sábado, 29 de novembro de 2008

LUCIDEZ



Manuel Anastácio


Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
dentadas.
Não te lances ao pescoço das cobras
Não te lances
Não
Não te lances
Não te lances aos transes depressivos da repetição
Aos lances regressivos da depressão
Não
Não te lances
Não avances
Deixa-te estar, a ver cada réptil passar sob os teus pés
E a rirem em ti da sua frigidez
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
almas penadas
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
almas geladas
Não te lances se tens medo
Se tens medo, não avances.

Mas só se tiveres medo.



Manuel Anastácio é poeta, assina o blog Da Condição Humana: entre em http://literaturas.blogs.sapo.pt/, ou use a entrada pelos meus Favoritos.

"Lucidez", por yang_83, retirado do Flickr.

MANHÃ


Gláucia Lemos


Pela manhã os pombos vêm. Esvoaçam, irresponsavelmente, e se empoleiram na fiação elétrica. Não ficam. Só alguns. A maioria retoma o vôo, manobrando com graça as asas simétricas, à pouca altura, planando como se um grande prazer lhes chegasse da exibição no espaço, na frouxa claridade semi-aberta. O vôo é uma suprema beleza inatingível a muitos. É um poder. Não só de Ícaro foi o maravilhoso sonho. Todos, alguma vez, elaboramos nossas asas de cera e nos alçamos à meta de algum sol. Inútil tentar saber quantos terão se erguido da queda; quantos terão carregado uma sutura no rosto, um coração transplantado, um pé defeituoso, uma cicatriz no peito, resquícios do seu sonho de Ícaro. E todos continuarão tentando, faz parte da programação existencial. Quem a traçou?
Não está fazendo muito sol nesta manhã. A luz vem coada, lembrando manhãs mal acordadas de cidades da Chapada, ou pós-madrugadas de beira-mar. Tampouco está frio o clima; há uma perceptível friagem, que mais parece umidade, muito confortável para se sentir. Silêncio de templo e nenhuma ventilação. Só agora, neste mesmo momento em que escrevo, uma folha da begônia vermelha no cachipo de bambu, em um ângulo da sala, se põe a tremer levemente, anunciando um princípio de aragem.
Ao longe tem início um ronco de motor, como ronronar de gato. Pressinto que principia a findar este momento de paz. Uma hora, na eternidade, de absoluta paz, que raramente se deixa acontecer, pelo menos para mim, que pouca importância tenho para as horas todas da misteriosa eternidade. Hora episódica, como toda paz. Sem calor, sem ruídos, sem preocupações, sem cobranças existenciais, sem discursos, sem insistência de luz intensa ferindo a vista. Instante de comunhão com beleza e bem-estar. Comunhão com Deus.
Os ruídos dos ônibus lentamente vão se multiplicando. Vão conquistando espaços a poluir, dentro do espaço límpido, puro, belo, tranqüilo, que os antecede. O relógio badala sete vezes. A campainha da porta vibra, chega a titular da cozinha. Minha manhã acabou, tem começo a manhã de todo o mundo.
Ouço, dos longes da minha memória, a voz de Agostinho dos Santos: A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor. Não sei se Agostinho sabia que cantava a verdade. Felicidade é fugaz, está no script: Cai como uma lágrima de amor.


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta, com 33 títulos publicados.

Foto "Manhã em Itapuã", de Briza Mulatinho, retirada do Flickr.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA REFORMA ORTOGRÁFICA DO PORTUGUÊS

O reconhecimento de uma língua é a afirmação de uma nacionalidade.


Maria da Conceição Paranhos



LÍNGUA PORTUGUESA
Olavo Bilac

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!




É minha intenção esclarecer aspectos relacionados à Reforma Ortográfica do Português, prevista para vigorar em janeiro de 2009, não sem antes tecer considerações que julgo de relevância em torno do conceito de língua.

O Brasil, repetidamente se diz, é um país de sorte porque, apesar das dimensões continentais, todos falamos a mesma língua – é o que se diz. Também é comum ouvir que as línguas européias ou africanas ou chinesas, para citar algumas, têm muitos dialetos.

A unidade da língua não exige a imposição de uma norma única. Entretanto, dentre as línguas românicas, o português é uma das que possui norma mais rígida, ao contrário da língua espanhola com diversidade de normas lingüísticas não só no campo fonético, mas no léxico e no sintático. Uma maior flexibilidade normativa livraria grandes setores da população da inútil e deformante carga provocada pela aprendizagem na própria língua materna de todo um conjunto de “normas” estranhas ao seu saber lingüístico prévio, como tão bem expressou Celso Cunha ao se referir à língua espanhola. (Cunha:1985)

O que é, então, língua, dialeto?

