 --- o vigésimo primeiro texto de VESTÍGIOS DA NOITE SOBERANA, livro de poemas. Foto de giusmelix, retirada do Flickr.

sábado, 30 de agosto de 2008

CERIMÔNIA DE CASAMENTO


Fred Matos

Para Sonia Sant’Anna


O vestido era o mesmo que não usou há vinte anos quando um infarto fulminante lhe matou o noivo nas vésperas do casamento. Todo esse tempo ficara protegido das traças e do tempo por bolotas de naftalina, guardado em uma caixa de papelão. Ainda no dia do enterro decidira que nova boda seria questão de tempo. Chorara mais a não consecução dos seus projetos do que pela vida de Miguel, perdida tão cedo.
Agora, a caminho da igreja, com meia hora de atraso como convém, se recorda de todas as trapaças que a sorte lhe pregou: aquele infarto que tardando alguns dias a teria tornado viúva, uma condição bem mais adequada às suas expectativas. O namoro com Rodrigo, sua única paixão, que lhe custou dez longos anos de adiamento do sonho, marcando e remarcando a data ao sabor de uma miríade de circunstâncias racionalmente defensáveis. Até o dia em que ele a trocou por uma colega de trabalho que o levou ao altar como quem vai ao cinema.
A Rodrigo se seguiu uma fase de namoros breves, pois resolvera não conceder a mais ninguém prazo maior que três meses para a decisão pelo enlace. Foram tantos os namorados que de muitos não consegue se lembrar. Um dia entendeu o conselho de Margarida, sua melhor amiga, que lhe havia dito que casamento é um investimento de longo prazo, como o de ações na Bolsa de Valores, e concluiu que talvez a sua ansiedade para recolher os dividendos fosse a causa do seu insucesso, afinal, excluindo o fato da morte prematura de Miguel e a canalhice de Rodrigo, fora sua a responsabilidade pelos malogros seguintes.
Analisando suas atitudes e resolvida a tratar o assunto com a lógica do mercado, Helena comprou e leu com afinco alguns compêndios de marketing e traçou seu plano estratégico focando seus esforços sobre um “target” formado por homens solitários na faixa etária dos 40 aos 50 anos, com boa educação e condições financeiras estáveis. Inteligente que é, investiu em um microcomputador conectado na Internet e foi à caça nas salas virtuais dedicadas ao seu público-alvo. Durante quase um ano dedicou diariamente quatro horas das suas noites teclando com desconhecidos. Marcou encontro com alguns e, tantas as decepções sofridas, já estava pra jogar a tolha quando conheceu Arthur, que preenchia todos os requisitos.
A igreja estava linda. À sua entrada os músicos iniciaram a valsa nupcial. Esperando-a no altar Arthur, cuja inacreditável timidez era responsável por uma cinqüentenária castidade. Ao seu lado, ainda firme, apesar de já beirar os oitenta anos, caminhava Raul, seu pai, vindo do interior para cumprir o ritual de entrega da filha ao noivo. A cerimônia decorreu sem surpresas. O casal retirou-se da festa à francesa para a lua de mel e o vestido voltou à caixa de papelão.
Naquele mesmo dia, enquanto o avião decolava para Miami, decidiu que nova boda seria questão de tempo: é um desperdício que um vestido tão lindo seja usado somente uma vez. A técnica para conseguir noivos já está dominada. Agora Helena quer aprender a se livrar de esposos.



Este conto pertence ao livro Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006) com modificações na revisão do autor. Foto de vamonessa, retirada do Flickr.

SONETO DA CELEBRAÇÃO


Gláucia Lemos










Hoje em nenhum momento te celebro.
Queimei-te a mirra da ternura extinta.
Renego enfim a crença que foi minha,
e não remanesceu à vã entrega.

Celebras tudo que és: não mais que penas
de cauda de pavão em cores tinta.
Resgato minha luz, eis que ela é minha,
inútil para ungir almas pequenas.

Não sou mais que uma luz de lamparina,
mas afugento a treva, a dor e o luto.
Eu sou o canto de uma cavatina!

Fecho o painel no qual louvei teu vulto,
e abro a janela. A brisa matutina
vai apagando os círios do teu culto.

1997 Salvador.


Descobri que Gláucia Lemos tem sonetos engavetados. Garanto que vou conseguir que ela prometa a postagem deles aqui. Adianto que são da década de 90, é apenas o que sei. Foto "4 Círios", de Oswilio, retirada do Flickr.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O NASCIMENTO DO LIRISMO





(sobre os fragmentos líricos de Safo de Lesbos)

Gerana Damulakis




Um ícone (eikón ou imago) significa, como um termo de retórica, a inclusão de uma condição ou requisito numa determinada figura. O ícone vai tomando força ao longo do tempo nos exemplos repetidos, na reiteração daquela essência que o qualifica. Assim ocorreu com a figura de Safo.
Em 1845, o poeta francês queria publicar As lésbicas; passados 10 anos, Baudelaire publica seu livro conservando as três peças malditas (“Lesbos” e “Les femmes damnées” I e II ), que justificavam o título anterior e, agora, apenas fazem parte de uma das subdivisões de Les fleurs du mal, na edição de 1857. A lésbica baudelairiana é um exemplo na formação do ícone sáfico que vinha sendo montado desde Ovídio.

Nos registros iconográficos e literários gregos, Safo é uma mulher bela e alta. Ovídio a transforma, dando uma visão oposta do ideal antigo: uma mulher baixa e de tez escura. O mesmo aconteceu com sua história: Safo lançando-se de cima de um rochedo, num gesto suicida está de acordo com o gosto romântico, mas na narração de Ovídio, a intenção de Safo era cumprir o ritual de purificação do amor excessivo que sentia pelo barqueiro Fáon, ressurgindo daquelas águas curada pelos deuses, pois, na Antiguidade, o amor era uma doença com sintomas evidentes no corpo enfermo.

Foi o século XIX que cuidou de imprimir a imagem de Safo como uma mulher decadente numa corrida alucinada em direção ao abismo. Baudelaire e Verlaine ajudaram na formação deste ícone, atraídos, eles também, por tal fantasia.

Atualmente, os helenistas estão mostrando que as apreciações tanto da obra quanto dos sentimentos de Safo foram falseadas, amiúde com base nos preconceitos ligados à moral da poeta. Esta teoria está alicerçada no testemunho do poeta Alceu, contemporâneo e concidadão de Safo, e do filósofo Platão: para eles, Safo era uma bela mulher pura de sentimentos, chefe de um culto devotado a Afrodite.

Este culto foi uma academia (a Casa das Musas) de música e canto para moças, suas alunas, chamadas de suas hetairas (companheiras) que recebiam lições de caráter moral, social e literário, e que colocava Safo numa posição de honra e respeito na sociedade de Mittilene, principal cidade da Ilha de Lesbos. Por tais fatos, na construção do mito sáfico, atribuíram-lhe amores homossexuais e, por fim, o termo lésbica, que vem diretamente da relação com a pátria de Safo.

A verdade, no entanto, está na consideração que a obra da poeta adquiriu desde Platão e depois, com Plutarco, que a comparavam com as Musas, filhas de Zeus e Memória, sendo Safo mais do que uma inspirada por estas musas, mas ela própria uma deusa: a “Décima Musa”.

Única mulher entre os poetas da Grécia Arcaica, sua obra foi mal vista pela Igreja Católica, guardiã da Antiguidade durante a Idade Média, que tratou de queimar quase tudo no ano de 1073, por ordem do papa Gregório VII. Porém, no século XIX, viu-se que o Egito também era uma fonte destas obras; parte das poesias de Safo foi encontrada em papiros egípcios embrulhando múmias de crocodilos. Contudo, era pouco: de uma obra que ultrapassou os 10 mil versos, temos apenas alguns fragmentos. Servem, ainda assim, para marcar o nascimento do lirismo e a separação entre este e a épica tradicional.

Safo substituiu os heróis e os feitos gloriosos por sentimentos pessoais, cantando o “eu” e suas emoções. Na lírica, o comum é o amor. Nada comum é a apresentação do amor fora da conhecida disposição dos opostos, o bem e o mal, ou melhor, o bom e o mau. Safo cria a fusão no termo glykypikron (doceamargo), para o amor que simultaneamente traz prazer e dor. Ela diz: “... de novo, Eros/ que nos quebranta os corpos e me arrebata,/ invencível serpente”.

Este epônimo glykypikron, dado a Eros pela primeira vez, definiu, por fim e na íntegra, o que designa a expressão de Eros: desejo violento e brutal que invade completamente a alma e, triste paradoxo, rouba a identidade ou consciência; por tal, doce desejo, desejo amargo.
E Safo canta os deuses e suas forças, canta epitalâminos, paixões, saudades, enfim, sentimentos governados por Afrodite e Eros, tendo como primeiro ato a sedução. Os gregos têm a sedução como uma arte; faz-se necessário exercê-la, urge encantar, fascinar o outro: é a Persuasão, filha de Afrodite:

Quem, de novo,
Deve trazer a Persuasiva para teu amor?

Uma pergunta da poeta, parafraseada há mais de dois milênios nos cantos de amor, na invocação de Afrodite e nas lágrimas de Hécade, a força do dor, que ajudou a criar o mito da vida e da morte de Safo. Seu salto do alto das falésias de Lêucade lembra Psyché, ao deixar os mortais, também de uma falésia, para juntar-se ao divino Eros. O único poema inteiro que nos chegou ou qualquer fragmento poético de Safo, seja um verso, seja apenas uma palavra, está sempre expressando a força e o poder de Eros sobre todos nós.


Foto, Eros e Psyché, de Canova, por Sore Lovepain, retirada do Flickr.

CAMILA

Fred Matos


o que há de ser é chuva
é água lambendo a terra
é lama vedando caminhos
é limo na pedra molhada

na vidraça embaçada
Camila é uma sombra
não sonha com olhos de ver

cansada de tudo já não tem frio
a última lágrima faz muito secou
ainda na boca o travo do vinho

Camila não pensa o passado
azulcíssimo o olhar perdido vazio
não sabe das mãos
inventando outros caminhos

tecendo um invisível fio
de uma meada não coisa
tornada aqui em peixe
em pássaros que não voam

flores eternamente viçosas
mares impossíveis céus
inolvidáveis auroras

mãos ágeis automáticas
mãos crispadas máquinas
mãos autônomas exatas
tecendo sóis olhos azuis

tecendo escarlate relva
imaculada vidraça tecendo
onde Camila criança sorri

quando a chuva cessar
quando os grãos germinarem
quando brotarem gerânios
nas floreiras da sua janela
trarei pão e promessas
trarei lume e alento
trarei os sonhos que roubei
as mãos máquinas cansadas
serão mãos para carinhos
enquanto durem os suprimentos
enquanto o inverno não venha

enquanto nossos exaustos corpos
não se amoldarem à terra
e aos astros nossos olhos.



Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). Foto de ***LEE***, retirada do Flickr.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

ROSA, PODRE E PROSA

Letícia Coelho


E fez – se a rosa em ritmo
Nota, verso e prosa
Emoldurada na mucosa
Inunda pensamentos íntimos
Rói a corda,
Perde a visão de tuas costas.

Entre anseios e desprezos
Sobra o olhar avermelhado
A mão tremula que tenta te alcançar
Que pena...
Ela é boa em enganar,
Te agrada e depois corrompe moralmente...
Gangrena o pensamento
A liberdade que te faz voar.

Quando tocas as notas dela
Dá início ao aleijamento total
És esmagado pelo aroma podre da flor
E é nesse momento...
Que tu te entonteces e reza versos de amor.



Letícia Coelho escreve poemas e contos, já participou de uma coletânea da Editora Komedi/2008 e vai lançar o livro Ensaios Amadores. Foto de .rein., retirada do Flickr.

BELEZA PURA

Fred Matos



conto carnavalesco para cantar

Não me amarra dinheiro não, mas formosura. Este ano, Colombina, não vai ser igual àquele, já detonou o som na praça. O caminhão eletrificado, milhares de watts, decibéis à beça, todas as bocas troando um baiano frevo, balança o chão da praça Castro Alves, não pára, arrasta a multidão pipoca subindo, lentamente, a Carlos Gomes, tem pé na dança. Dinheiro não, a pele escura. No mete o cotovelo vai abrindo caminho, atrás só não vai quem já morreu ou fica esperando outro, que já vem, que já vem, que já vem, umazinha, alemã deve ser, xenhenhém úmido decerto, pendurada no pescoço do negrão filho de Gandhi de sorriso sonso e intenção humana como a minha que transo todas sem perder o tom. Dinheiro não, a carne dura. Um grupo, abadas amarelos pintalgados de tons vermelhos, desce a ladeira de São Bento chacoalhando pandeiros, batendo agogôs, tambores, latas. A chuva bem-vinda pé-d’água desaba refresca e passa. Nessa cidade todo mundo é de Oxum, não se esqueça de mim, não desapareça, Colombina, homem, menino, menina, mulher. Poucos são ainda dominós, pierrôs, arlequins, havaianas, tuaregues, mascarados, nesta multidão com pouca roupa graças a deus. Dinheiro não, moça preta do Curuzu, não me leva a mal, vou beijar-te agora, beleza pura, hoje é carnaval, não faça como aquela que bebeu, bebeu, bebeu e depois se misturou à turba, fugiu. Se a canoa não virar virão marinheiros, índios, cangaceiros e baianas. Quando essa preta começa a tratar do cabelo é de se olhar. No tabuleiro da baiana tem vatapá, caruru e do seu tacho, flor do dendê, recende o aroma saboroso do acarajé fritando. Peço um, só com pimenta, melhor acompanhamento não há para uma cerveja gelada, não à estupidez, no ponto em que se formem dois cremosos dedos de espuma. Toda a trama da trança a transa do cabelo. Você me puxa, me leva pela mão para o meio da rua, conchas do mar ela manda buscar pra botar no cabelo, a praça fica pra trás, subimos a Chile, à esquerda o Elevador Lacerda, lá embaixo, azul esverdeado, Todos os Santos, o mar da baía onde bóia redondo o Forte de São Marcelo, no horizonte a ilha de Itaparica, toda minúcia, toda delícia, vamos em frente, Misericórdia, Praça da Sé, Terreiro de Jesus de tantas igrejas, não me amarra dinheiro não, mas elegância e agora o Pelourinho para ver ouvir o carnaval de outrora nas fantasias, das bandinhas, dos violões e bandolins do Paroano sai Milhó, não me amarra dinheiro não, mas a cultura: Quem é você, diga logo que eu quero saber o seu jogo, dinheiro não, a carne dura. A tarde cai e da sacada do velho reformado sobrado uma avozinha acena e dança, acena e dança, acena e dança, ao redor crianças jogam confetes atiram serpentinas, beleza pura. Moço lindo do Badauê, beleza pura. Se eu deixar de sofrer como é que vai ser para me acostumar, beleza pura? Do ilê aiyê, beleza pura. Na Baixa dos Sapateiros, dinheiro yeah, beleza pura, sentado neste improvisado botequim, longe o som dos trios, tontura de sons, cores, aromas, a filha da Chiquita Bacana, morena mais dengosa da Bahia, dentro daquele turbante do filho de Ghandi, pede a saideira, é o que há, tudo é chique demais, tudo é muito elegante, beleza pura. Antevendo horas de gozo, minutos que sejam são serão suficientes, manda botar palha da costa e que tudo se transe, sequer percebo, todos os búzios, todos os ócios, que acabou o nosso carnaval nas cinzas de uma quarta-feira. Não me amarra dinheiro não, mas os mistérios.




Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). Foto de quir-k, retirada do Flickr.

BALANÇO GERAL

Gláucia Lemos



Não sei se a vida vale a flor que espreito
Luís Antonio Cajazeira Ramos


O que sobra é a casca da fruta
é o rascunho do texto
é o recibo da conta
é a gota no copo
é o farelo no prato.

O que resta é a pegada no piso
é o bagaço na cesta
é um fio no pente
o batom no guardanapo
o suor na camisa.

O que fica é a ruga no rosto
é a névoa nos olhos.
Na memória que foge
uma lembrança morna,
e um laivo de remorso
boiando no vazio.



Gláucia Lemos é romancista, contista, cronista e poeta. Tem 33 títulos publicados. Foto “El bosc en uma gota”, de queropere, do Flickr.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Há um poeta em mim

Luís Antonio Cajazeira Ramos



Olhando a hora como quem sorrisse...
Fernando Pessoa


O poeta disse que há um Deus em mim...
E o disse sem dizer, ou não dissesse.
Ah, poeta, eu sou o Deus de tua prece,
erva daninha axial de teu jardim.

Melhor: eu sou o totem do esconjuro
que satisfaz a teu mundéu de fé.
Inda melhor: sou tudo que não é
senão o escuro que disfarça o escuro.

Que Deus te disse! Tua própria voz
abre horizontes que se fecham nós,
e o fado triste alegra-se em destino.

Eu creio, poeta (pois que Deus me disse,
da Sua efêmera e espectral ledice):
tu és meu bálsamo do desatino.



Luís Antonio Cajazeira Ramos tem cinco volumes reunindo seus poemas, sendo o mais recente Mais que sempre (7Letras, 2007).

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

BONEQUINHA

Flamarion Silva


Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue... trabalho feito por Das Candeias de seu João de Eleutério, desprezada que jurou vingança... vento ruim que bateu... coisa de cabeça... treta do homem... mas, o fato é que, a menina morreu pelas festas. No mar.
O homem puxou a poita da canoa, resoluto, enquanto mirava o barco de seu Tião, lá longe. Depois não conseguiu despregar os olhos da menina. Ela, sentada no banquinho do meio, sorrindo, se transformando nos olhos dele, derramando um olhar de feitiço para cima do homem que a via com uns olhos perdidos. O barco de seu Tião já lá longe, a vela cheia, bojuda, deixando para trás a Gerumana e o Oitizeiro de seu Nino. Já lá longe vai o barco de seu Tião.
A menina descamba a cabeça para o lado e sorri boazinha, sorriso de lábios frescos, nos olhos negros o azul do céu e o mar refletem. Nada que transtorne a calma do dia. O homem rema lento. A menina lenta cresce, assim com uns olhos bêbados de se deitar no sono. Sobre ela o homem se ajeita, enquanto afinca já com força o remo na lama. De repente ela grita, um grito que se ouve dela gemendo na alma, na cama canoa. Ais de dor, ais da mulher em parto. A flor em botão que despetala.
O homem sem nome, filho do Cão, arregala os olhos pro mar, pro fundo da lama, e Ela é calma como o silêncio mudo. A boneca a boiar, traz a lembrança do mar da Costa, quando ventava as palhas do coqueiro e tinha-se de se manter o chapéu afincado na cabeça pr’ele não avoar. Diziam que os corpos infantís vinham da África, a dar na costa. Os navios que naufragavam. Era uma alegria só que nem se pensava no desastre, pois tão distante...
Mas, agora, que o corpinho de sua boneca no mar, agora que seus olhos se abriam e viam, o homem não se acreditou são. Levou as mãos à cabeça e gritou:
– Deus! Deus! Deus!
Mas logo parou. Pois o barco de seu Tião já vem lá, saindo à boca do rio.
O homem tem o remo envolto, firme nas mãos rígidas. O barco de seu Tião vem lá com sua vela branca. E o homem, resoluto, ergue bem alto o remo e, sob o céu azul, desce-o com toda a força sobre a cabeça da menina, rachando-a.
– Pai. Pai, ele ainda ouviu ecoar no mangue. E, de lá de dentro, avoou uma garça vermelha, assustadiça.
Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue...



Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (FUNCEB, 2006). Foto "Canoa", de Bolivar Trindade, retirada do Flickr.

domingo, 24 de agosto de 2008

HOMERO, GLÓRIA E LENDA



(sobre Homero, o homem e a lenda em torno)

Gerana Damulakis

É ampla a bibliografia sobre a questão homérica que, famosa, sobressai no campo da filologia clássica com várias teorias para explicar a formação dos dois poemas de Homero. Apaixonados, há os que defendem a unidade inflexível dos poemas e há os que argumentam, com base na análise estilística, usando a presença de elementos heterogêneos na intrincada trama, o comprometimento da unidade estrutural na escrita homérica. Dependente desta questão, surge outra: Homero existiu? Se a obra homérica é, como querem alguns, uma obra do povo, por outro lado é indubitável a intervenção de um poeta altamente dotado para distinguir em sua marca assuntos já tradicionais.
Então, houve um homem. A lenda envolveu de tal modo a figura deste homem que nenhum dado tem comprovação histórica. O local de seu nascimento é disputado por oito cidades helênicas. Não há dúvida de que os poemas foram compostos na Ásia Menor, mas em que região exata? Nenhuma cidade apresenta provas de ter visto as obras homéricas aparecerem. Nem tomando por base a língua usada pelo autor surge qualquer elucidação, porque Homero compondo no dialeto jônico não deixou de usar elementos eólicos. E, mesmo este fundo jônico tem modificações, além da mistura de palavras cretenses e cipriotas.
Enfim, a língua não deixa margem a conclusões definitivas. Há uma hipótese que previlegia Mileto, porque o fundador desta cidade era descendente de Nestor, e este Nestor ocupa lugar de destaque, por exemplo, n’A Ilíada, quando Aquiles rende-lhe homenagem. Portanto, por esta via, Homero escreveu no século IX a C., em um lugar jônico da Ásia Menor, provavelmente Mileto. Se ele era de origem nobre e se somamos a isto o fato de que era cego e deixou discípulos, os homérides, os quais os mais significativos viveram em Quios, então, parece que esta é toda a informação que chegou desde a antiguidade.
Quanto ao século no qual Homero viveu, parece não haver dúvida pelo menos por parte do historiador Heródoto, que escreveu no século V a C..: “Homero viveu apenas quatro séculos antes de mim”.
Também a época em que a Ilíada foi escrita tem lá seus argumentos: a queda de Tróia deve ter ocorrido 400 anos antes da composição do poema, pois os fatos eram tão conhecidos dos gregos que Homero sequer se preocupou em introduzir historicamente o público dando as razões da guerra e entra de chofre, começando A Ilíada no nono ano do conflito com a ira de Aquiles. Isto leva a crer que Homero participou do apogeu do movimento épico na Jônia do século VIII a C. e, daí, a tendência é concluir que ele poetou em Quios, tenha ou não nascido neste local.


Foto do "Mapa de Grecia na Idade de Bronce como se describe na Ilíada de Homero", por Image, retirada do Flickr.

PROSA POÉTICA DA CIDADE-MULHER


Carlos Vilarinho


Meus olhos passeiam errantes pela cidade. Palhaços contundentes, cheios de erotismo e palavras berrantes na ânsia do pão misturam-se às imagens dobradas da avenida. Dobraduras de Drummond. Essas ruas agitadas de passantes nuas, sem poetas. Entediadas e enternecidas, longínquas de pensamento. Nas ruas, Deus e o tempo estão presentes. Marcam em absoluto a resolução do homem em tornar- se solitário. Correndo para garantir um lugar ao futuro. Que futuro? A tumba.
Quando ela passou de salto alto e olhar de cama, o frenesi me assaltou. Segui com os olhos. Aquele amor estava nas notas reais de meu bolso. Pensei no texto. Prostituta e literatura, dois amores. Parentes, irmãs, uma dentro da outra. Uma possuía a outra. Afonia geral. Ela, somente ela, descia a ladeira do São Bento e levava consigo o sentimento do mundo. O poeta do condor observava. De repente o temporal desabou e tudo ao redor da praça ficou cinza. O mar ficou cinza e a imagem do forte estava salpicada em minhas lentes. Ela escondia-se sob as árvores do canteiro da igreja. As vozes ressurgiam apressadas. Eu, absorto, olhava a extensão da avenida chuvosa e os transeuntes pobres. Sonhava acordado e embaixo de chuva com o olhar de cama. Excitação que deveria ser efêmera, amor impossível. Benfeitora dos homens solitários.
Não há mais o tempo do carrinho de primavera que passava anunciando sorvete de mangaba, chocolate ou dust miller. Do bom pastel chinês depois da sessão no cinema Guarani. A praça não balança mais com o som de Dôdo e Osmar. A cidade cresceu para os flancos, abriu-se, adentrou-se na mata atlântica e paralela.
Os homens por sua vez, não cresceram em flancos. Tomavam rapidez em si mesmos. Os homens não lêem poesias. Por sua vez, a cidade é mulher, sempre fora mulher. A literatura é mulher. A mulher é um poema belo e inacabado. A cidade é vaidosa e a mulher cresceu mais que os homens. Algumas majestosas. Outras tão majestosas e pedintes de amor que levam um travesseiro na alma. Ela desceu a ladeira de São Bento, seguiu em frente e entrou numa casa de luzes. Bebi e fumei à cidade. Não vi amigos, só trovadores em eco e dança sensual. Os paralelepípedos davam topadas em pés trôpegos num terreiro católico. Chicotes que voam em capoeiras. Então com o limo das pedras e o odor dos becos mijados, já turva a visão em cravo de álcool, vi novamente o salto alto. Ela me olhava em compaixão. Eu lembrei do desejo, mas cambaleante, caí. Agachada e sem nada por baixo, vi o recorte talhado da cidade. Os homens apararam a mata, a mulher é vaidosa e a cidade cresceu mais que os homens.

Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (FUNCEB, 2005). Foto de Salvador, Bahia, por LetoCarvalho, retirada do Flickr.

AMOR IMPERATIVO

Alexandre Core







Sei que no início era o Verbo
Num crescente ritmo constante,
Antes do futuro e desse instante,
Nascendo do passado que herdo.

Sabes também que não te espero
Cruzar por um caminho mais distante,
Enfrentar o frio, fio de prata cortante,
E seguir o rumo que eu mais quero.

E esse nosso amar-amei-amamos,
Verbo que tantas vezes conjugamos
No presente e pretérito do indicativo,

Guardado no peito, e que desta feita,
Sempre te encontrou mais-que-perfeita,
Continua me achando imperativo.



Alexandre Core assina o blog Anema & Core: http://anemaecore.blogspot.com/ . Tem entrada pelos meus "Favoritos".

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

AO LUAR



Ruy Espinheira Filho





Ao luar, a um dia só da primavera
oficial, eis que ele escuta a hera

densa de amor acariciando os muros,
abraçando-os, possuindo-os, nos escuros

e nos claros da noite. Ao luar e só,
ele sente mover-se, sob o pó

de antigas primaveras e outras luas,
rostos de casas, campos, gestos, ruas

que há muito desertaram os olhos velhos
que hoje o fitam de todos os espelhos.

Ouvindo a hera, as nuvens, o luar
que canta sobre as árvores e o mar

uma branca magia, ele vê, pálido,
sorrir-lhe o sorriso calmo, cálido,

de uma infanta em plena primavera
ao luar e ao som da hera de outra era.

E então, ao luar, enquanto escuta a hera
cantar, a um dia só da primavera

oficial, eis que ele enlaça a infanta
e dança uma mentira meiga e santa

como só sabe ser o que é história
contada nos boleros da memória.


"Ao Luar" pertence ao livro Memória da Chuva (RJ: Nova Fronteira, 1996).

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

AS VOLTAS DO TEMPO

Gerana Damulakis

Lúcia Santóri-Carneiro lançará mais uma vez seu volume de poemas As voltas do tempo, da Coleção Selo Letras da Bahia. Digo mais uma vez porque ela fez um lançamento individual, mas na próxima semana participará da festa coletiva que dará ao público os últimos títulos da Coleção. Voltarei a falar do Selo em outra oportunidade, inclusive para deixar aqui registradas a alegria e a realização que tive nos oito anos que passei na FUNCEB integrando a Comissão Literária do Selo Letras da Bahia. Quero citar poetas e ficcionistas que estão me dando tanto orgulho com suas produções e que têm seus livros publicados na Coleção.
Mas este momento é da poeta Lúcia Santóri-Carneiro.
Assim intitulei o prefácio de As voltas do tempo: "A marca delicada da alma", como certa vez foi descrita a filosofia da poesia. Seja, então, porque eu quis chamar a atenção para a delicadeza dos versos, seja porque ela transcende o subjetivo para ensinar a brincar, construindo um mundo próprio e mostrando delicadamente ao leitor como pode ser firme (parece um paradoxo, porém não é e a leitura atesta isto) e como pode ser real e poético o objeto se visto por um prisma lúdico em total concordância com a tal construção do sentimento (com a construção da alma?). Há recorrências como a água, como o mar, como a lua, como o peixe, como a bicicleta; recorrências que vão nos familiarizando com a poesia de Lúcia. Uma poesia tão original que é fácil reconhecê-la pelas suas marcas.
Certa vez a poeta me mostrou uma prosa poética que contava sobre uma observação: o prazer que o olfato pode proporcionar. O texto chama-se "Tangerina" e está no livro. É tão denso e tão real que passei a associar o perfume da tangerina à história de Lúcia. E pode a poesia ser tão real; ela que é a ficção do sentimento? Pode. E nem por isso deixa de ser lírica, e nem por isso deixa de trazer melodia e encanto. São os tantos caminhos que fazem a arte literária tão rica e inesgotável.