É do lingüista Max Weinreich a boutade : “língua é um dialeto com um exército e uma marinha”. A realidade lingüística de fato, parece confirmar Weinreich. A distinção habitual entre língua e dialeto está plantada em critérios mais políticos do que lingüísticos.

Correndo o risco de não ser lida por monótona, indico o óbvio: língua é um sistema de comunicação formado de sons vocais (fonemas), que se agrupam para formar unidades dotadas de significado (morfemas), que se agrupam para formar palavras, que se agrupam para formar frases, que se agrupam para formar textos.

Para a Lingüística, ciência da linguagem que é, não há nada que distinga língua de dialeto. Ambos os sistemas têm léxico (uma lista de palavras) e gramática (conjunto de regras de como as palavras se combinam para formar frases, parágrafos e textos). Quem fala um idioma nacional e um dialeto regional é tão bilíngüe quanto quem fala dois idiomas. Por que, então, alguns sistema lingüísticos são considerados idiomas e outros, não?

Dialeto ou dialecto (mesmo brasileiros deste modo preferem) vem do grego diálektos, composto de diá, (através), e léktos, (fala). Seria, segundo alguns, uma espécie de fala “errada”, um linguajar defeituoso, não conforme às normas consideradas “cultas”, estabelecidas pelos gramáticos. Claro, neste momento falamos de língua oral, da modalidade oral da língua. A primeira definição de dialeto (que teria inspirado as posteriores) se baseava numa visão que a elite ateniense do período clássico tinha em relação à fala tanto das camadas populares quanto a dos estrangeiros (não-atenienses, mesmo se gregos).

Nos dias correntes, considera-se dialeto qualquer expressão lingüística que não a língua oficial de um país. Um dialeto com freqüência é uma variedade lingüística regional do idioma oficial que ganhou prestígio sócio-econômico – soi disant político e cultural (ah, cultura, quantos crimes se cometem em seu nome!). Mas dialeto também pode ser uma língua sem qualquer parentesco com a língua padrão.

O que faz uma língua ser considerada dialeto – mas isso não é regra absoluta e indiscutível - é a ausência de literatura ou de tradição literária. Por óbvio, o seu não-reconhecimento pelo Estado ou mesmo a sua falta de prestígio – critério extralingüístico, meramente sócio-econômico. Há dialetos que reúnem as três condições, inclusive, porém basta uma delas para que um falar regional seja expurgado enquanto língua!

Em relação à presença de literatura, é preciso lembrar que algumas línguas ágrafas, como as nativas da África e da América, têm rica literatura oral, transmitida por gerações em séculos. No entanto, para as elites brancas ocidentais, ciosas de sua tradição escrita, as línguas ágrafas não possuem literatura simplesmente por não produzirem livros...

Unidade na diversidade

Serafim da Silva Neto insistiu na unidade da língua portuguesa no Brasil, entrevendo as delimitações dialetais espaciais não eram tão marcadoras como, por exemplo, as isoglossas (linhas que demarcam a fronteira de um traço lingüístico) da România Antiga. Entretanto, Paul Teyssier reconhece que na diversidade dos falares essa unidade se rompe.


A realidade, porém, é que as divisões ‘dialetais’ no Brasil são menos geográficas que sócio-culturais. As diferenças na maneira de falar são maiores, num determinado lugar, entre um homem culto e o vizinho analfabeto que entre dois brasileiros do mesmo nível cultural originários de duas regiões distantes uma da outra (1982: 79).

A prática dos estudos sociolingüísticos no Brasil demonstrou que o Português do Brasil é heterogêneo e variável, mas também plural e polarizado. Há dois sistemas heterogêneos: a “norma culta” e a “norma vernácula”, ou Português Brasileiro culto e Português Brasileiro popular – como querem alguns autores

Essa diversidade se fundamenta em condicionamentos de caráter sócio-histórico, haja vista

● o multilingüismo (contacto entre falantes de múltiplas línguas distintas);
● os fatos da demografia histórica;
● a mobilidade populacional dos escravos;
● a escolarização no Brasil, no período colonial e pós-colonial.

O que é uma língua?