RETRATO
Lúcia Santóri-Carneiro

Hoje, estendi o braço
e toquei a bicicleta que na infância me fazia voar.
Senti a textura do caule de bananeira,
o gosto da banana do quintal,
e subi nos ombros de meu pai para um longo passeio.
Deitei no colo de minha mãe para comer a única maçã saborosa
do mundo, e acompanhei minha avó até a roseira
[que dava rosas minúsculas, com as quais fazia
[pequenos bouquets para os santos de sua devoção.

Hoje, ao olhar um retrato, findou a distância que me separava do
ontem! O tempo, subjugado, foi subitamente vencido pela memória.

UM DOMINGO ESCOCÊS


Gláucia Lemos

Morreria em um domingo, costumava dizer. A amiga benzeu-se uma vez. Ave Maria. Dizendo bobagens, Deus é mais!
Todo domingo é lenho de sacrifício, silêncio e solidão. A contínua solidão é a definição da morte. Que mais teria no seu morar de mosteiro em que cada um se recolhe a seu canto, como quem incha a barriga de alimento e se entoca, e lá fica? O mundo cá de fora é dos que vivem. Esses, sim, passeiam como gatos, seus pelos lambidos pelas salas, pelas varandas e avenidas, patas de pantufas japonesas alisando sintecos e tapetes e ladrilhos e calçadas, e, nos telhados, amam.
Domingo é o prédio vogando emudecido numa, apenas perceptível, superfície de nostalgia. Lá, bem ao longe os eventuais saltos de sapatos quase gritam em contato com as calçadas. Lá, bem ao longe, ronronam os motores à frente dos óculos escuros dos que, nos dorsos bronzeados cheirosos a cerveja, regressam do mar. Aqui perto tilinta o triângulo que convida a degustar cavaco, àqueles que transitam. Ninguém mais compra cavaco. Por que será que ainda tilintam os triângulos na rua em que todas as crianças e jovens estão no aeroclube apostando pulos no colchão inflável? Tilintam certamente para anunciar que alguém habita a tarde de Domingo, e o anuncia ferindo a mudez e entrando pelo apartamento para dessacralizar a solidão.
A amiga não retornara das férias com certeza. Tivesse retornado, já haveria de estar narrando as maravilhas das viagens. Fazia falta sua voz ao telefone, repetindo os assuntos que revisitava iguais, todos os dias, com a pontualidade do galo castanho que cantava nos amanheceres da sua infância.
Na secretária pisca o vermelho teimoso, reclamando que, há mais de duas horas, um recado qualquer a espera. Não vai atender. Deveria ser Frederico, quem mais , na tarde de Domingo? Frederico que não gosta de ser chamado Fred, diz que Fred é frescura. Só Frederico pensaria isso. Só Frederico teimaria em ligar pela décima vez para comentar o filme que um dia produziria, mas nunca se mexia para tanto. Quem queria escutar a monotonia do filme de Frederico para somar à monotonia do Domingo? Xerox do anterior e do outro e do outro.
Ainda se gostasse de bebida...
Loira a transparência de um Bell's ali em frente convida à diferença entre os domingos. Ainda se gostasse...
São 16 e 45 exatamente.
Os porta-retratos sorriem idiotamente para o vazio da sala. Para que tantos sofás sem função, não entendia. Maciez que não conhecia o corpo daquele que se fez esperar e se guardou em mudez, como todos os que se esquecem de vir a quem os espera. Era só mais um, como os que bem conhecia, com todo o egoísmo e toda a indiferença dos gatos. Cabia-lhe bem o epíteto de gato.
Parece que alguém ressona em algum quarto no abafamento da tarde. Alguém que dorme e não sonha. Os que sonham entendem de sonhos e de solidão dos sozinhos. Não se entocam com a auto- contemplação inerente aos gatos.
Alguém podia ligar agora. Alguém que não Frederico. Justamente agora e dizer qualquer coisa. Qualquer coisa serviria. Fosse até que estaria feliz e não precisava dela. Seria a lâmina cortando o silêncio e partindo a vida. Envenenada, trazendo a morte após seu corte, mas seria a voz que a mataria finalmente após a agonia do Domingo. Quando a amiga regressasse das férias, ligaria, e não a encontrando, diria a alguém: Ela sempre falou que morreria na solidão de um Domingo.
Todo o Bell's da garrafa transparente, loiro como um galã escocês, desceu pela garganta e arranhou a laringe, desceu pelas veias e queimou as águas que circulavam no trajeto do sangue. Até que estorricou o coração e isolou definitivamente a solidão do Domingo. Nunca mais solidão. Ou solidão para sempre.
Ela sempre dizia.

Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta e brinda seus leitores com este conto. Foto de Poesis T, retirada do Flickr.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

MAIS AFILHADOS LITERÁRIOS


BALADA PARA UMA BAILARINA



Fred Matos





desde aquela suíte do quebra-nozes
quantos anos você tinha?
treze? quatorze? quinze?
enamorei-me ao som de Tchaikovsky

você nunca me contou se naquela noite
sonhou ou não com ratazanas nem por que
só se sente equilibrada na ponta dos pés
e evita sempre que pode uma conversa séria

tornei-me ratazana das ribaltas e dos proscênios
pelo prazer de me prostrar aos seus pés maltratados
pés deformados pelo esforço do equilíbrio precário
pés que eu lavo, massageio, acarinho e agasalho

a nossa vida tem sido desde então o teatro
entre ratos será... até o seu último salto.



Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB,2006). Foto de P.B, retirada do Flickr.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

FLOR DE BARDANA EM CHÃO DE TOLSTÓI



(sobre a novela Khadji Murat, de Tolstói)




Gerana Damulakis

O dogma de que a vida imita a arte pode ser apenas mais um desafio estético dentre outros paradoxos e oxímoros de Oscar Wilde; contudo, quando a vida apresenta um espetáculo tão aproximado de uma narrativa literária escrita quase um século antes, passamos a pensar no paroxismo de Wilde com mais atenção.
A Tchetchênia viveu na história recente o inferno de uma guerra civil como república separatista frente ao gigante russo. O autor é a vida. Na virada do século, Liev Tolstói escreveu uma novela intitulada Khadji Murat, filmada depois com o título O Diabo Branco. Trata-se de um episódio das guerras do Cáucaso em 1851, onde o escritor em parte foi testemunha.
Naquela época, no Cáucaso, cada companhia administrava-se por si mesma e recebia certa quantia do tesouro aos cuidados do chefe regional. Khadji Murat era o lugar-tenente de Schamil, chefe célebre por suas proezas, mas a situação inferior de Murat foi suplantada pela sua fibra e coragem. Assim, ele é um patriota que se vê obrigado a passar para o lado dos russos com o fim de obter um exército e marchar contra Schamil para vingar-se. Antes os russos precisavam libertar a família de Khadji Murat em poder de Schamil, trocando-a por prisioneiros.
Os russos sabiam que, com Khadji Murat submetido a eles, seria o fim de Schamil, mas, incapazes de resolver a questão do resgate das mulheres, da mãe e dos filhos de Khadji Murat, pois que bastava ter o bravo submisso, desdenharam a paciência do montanhês que acaba fugindo para enfrentar Schamil e libertar a família.
As lembranças eram caras a Khadji: a mãe e a bela história de como defendeu o filho desde o nascimento, garantindo-lhe a alimentação; suas mulheres e os filhos e, principalmente o filho predileto, lussuf encerrado numa prisão, cova aberta no solo, por Schamil. Por tudo isto, ele toma a resolução: Khadji Murat foge em busca dos seus, mas é vencido pelos russos, baleado, pisoteado, até que arrancam sua cabeça para ser exibida pelas aldeias das tribos do Cáucaso.
Entre 7 e 8 de abril de 1995, outro lussuf, filho da tchetchena Raisa Husseinova, era arrancado dos braços da mãe por soldados russos e jogado debaixo de um tanque. O corpo esmagado, posto em cima de uma pilha de madeira, foi encharcado de gasolina. Os soldados exigiram que a mãe tocasse fogo no filho, mas ela não conseguiu, então, eles atearam fogo com uma granada. Outra coincidência: o nome do chefe dos rebeldes era Schamil, o mesmo nome do chefe muçulmano da novela de Liev Tolstói. É Wilde outra vez: a vida imitando a arte.
Tolstói admirava os tchetchenes, e a narrativa não esconde isto. Assim ele os vê através de uma bela metáfora que abre a história: o narrador ia por uma campina assolada e sombria quando viu uma flor de bardana, a mesma espécie de flor que certa vez ele colhera com tanta dificuldade; passa, dessa forma, a refletir sobre a resistência da bardana coberta de lama, com aspecto de que havia sido esmagada por uma roda e, no entanto, continuava “em pé”.
Escreve Tolstói: “O homem tudo venceu, exterminou milhões de ervas, mas, esta, não se rendeu! “, fazendo uma associação, associação confessa, ele lembra o herói Khadji Murat para, vinte e cinco capítulos depois, morto o bravo, voltar a escrever sobre a bardana, fechando o arco da novela: “A bardana, esmagada no meio do campo lavrado, fez-me lembrar essa morte”.
O capítulo quinze descreve Nicolau através de seus atos. Poderia ser o retrato do dirigente de então, na metade dos anos 90 do século XX, Boris. Aliás, os retratos construídos por Tolstói, em sua obra, dão a impressão, como ele mesmo acreditava, de que seu destino era o de um profeta.
Conclusão: uma vez que a arte é tradução, a formalização literária da vida pode ser tão verdadeira quanto a própria vida.



Foto de saudeamas, retirada do Flickr.

DAS PEDRAS


Manuel Anastácio



Está quieta. Não te mexas.
Ignora-me.
Demora-me.
Enterra-me.

Distende agora os membros sobre o chão.
Pensa que o teu corpo é uma prisão.
E não tenhas dúvida de que o é.

Esteja quieta. Não se mexa.
Me ignora.
Me demora.
Me enterra.

Distenda agora o peso pelo chão.
Pense que seu corpo é metal em fundição.
Nem duvide, porque é.

Está quieta. Não se mexa.
Ignora-me.
Me demora.

Espreguiça-te lentamente, ao chão rente.

Levante-se agora.



Manuel Anastácio assina o blog Da Condição Humana, http://literaturas.blogs.sapo.pt/; tem entrada pelos meus "Favoritos". Foto de Robert Portoquá, retirada do Flickr.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

IMAGISMO

Gerana Damulakis


O "imagismo" de Sylvia Plath, devedor do imagismo de Pound, é patente em um poema intitulado "Elm" ("Olmo"): "O amor é uma sombra./ Como você chora e mente por ele./ Ouça: estes são seus cascos; fugiram, como cavalos". Ao objetivar a emoção, a poeta como que clama por uma movimentação das imagens. Acrescento um outro dado vindo da observação, da leitura e de debates sobre a capacidade que cada poema traz quanto a ser possível sua enfatização pelo ato da interpretação: a inflexão coloquial, como é chamada por Garcia Lopes.
João Cabral de Melo Neto dizia que a poesia era para ser lida em voz baixa, sussurrando. Mas não toda a poesia. A de Plath tantas vezes pede para ser lida em voz alta, interpretada. Rodrigo Garcia Lopes, supracitado, está no prefácio do volume Sylvia Plath Poemas (Iluminuras, 1991) chamando a atenção para alguns poemas quando, "pode-se falar de poesia como uma performance". E a poeta escreveu: "A lucidez que possa emanar deles (dos poemas) vem do fato de eu ter de lê-los para mim mesma, em voz alta". A exigência da persona, por outro lado, coloca Plath junto dos "poetas confessionais": deu-se o resgate do lirismo como reação às vanguardas e à poesia política. Plath beira, nesta vertente, o genial, ao usar o imagismo brilhantemente e ao conferir tal performance, seu ponto alto.
Quase não se consegue escapar à comparação: Ana Cristina César, no Brasil, vem da mesma linhagem, usando "o objeto natural como símbolo" e "a imagem como um complexo de relações emotivas lançadas na imaginação visual" (RGL).
Vou puxar o fio da linhagem e chegar aos dias atuais para trazer um exemplo, já com o palco preparado pelas poetas anteriormente citadas, para tudo que se desejava; um exemplo que aparece sem a emoção ligeira ou fácil e, sim, com a angústia tratada pelas palavras. Para ser lido em voz alta.

Intermezzo

Kátia Borges

Nunca amei deste modo...
A varanda da casa é testemunha.
Com seu olhar imóvel,
cata as roupas jogadas ao acaso,
quase na rua.
A Lua vibra, no alto.

Quero calma.
Peço silêncio ao arvoredo.
O vento é rebelde, continua mexendo...
As folhas saltam, arrebentam-se no chão, inertes.
Ninhos de aves também são derrubados,
esparramando a intimidade doméstica dos pássaros.

E, dentro do peito, o coração estremece.


Poema do volume De volta à caixa de abelhas (FUNCEB, 2001). Foto de Kátia Borges retirada do blog Madame K.