O reconhecimento de uma variedade lingüística como língua é questão meramente política, já se disse. Por exemplo, o catalão foi reconhecido pela Espanha como língua oficial, ao lado do castelhano, do galego e do basco, depois de ter sido violentamente reprimido pela ditadura franquista. Em Barcelona, é possível comprar edições bilíngües de periódicos diários como El Periódico de Catalunya, em catalão e espanhol.

O Estado terá sempre que temer. E, justamente por isso, reprimir. O reconhecimento de uma língua é a afirmação de uma nacionalidade.

O ponto nevrálgico é o que diz respeito ao “prestígio” de uma variedade. Alguns falares são estigmatizados por motivos históricos ou sociais. No Brasil, que busca lugar no olimpo do Primeiro Mundo, tudo o que lembre o passado rural é alvo de desprezo. Daí o preconceito contra o dialeto caipira e o nordestino, sagrados como ícones do atraso cultural.

Na tentativa de estabelecer distinção entre língua e dialeto que não se apoiasse em fatores políticos ou sociológicos, alguns buscaram critérios relacionados aos aspectos comunicacionais.

O lingüista romeno Eugenio Coseriu propôs o chamado critério da intercompreensão, segundo o qual dois falares podem ser considerados dialetos da mesma língua se seus falantes conseguem compreender-se mutuamente; caso contrário, teremos duas línguas diferentes.


Fraternalmente desunidos

Os falares se distinguem cada vez mais à medida que nos deslocamos num mesmo território. A comunicação entre moradores de duas aldeias vizinhas pode ser plena, ao passo que a comunicação entre habitantes de cidades distantes milhares de quilômetros é quase impossível.


Língua, língua natural, língua artificial...

Nos próximos cem anos 90% das línguas desaparecerão – os estudiosos o prevêem por dedução lógica. Muitos por não terem o status de idiomas nacionais, sendo em muitos casos línguas ágrafas, de comunidades tribais. A causa dessa destruição em massa de línguas é a constrição dos idiomas ditos de cultura. Nas comunidades tribais da África e da América, o imperialismo lingüístico-cultural branco tem mais um violento aliado: os pregadores religiosos de seitas cristãs fundamentalistas, que combatem não só a fé desses povos, mas também as línguas dos nativos, “coisa do diabo”. Hoje, a língua também é um dialeto com um missionário.

Para alguns lingüistas – e esta parece ser a opinião que prevalece - o português falado em Portugal, no Brasil, em Moçambique, em Angola, na Índia ou na China é uma só língua. As variações ou variantes provêm ora da extensão do léxico, ora da grafia, ora do uso mais ou menos corrente de certas expressões ou estruturas sintáticas, ora da pronúncia, a par da incorporação da influência de outras línguas.

* * *


A Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa

Unificação da grafia do português

Unificar a grafia do português nos países lusófonos é antes um gesto político, no qual parece estar o mérito da ação. Encoraja-se a arregimentação em torno de um fator de identidade nacional e um como que “estado de alerta” do vigor do idioma e dos traços comuns entre as culturas que se expressam por meio dele. Isso tende a fazer surgir um maior intercâmbio entre as obras literárias produzidas nesses países.

O português é a terceira língua ocidental mais falada, atrás apenas do inglês e do espanhol.

O filólogo Antônio Houaiss, representante brasileiro durante as negociações com Portugal (que terminaram em 1990), apontara no livro A Nova Ortografia da Língua Portuguesa cerca de 40 mudanças que teriam de ser incorporadas ou à ortografia brasileira ou à portuguesa.

As mudanças, no entanto, dependeram da aprovação do protocolo por Portugal e Cabo Verde. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa existe desde 1990, mas nunca foi implementado, pois precisava da ratificação de todos os oito membros da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa). Apenas três deles --Portugal, Brasil e Cabo Verde-- haviam começado a adaptar suas legislações ao acordo.

Para agilizar o processo de reforma da língua, os chefes de Estado da CPLP decidiram, numa reunião de cúpula em meados deste ano, que bastaria a ratificação do acordo por três países para que ele passasse a valer. O protocolo assinado pelo Brasil em 21 de outubro de 2004 permitiu a entrada em vigor do acordo com apenas três ratificações.
Testamento precoce

Monteiro Lobato, num de seus livros da série do Sítio do Pica-Pau Amarelo, atribuiu a Emília a tarefa de fazer uma "reforma da Natureza": coisa de corrigir alguns mal-feitos do Criador, e consertar o que parecia errado aos olhos de retrós de uma boneca de pano. Ele também tentou "consertar o Brasil" várias vezes, chegando até a enfrentar prisão devido algumas de suas sugestões.