domingo, 17 de agosto de 2008

REENCONTRO



▫ conto para vozes e coro ▫

Fred Matos


- Era do mangue, era sim, era outra, se desconhece mulher mais séria desde então. Boto a mão no fogo, a língua no pilão, carecer não carece de maior explicação. Madalena, nome de vida, que não se pode manchar o de nascida, de batismo. E de agora de novo que é Doralice.
- Dos de lá, dos daquele tempo, não tivera notícia, até que um dia, mundo pequeno, traiçoeiro destino, não faz muito tempo. Na porta da igreja, missal na esquerda, na destra a criança, o passado nos olhos, na tez palidez, no coração o susto. Queria não ver, tenção de fugir, bambas as pernas, nada pôde fazer.
- Na vida começou mal botou peitos, ainda menina, levada pela mãe pra beira da estrada.
- É o destino: os rapazes descem pra capital ou pra São Paulo, as moças, quase todas, pra vida, naquele sertão miserável.
- É isso ou morrer de fome, deixar à míngua os velhos e os fedelhos.
- Dois anos antes pai tinha ido pro corte de cana em São Paulo com promessa de voltar com dinheiro no fim do serviço. Nunca voltou, nunca deu notícia. Um ano passou se foi João, meu irmão mais velho, prometeu trazer o pai e dinheiro, também não tinha voltado nem se sabia dele o paradeiro. José, o outro, logo arriba de eu, mãe não deixou ele ir. Entre João e José era Rita Maria, fazia a estrada desde dias depois que pai sumiu. Naquele ano que João se foi, ela tomou boléia em camião e também não deixou rastro. Ficou tudo nós com fome. Da roça nem maniva, nem agave. Na cozinha, nem açúcar, nem sal. Abaixo de eu, Quim, Rosalva, Cosme e Lia, essa, tão miúda, ainda de braço.
- Nunca foi santa. Foi sempre boa bisca. Desculpa esta esfarrapada. Não procede que vire puta toda menina pobre desta parte. É querer deslembrar o regrado das outras, no mesmo saco baralhar todas farinhas. Foi tudo ambição de luxo e luxúria. Mal de família apartada de Cristo, o pai que bebia de um tudo e arredou-se, a mãe que se fretava com qualquer um, um sem modo no sentar, a boca suja de pervertimentos. As filhas, os três vinténs perdidos na estrada. Os filhos na bebedeira e na preguiça.
- De uns não desgostava decerto, de outros engolia o nojo, uns pagavam trocados, alguns conversa fiada, outros davam porrada... e o ganho, sempre pouco, pouco era pra alimentar tantas bocas famintas.
- Um dia briguei com mãe. Cheguei da estrada cansada, a fome roendo as tripas, não encontrei de comer, nem farinha, nem carne seca, nem pedaço de rapadura, nem raspa de melaço. Eu, que de tudo comprava, nem sobra achei naquele dia, os outros tudo de bucho cheio. Fiz minha trouxa, o pouco que tinha. Tinha o destino traçado, no encalço de Rita Maria.
- Cidade da perdição, Juazeiro da Bahia. Ruas e mais ruas, transversais da ferrovia, castelos porta com porta, antro de sem-vergonhices, luzes vermelhas acesas, faróis do mau caminho.
- Uma flor murcha, chegou aqui maltrapilha, na trouxa uma muda de fedida chita mofada. Descalços os pés, rachados no asfalto quente. Os cabelos sujos, embaraçados. Fazia dó. Mas dava pra se vê que era bonita e o corpo de agradar qualquer fino freguês. Bateu na porta, pediu abrigo. Arrumei-lhe um quarto, dei roupa nova, perfume e batom. Dormiu o dia inteiro jiboiando. De noite foi sucesso no salão, ciumando as mais antigas, nenhuma tinha dela o mesmo viço.
- Fez fama no Juazeiro, a mais cobiçada de todos, até se fazia leilão para se ser da noite o primeiro. Até que um dia assucedeu.
- Menino mimado, tímido, criado no bem bom da capital, Jorge, neto de Seu Remígio, fazendeiro dos mais ricos, dono de légua e léguas, dez mil alqueires do norte nas barrancas do São Francisco, estava de férias com o avô.
- Um absurdo o velho safado levar para o antro o menino. O inocente pouco passara dos quinze. Correu logo a notícia, na praça, no mercado, que o coronel Remígio contratou por um mês inteiro, pagamento adiantado, a exclusividade da menina puta. Se diz que foi dinheiro tanto que muitos não ajuntam em anos de labuta.
- Era a mais nova da casa, a mais cobiçada, o coronel não regateou, pagou na bucha, adiantado, mas não foi o exagerado que o povo diz. No outro dia trouxe o imaculado. Por aquela porta entrou cabisbaixo, modos miúdos, um acanho de olhar nos olhos da gente e no derredor.
- Muito, muito lisos e muito pretos os cabelos. Bonito como um anjo menino, nunca nem vira mulher pelada, me chamou de senhora, me tratou como princesa, mas não deu fé no primeiro dia. Um fiozinho de voz mansa e calma pediu segredo, que não mangasse dele nem nada dissesse a ninguém do decorrido. Deitados, ficamos nus abraçados muitas horas, ele me beijando como se fôssemos namorados e querendo saber um tudo de mim, me compreender coisas que nem eu sei, as mãos macias correndo meu corpo, a ponta dos dedos deslizando, deslizando, me deixando louca de vontade como nunca dantes, um arrupio na pele toda. Nada houve que eu fizesse do tudo que já sabia das lições da vida. Chorei, ele me bebeu as lágrimas, abraçou mais forte, prometeu me tirava daqui, me levava com ele pra cidade da Bahia.
- Antes, quando meu avô me disse do que tratara, e eu concordando, o medo escondido na vontade do jamais, não pensava possível tanta lindeza enfiada prisioneira naquele lugar, naquela vida. O corpo formoso, as feições finas, um modo precioso de andar como voando, borboleta ou bailarina. Era em nada diferente das mais bonitas meninas de Salvador, somente no modo de falar ignorante, coisa que se aprende. Senti vertigem. Foi a fedentina do quarto, colchão de palha, lençol furado, paredes mofadas, o confuso de sons vindos do salão invadindo o quarto, eu me sentindo como se mil olhos nos observando. Pedi a vovô que a levássemos pra a Olho d’água, fazenda mais longe, onde não iam da família as mulheres, a avó, as tias. Nada nem ninguém pra atrapalhar.
- Quem nunca comeu melado, quando come se lambuza, mas é o meu neto mais velho, não lhe podia negar a prenda, passar um mês inteiro enfiado nas carnes frescas da quenga.
- Foi reboliço no mangue, de tudo se imaginou e se disse, quando se viu Madalena, vestida de moça decente, acomodada como sinhá de luxo, no banco de trás do Buick, encostadinha a cabecinha na do neto do coronel. Pareciam recém-casados saindo em lua de mel, só faltavam latas atadas no pára-choque do carro. Ao guidão, compenetrado, a feiúra mal encarada de Dalberto, pistoleiro temido, destacado pelo avô pra guardião do menino.
- De nada aqui se sabia da procedência da moça, ninguém era de saber, nem perguntar se ousava. Seu Remígio mandara avisar que o neto chegava e o trato que se devia era o mesmo que o pra ele, dono de tudo que há. Seu Dalberto trouxe os dois e o recado das ordens pra serem cumpridas.
- Bonitinho de se ver os dois no riachinho se banhando nuinhos, um fiapinho de água pequenininho, rasinho, que quando de pé um adulto só molha tornozelos. Os dois deitadinhos, juntinhos, ele alvo como leite, ela um tiquinho mais corada, na água friinha quase gelada. No outro dia Seu Dalberto avisou pra não espiar. Era ordem pra cumprir. Ninguém podia ir ao riacho quando eles se fossem pra lá.
- Aquele quase mês mudou minha vida, aprendi ali, naqueles dias, tudo o que ela aprendera, os segredos todos do coito, um Kama Sutra sertanejo, mas não é justo que a isto se atribua a paixão que me tomou, ela nasceu antes, nasceu naquele quarto imundo.
- Disse que me ia levar com ele, mas eu sabia ser sonho, que o avô não era de consentir no destrambelho, mesmo assim preferi sonhar, pelo menos enquanto durasse, e disse que sim, que eu ia para onde ele levar me quisesse. Pra o inferno que fosse eu ia, que o paraíso com ele eu já conhecia.
- Jorge chorou, amuou-se, a razão não escutava, tive que lhe propor um trato, manteria a quenga na Olho d’água, guardada e bem tratada, como se fosse senhorita, e que ela a visitaria todos os anos nas férias juninas. Contava que um ano distante fosse tempo suficiente para sarar a loucura, eu jamais permitiria que ele a visse de novo.
- Moça, o coronel manda, eu cumpro, a ordem é lhe dar sumiço, se por bem mandou dinheiro, não é pouca coisa, dá pra ir bem longe, montar quitanda, largar dessa vida maldita. Se por mal, precisando lhe mato sem judiação, um tiro no peito está feito, mas não quero esse desfecho, carregar comigo essa culpa, que o seu é sangue inocente.
- É por bem que eu obedeço, mas não carece o dinheiro.
- Ocê se deixe de orgulho, esse vem de onde não falta.
- Se falta não há de fazer, se não é paga por coisa não feita, se não é esmola ofendida, se é de boa intenção pr’eu mudar de viva, se é pra não fazer desgosto a Seu Remígio...
- Você não volta no mangue, ninguém há de saber deste trato, nem do seu paradeiro, se lá tem coisa que queira eu busco.
- Tudo o que eu tenho, Seu Dalberto, são as prendas que Jorge me deu: um colar, um anel, roupas bonitas. Careço só de uma mala que em trouxa não se há de ajeitar esse tanto de riqueza...
- O serviço foi feito. Aquela não volta mais pra essas bandas. Não fez precisão de matar, o dinheiro não queria, foi um custo que aceitasse. Levei até Salgueiro, botei num ônibus pra Timbaúba, de lá ela traça o destino. A criatura tem juízo, não chorou, não mostrou medo, parece até que sabia que era o certo de ser feito. O coronel não se avexe, na volta passei no puteiro: avisei que a quenga escafedeu-se e que dela lá se esqueçam.
- São sete anos passados desde que ela chegou. Nem um mês levou, comprou barraca na feira, no outro mostrou barriga. Trabalhadeira que só, em mais cinco se fez comerciante na praça. Nas horas de descanso ia pra escola noturna. Pra homem não dava trela, até conhecer Vitalino.
- De nada fui enganado. Quando a pedi pra casar me contou sua toda triste história e eu dei meu nome ao seu filho. Era do mangue, era sim, era outra, se desconhece mulher mais séria desde então. Boto a mão no fogo, a língua no pilão, carecer não carece de maior explicação. Madalena, o nome tal qual o da arrependida, nome de vida. De batismo e de agora de novo é Doralice. Dos de lá, dos daquele tempo, não tivera notícia, até aquele dia, mundo pequeno, traiçoeiro destino, não faz muito tempo.
- Na porta da igreja, missal na esquerda, na destra a criança, o passado nos olhos, na tez palidez, no coração o susto. Queria não ver, tenção de fugir, bambas as pernas, nada pôde fazer. Era Jorge. Teria vindo em seu encalço? Seus olhos se encontraram, nenhuma palavra foi dita, os olhos dela molharam, os dele secos se desviaram como se ela fosse maldita, deu no chão uma cusparada, apressou os passos pesados, saiu de vez da sua vida.



Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB,2006). Foto de xbolotax, retirada do Flickr.

CATIMPLORA - CATIMPLORA???

Gláucia Lemos


Se você é da geração-internet, ganha um sorvete, escolhendo o sabor, se souber o que é catimplora, sem recorrer ao Google, ao Houaiss ou ao Aurélio.
Por falar em sorvete, hoje eu estava me proporcionando uma rara transgressão sabor-chocolate, e sentenciei que quem inventou o sorvete está no céu. Eu tenho a pretensão de conceder um lugar no céu a todos aqueles que inventam ou descobrem alguma coisa que me seja útil ou agradável. Quem inventou a lava-louças está no céu, quem criou as receitas de todos os pudins do mundo está no céu, e por aí vai também o inventor do sorvete, essa divina delícia. Meu filho embarcou no meu delírio e brincou: foi alguém que pôs o suco para gelar, perdeu a hora, o suco congelou, ele bateu no liquidificador, e assim começou o sorvete.
Bobagens à parte, que a gente às vezes precisa de um tantinho de idiotia para refrescar a cabeça - não conheço alguém que não goste de sorvete. Não há inverno que dispense um sorvete na sobremesa do almoço.
Passados das primaveras etárias, começamos a descobrir a dieta dos diet e dos zero. E entram os sorvetes diet e os zero-gordura, e –Deus do céu!- os zero-açúcar. A pergunta é: com o que são adoçados os sorvetes zero-açúcar? Aspartame? Cruz Credo! Invade as gavetas da memória sem pedir licença e embola tudo o que encontra por lá. Eu até já ando pensando 10 vezes antes de entrar em uma conversação, porque é certíssimo que, se for falar que fui comprar um presente, vou esquecer a palavra PRESENTE, se ligar para convidar alguém para jantar, vou esquecer a palavra JANTAR, acaba sempre me fugindo a palavra principal da frase. Isso graças a um decênio ingerindo o famigerado aspartame.
Se não o adoçam com aspartame, talvez o façam com ciclamato. Deus que nos defenda! Dizem que é cancerígeno. Mas o sorvete de framboesa zero-açúcar é adoçado com alguma substância, sim senhor, é gostosinho, eu o degusto todos os dias, embora ainda não saiba de onde vem a leve doçura.
No entanto, que saudade! Nada se compara ao sorvete da infância. No tempo em que não havia carrinhos de sorvete rodando pelas ruas do bairro, badalando um sininho que era uma senha para o despertar de todas as crianças que estivessem no mais profundo sono da tarde. Anterior ao carrinho de sorvete da geração dos meus descendentes, houve um tempo em que não se vendia sorvete industrializado. A gostosura era fabricada por mãos hábeis não sei de quem, preparada sem essências artificiais, sim com frutas ou coco ou chocolate ou favas de baunilha. O sorveteiro o trazia em um recipiente semelhante a um balde de madeira grossa, que continha um outro, cilíndrico, de alumínio ou de flandres, rodeado de pedrinhas de gelo e de sal grosso. Ainda não existia o isopor que hoje nos socorre.
Quando, no meio da tarde, o sorveteiro gritava na esquina da rua o pregão esperado Sorveeeeeeeete! Chocolate, coco e baunilha! a maciez gelada já começava , por antecipação, a se fazer sentir na língua, e a descer lentamente pela garganta, como a sensação mais agradável que poderia ser proporcionada a uma menina de nove anos. Era o momento em que a menina acreditava que Deus existia e gostava muito dela. Desde aquele tempo eu acredito que quem inventou o sorvete está no céu. Acho que com muito merecimento, é, ou não é?
Ia me esquecendo de contar que eu não compreendia como era que o sorveteiro, aquele mensageiro dos deuses que me fazia feliz todas as tardes, suportava carregar na cabeça aquela catimplora tão pesada. Por que era que a minha alegria de todos os dias precisava pesar tanto na cabeça daquele homem abençoado, e teria que estar guardada naquele vaso de nome tão esquisito.
Mas hoje a minha preocupação vai mais longe, penso em quão mais triste seria o mundo se a alegria de uns tivesse sempre que estar presente através de um peso para outrem. Então, por questão de consciência, a quantas alegrias seria necessário renunciar, além das muitas a que já renunciamos por motivos os mais variados.
Enfim, a própria vida já é contraditória: ela é tão má, tão sem contemplação, no entanto, é tão bom viver!

Gláucia Lemos escreve crônicas neste blog para um livro que nasceu aqui. Foto de Andre Maceira, retirada do Flickr.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

OS BARCOS DA TARDE


Gláucia Lemos










Vede os barcos que ficaram solitários
quando os ventos passaram...
São como a alma
das mulheres sozinhas
quando passaram os tempos
das esperas.

Não tocai nessas velas,
não tocai!
São como os seios
das mulheres castas
pulsando inutilmente.
Não tocai...

Vede como são mortos
esses barcos...
Como morrem em silêncio
essas mulheres...



Gláucia Lemos publicou este poema na revista ArteLivro, 1996.A foto foi retirada do Flickr, de Loulair Harton.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

EPIFANIA


Ruy Espinheira Filho


Alguns anos não consigo
deixar nas águas do Lete:
os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete.
Muitas coisas se afogaram,
e rostos, e pensamentos,
e sonhos, e até paixões
que eram imortais...
Porém,
os meus magros dezessete
e os teus catorze morenos
não entram nem em reflexo
nesse Rio do Esquecimento.

Que magia nos levou
a um espaço e a um momento
para que de nós soubéssemos:
tu, meus magros dezessete;
eu, teus catorze morenos?
Que astúcia do Imponderável
nos abriu aqueles dias
que permanecem tão claros
como quando nos surgiram?
Eu não sei. Mas sei que a vida
nunca mais me foi vazia.

Como não foi fácil, nunca,
por tanto me visitarem
os Arcanjos da Agonia.
Pois, se fui iluminado
por estarmos lado a lado
— os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete —,
seria fatal que também
viesse a sentir a alma
em chagas multiplicadas
por setenta vezes sete.

Ah, os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete!...
Quanto sofrimento fundo
— mas quanto sonho profundo
e alto! Que belo mundo
foi-me então descortinado,
porquanto me era dado
o privilégio preclaro
de penar de amor no claro,
no escuro, em todas as cores,
em todos os tons da vida,
dia e noite, noite e dia,
varrido ao vento das asas
dos Arcanjos da Agonia
(que eram, por algum prodígio,
os mesmos da Alegria!...).

Ah, que por mim chorem flautas,
pianos, violoncelos,
as cachoeiras, os céus
comovidos dos invernos...
Chorem, chorem, que mereço
essas lágrimas, porque
tudo sofri no mais pleno
de paraísos e infernos.
Que chorem... Mas eu, eu mesmo,
não choro... Como chorar,
se mereci essa dádiva
de um amor doer na vida
por setenta vezes sete
mais que qualquer outra dor,
mais que qualquer outro amor?
Só me cabe agradecer,
pois a vida perderia
(e, o que ainda é mais cruel,
sem nem saber que a perdia...)
se não provasse os enredos,
insônias, febres, venenos
que em meus magros dezessete
acendeu a epifania
dos teus catorze morenos!

Na foto, a capa de um dos livros de Ruy Espinheira Filho, Elegia de Agosto e Outros Poemas (Bertrand Brasil, 2005).

PLENO DE VIDA AGORA



Walt Whitman







Cheio de vida agora, sólido, visível,
Eu, quarenta anos nos oitenta e três anos dos Estados Unidos,
A alguém daqui a um século ou daqui a qualquer número de séculos,
A você que ainda não nasceu, estou procurando você.

Quando você ler isto, eu que era visível, serei invisível,
Agora você que é sólido, visível, percebendo meus poemas, procurando por mim,
Fantasio o quanto você seria feliz se eu pudesse estar com você e fosse seu camarada,
Sinta isto como se eu estivesse com você. (Esteja seguro que eu estou agora com você).





Esta é uma tradução bastante livre, enfatizando apenas o conteúdo, do poema "Full of Life Now", de Walt Whitman. A seguir, leia o poema "Pensa, Whitman", de Nilson Galvão; então, sinta apenas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

PENSA, WHITMAN

Nilson Galvão







Pensa, Whitman, a poesia triunfou.
O homem só pode viver do que sonha,
e de sonhos é composta toda a trama
que há em volta. Toda maravilha
do mundo.


Calcula, Whitman. Toda a extensão do teu amor
não abarca a extensão do que veio e virá
para além dos teus versos. Mas
o amor, Whitman, foi inventado pela poesia,
e a ela deve tudo. A poesia
triunfou.



Este poema está nos blogs Blag e Madame K, ambos com entrada nos meus "Favoritos".

A CONTRAMARCHA

Aramis Ribeiro Costa


para o poeta Cajazeira Ramos


É preciso deixar os deuses quietos
Que as caravanas passam e eles ficam
E os cães ladrando insanos, irrequietos
São meros animais — com tudo implicam.

É preciso deixar os deuses mansos
Que dos mortais há muito se fartaram
Deixar que esqueçam seus eternos ranços
E olvidem sobretudo que falharam.

É preciso que os deuses, no silêncio
Não impeçam as lentas caminhadas
Que vão do sonho louco à ponte pênsil
E renascem na luz de uma alvorada

A Lua se sumindo na neblina
O Sol iluminando o pó da estrada.




Este poema dialoga com o poema "A Marcha" de Luís Antonio Cajazeira Ramos.
Aramis Ribeiro Costa tem 17 títulos publicados, é ficcionista e poeta, autor de Espelho Partido (FUNCEB, 1996).

A MARCHA

Luís Antonio Cajazeira Ramos



É sempre madrugada, os deuses dormem,
o céu é longe, a caminhada insana,
e vai, antes que os vórtices se formem
no pó da estrada, a lenta caravana.

Nem o ganir do cão, rasgando as fardas
deixadas para trás, quebra o silêncio
dos deuses — não se envolvem nas jornadas.
...E o dia é logo ali, na ponte pênsil.


Só a neblina esconde leve a aurora
e vê (se é dado ver ao vento frio
que sabe quanto é morna qualquer hora)
a razão do vacilo e do arrepio


contra o salto no abismo: os desenganos.
Abandonem seus deuses, homens! Vamos!




Luís Antonio Cajazeira Ramos assina a antologia de seus poemas intitulada Mais que sempre (7Letras, 2007).

A CASA



Gláucia Lemos




Eu sou a tua casa, sou teu pouso.
Deita na rede que te dá meu colo.

Eu te amo como o rio que prossegue
no leito que não muda nem regressa.
Como a união das asas da gaivota
na sincronia firme do seu vôo.
Eu te quero como a dor que me persegue
pelo pão que me alimenta em teu abraço.

Vem ter comigo quando a noite é treva!
Pois é na nossa chama que se eleva,
que o universo se ilumina e aquece.



Gláucia Lemos é autora de Procissão e outros Contos (FUNCEB, 1996) e mais 20 títulos.

TÃO IMENSO


Kátia Borges





Tão pouco, este meu suado salário,
pelo qual agradeço, cada centavo,
cada moeda de dez, cada níquel
que sobra no bolso.


Tão pouco, este meu teto, abençoado,
sobre o qual se sustentam outros sete,
mesmo que ainda deva uns tostões à CEF,
e a vizinha de cima faça barulho.


Tão pouca, esta minha poesia,
pela qual agradeço, cada verbo,
cada palavra rimada, ritmada,
cada verso que escapa.


Tão pouca, esta minha vida,
pela qual agradeço, cada órgão
que funciona a contento. Cada um dos meus olhos,
caçando beleza, achando mistérios.

Tão pouco, este meu talento,
pelo qual agradeço, estas mãos,
que aprenderam cedo a ganhar o pão.
E esta língua, que não sabe de línguas, mas fala de amor.


E este amor, meu amor, este amor.
Tão pouco, este amor,
pelo qual agradeço.
E tão imenso.



Este poema de Kátia Borges está nos blogs Madame K e Blag. Kátia Borges é autora do volume de poemas De volta à caixa de abelhas (FUNCEB, 2001).

terça-feira, 12 de agosto de 2008

EU, JAMES GANDOLFINI (OU JUKEBOX)


Lima Trindade


Eu era o James Gandolfini naquele filme em que ele contracena com a Julia Roberts. A noite estava quente e seca como o diabo e eu entrei no Caneca de Prata louco por um chope cremoso. Antes mesmo de começar a beber, já sentia o chope escorrendo pela garganta, molhando meu cavanhaque espesso e ruivo, quase castanho. Os lábios, molhados da espuma cremosa do chope, não para me sentir desejável ou sexy ou quente como aquela noite de outono. Muito mais, eu pensei, eu penso, agora aqui sentado no balcão, muito mais que não chovia há um bom tempo e eu não costumava avançar pelas ruas com uma garrafa de conhaque debaixo do braço, oprimido pelo intuito imperioso de encontrar alguém que me amasse como eu era – grande, gordo e calvo; olhos bovinos, mas, no entanto, dentes brancos e perfeitos – porque eu me cuidava de verdade, gostava de mim, gostava tanto que me mimava às vezes e ouvia Charles Mingus e lia Caio com a paixão de quem faz tudo isso sem comer morangos mofados. Se a gente deixa o mofo crescer e se espalhar pelo pulmões, eles fazem um puta estrago dentro da gente. Todavia, ainda que, pense comigo se não tenho razão, ler Caio – eu quase vejo ele em minha frente: magro, alto, olhos bovinos, calvo e a pele esverdeada –, assim como ler Hilda ou Trevisan – eu quase o enxergo também: os cabelos lisos, espetados, os ossos da face, o sorriso e o olhar maroto – ou, me desculpe se excedo, contudo, saiba, é absolutamente necessário que eu escreva, ou ter conosco Lygia e os contos de Lygia, pense e admita, isso é a mesma coisa que na solidão nunca estar sozinho. São quatro anjos pousados sobre nossos ombros. E a gente pode chorar junto de felicidade, a alma saciada e o corpo pedindo mais. O corpo gritando que a gente vá para a rua e entre num bar como esse, onde a luz é parcial e se pode sentar bem de junto ao balcão, mesmo sendo você o James Gandolfini ou alguém parecido com este homem ao meu lado, baixinho, barba grisalha, pele morena e igualmente gordo como eu. Contudo, repare, reparo, parecemos mais fortes do que gordos, pois nossas carnes são duras, rijas e imponentes. Sim, é verdade. Eu e o baixinho ao meu lado. Parecidos com esses aí das mesas ou aqueles lá adiante, a conversar. Ou com o grupo de amigos em pé e do lado de fora. Cães – melhor diria, ursos? – zelosos, protegendo a fachada do bar. Todos eles lembram um pai perdido, um pai que, por um desentendimento qualquer, juntou as tralhas e ganhou o mundo. Não caio nessa. Essa é apenas a leitura mais fácil. A lógica pão-pão-queijo-queijo. Tão simples quanto enganadora. O baixinho ao meu lado possui um olhar tristíssimo, apesar do sorriso meigo e os gestos seguros ao levar a caneca de bebida à boca, molhando a barba de espuma. Ele não parece meu pai. Quero dizer, todos se parecem pais quando são ternos e acolhedores. Que se foda Freud e seus complexos. Quando a gente quer trepar, ao contrário do que segredou minha psicanalista (sim, eu faço análise), a última coisa que lembramos, lembro, é dos pais. Eles nem passam pela nossa cabeça. Se passassem, brocharíamos. Então, se acontece o lance da paixão, pouco me importa querer explicar qualquer merda dessas. Sou eu e ele. Dois caras. Homens. Se amando. E o baixinho é bem bonito. Há um quê árabe nele. Contei que amo os homens árabes? Não? Não importa. Importa. Suas sobrancelhas são grossas e os olhos amendoados. Ele me olha timidamente e enviesado, não diretamente, estamos lado a lado. O baixinho me vê por meu reflexo. Olha minha imagem no espelho em frente. Espelho que se faz de parede e abriga prateleiras com inúmeras garrafas de uísque, vodca, martini. Espelho-parede que reflete a procura, minha, dele e dos demais. Entre garrafas o vejo, bonito como ele só. O garçom traz outra caneca de chope. Devo ter bebido quantos, meu Deus? Sete? Oito? É hora de acender um cigarro. Estamos imóveis os dois. Não respiramos. Lado a lado. Três jovens conversam numa mesa ao centro. Falam de desemprego, crise econômica, corrupção política, desespero. São minoria no bar. Nas demais mesas do salão reinam, absolutos, os coroas. Ou maduros, se preferir. Os jovens são minoria, mas se sentem à vontade. Um deles se levanta, deposita uma ficha na máquina colorida do fundo do bar. Escolhe um tango antigo. Começa a dançar. Não é Gardel. Nem Piazzola. Ele dança com um parceiro imaginário, os braços envolvendo o próprio corpo esguio. O incrível neste bar é justamente isso, nele você pode ser e querer o diferente. Dá-se ao luxo até de ser melancólico numa noite seca de outono. E romântico. Em uma mesa perto da entrada, um homem de bigodes bastos segura a mão de um senhor negro, vestido de jeans e camisa de algodão branca. Fumo meu cigarro. Sou James Gandolfini e posso me transformar em Jack Radclif de um instante para o outro se desejar. Eu, James e Jack. Jack é um homem quase perfeito na opinião de vários conhecidos meus. A salvação, para mim, é o quase. Não gosto de perfeições. Nada mais pobre no mundo quanto algo perfeitinho guardado numa caixinha de cristal para todos apreciarem e serem alertados que não é permitido tocar, avançar a linha amarela ou fotografar. Pff! É como a vida sem a loucura, a música sem a dissonância, a memória sem seus vazios. De qualquer modo, viro-me em direção ao homem árabe. Ele pode se chamar Kalil, Lázaro ou Marcelo. Viro-me. Viro minha cabeça e corpo, esbarrando levemente o joelho em sua cintura, projetando minha vista para além dele, para fora do Caneca de Prata. Estou suando. Permaneço nesta posição alguns segundos, esperando. Ele não se move, o rosto voltado para o maldito espelho que reflete outro espelho na parede atrás de nós. Esquadrinha-me. Ri de mim. Posso jurar mesmo sem ver. Finjo esperar alguém, encaro o relógio e volto para posição anterior, a cara enfiada no balcão, sonhando com a morte. Fim do tango. Silêncio. Suspense. Uma nova música se inicia. Ele se volta para mim. Toca One, do U2. Eu o espio pelo espelho-parede, desenho fragmentado entre rótulos e vidros coloridos de bebidas. É o momento de falar “oi, eu me chamo James Gandolfini”. Reconheço a voz de Bono e balanço a cabeça no ritmo do som. Ele espera um sinal, uma palavra, um gesto meu. Está de frente pra mim. Esperando. Eu despenco. Adio. Faço-me prisioneiro. O pior: capaz de perceber toda a doçura existente neste homem, sentir seu perfume misturado ao sabor tenro de um bom charuto. Escurece dentro de mim. Estamos eu e o árabe juntos. Recordo a cena de um filme, uma página lida em solidão. Milhões de livros despencam de dentro da minha cabeça. Um passeio de carruagem. O veneno e a palidez de um jovem casal. Vivo neles e eles em mim. Lanço meu apelo, meu pedido de socorro, cego sobre os arranha-céus. E não adiantam as telenovelas nos horários nobres, meu coração machucado navega numa caneca gelada de chope. Se eu falasse, talvez seguíssemos por um caminho conhecido, seguro. Nós brindaríamos sorridentes na madrugada. Nossas palavras se emendariam e se complementariam, completando-nos. Quando estivéssemos bem bêbados, pagaríamos a conta, acenaríamos para a pequena imitação do David de Michelangelo na estante e avançaríamos São Paulo adentro no meu velho carro prateado. Eu mostraria a ele minha casa, as fotos premiadas numa exposição, minha banheira. E, antes do amor, eu secaria suas costas com toalhas felpudas, exibindo toda a minha calma e tranqüilidade. Depois, diria ao meu homem árabe que foi tudo muito mais do que uma boa foda. Ele juraria um amor misturado a choro e bebedeira. Eu acreditaria. Eu quero acreditar. Dividiríamos nossas horas entre filmes em preto e branco e beijos intermináveis. Seria este o cenário. O amor, novamente um clichê. Transformaríamos nossas vida num roteiro ruim. E então, quando não sobrasse insignificância que não fosse conhecida, o celular dele tocaria baixinho, quase sem alarde, sorrateiro. E de seu ruído morno, o convite para a despedida. Eu não sou daqui, ele me dirá... Eu não tenho amor... Sou da Bahia... De São Salvador. O telefone e um chamado urgente. Eu mudo, diante do fim. Estarei no aeroporto e não terei coragem de estender meus braços. Ele não olhará para trás, para encarar a fúria e o desespero do meu corpo. E eu não estarei mais lá. Eu, um pobre James Gandolfini abandonado. Ele, meu homem árabe. Ou, imagine, imaginem, nada tanto assim. Talvez apenas eu e ele parados dentro desta noite quente como o diabo, outonais. Estaremos no Caneca de Prata e o calor agitará o ar até que espessas nuvens se formem, o vento irrompa sem aviso e grossas gotas de chuva despenquem com virulência, alagando as saídas do metrô, levando as árvores da praça e inundando nosso bar com a maior tempestade de amor que existiu no mundo. É a mesma tempestade que me fez, me faz, aqui, no Caneca do Prata, chamar o garçom e pagar a conta, deixando-o ali, sentado no balcão. Tão distante e inalcançável como é belo o azul.




LIMA TRINDADE é autor de Supermercado da Solidão (Novela, LGE, Brasília, 2005), Todo Sol mais o Espírito Santo (Contos, Ateliê Editorial, São Paulo, 2005) e Corações Blues e Serpentinas (Contos, Arte PauBrasil, 2007).

Foto: Lima Trindade e Gerana Damulakis