Nenhum de nós será preso pela reforma da Língua Portuguesa,

Não sabemos se nossa bela língua irá se beneficiar dessa reforma. Mas ela está aí e será a língua que irá comandar os destinos do nosso país.

Inelutável que já é a reforma ortográfica do português (escrito, ainda bem que só!), leia-se abaixo.

Uma vez unificado, o português auxiliará a inserção dos países que falam a língua na comunidade das nações desenvolvidas, pois algumas publicações deixam de circular internacionalmente porque dependem de "versão". Um dos principais problemas que as novas regras vão acarretar, no entanto, será o custo da reimpressão de livros. (VEJA on LINE, agosto de 2007)

[...]

O português, segundo estudos, é a quinta língua mais falada no mundo – cerca de 210 milhões de pessoas – e tem duas grafias oficiais, o que dificulta o estabelecimento da língua como um dos idiomas oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU) . A ortografia-padrão facilitará o intercâmbio cultural entre os países que falam português. Livros, inclusive os científicos, e materiais didáticos poderão circular livremente entre os países, sem necessidade de revisão, como já acontece em países que falam espanhol. Além disso, haverá padronização do ensino de português ao redor do mundo. (IDEM)

Sílvio Elia situava o fenômeno lingüístico entre a cultura e a natureza humana. “As línguas não são objetos naturais de estudo, pois se incluem na investigação não das ciências da natureza e sim na das ciências ditas humanas, ou melhor, culturais. Por isso são de natureza essencialmente histórica” (ELIA, 1993, p.103).
Em muitas e distintas oportunidades rejeita a tese de que a língua de um povo é língua natural e que a língua dos chamados homens cultos é artificial.

Hoje sabemos perfeitamente que nenhuma das duas é produto da natureza, pois que ambas representam realidades ‘culturais’, usado o adjetivo com o valor que tem em Sociologia. (ELIA, 1956, p.43).

Portanto, não há língua melhor que outra, já que cada língua representa a cultura desse povo e não há juízo de valor que possa destruir a especificidade de cada cultura – a língua, sua expressão mais relevante

A partir de 1º de janeiro de 2009 as mudanças começam a valer.


Confira o que muda na Língua Portuguesa no Brasil:


Alfabeto

O alfabeto da língua portuguesa passa a ter 26 letras, com a inclusão oficial do k, w e y.

Acentuação

1. Paroxítonas que perdem o acento agudo

1.1. Com ditongos abertos tônicos éi e ói (como idéia, paranóico).


1.2. Com acento circunflexo no penúltimo o do hiato oo (s) (como vôo, enjôo).

1.3. Cujas vogais tônicas i e u são precedidas de ditongo decrescente (como feiúra, baiúca).

2. Hiatos em ee

▪ perderão o acento circunflexo (como crêem, dêem, lêem, vêem).


3. Palavras homógrafas (com a mesma grafia, mas com pronúncia diferente) (como pára, pêlo, pélo e pólo).


4. Trema

Será totalmente eliminadas das palavras portuguesas ou aportuguesadas (como cinqüenta e tranqüilo).

Única exceção: nomes próprios estrangeiros, como “Müller”.

5. Hífen

Não será mais empregado em prefixos terminados em vogal seguidos de r ou s. Neste caso, dobra-se o r ou o s. Exemplos: antirreligioso, antissocial, minissaia.

Será utilizado com os prefixos hiper-, inter-, super- seguidos de palavras iniciadas por r, como “hiper-resistente”.

Também será utilizado em prefixos terminados em vogal (como ante-, contra, semi-) seguidos de vogal igual ou h no segundo termo. Exemplos: micro-ondas, anti-higiênico e pré-histórico.




● A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) é composta por oito países: Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.

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Obras citadas:
CUNHA, Celso. Em busca de uma norma objetiva. A questão da norma culta brasileira, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, 56-57.
ELIA, Sílvio (1956). Fundamentos Historico-Linguisticos Do Português Do Brasil . Rio de Janeiro, Lucerna, 1994.
_________. Língua e herança cultural. A Língua Portuguesa no Mundo. Colóquio. Letras. Livros sobre a Mesa, 120, abr. 1993, p. 196.
SILVA NETO, Serafim da Silva. (1986[1950)]. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Presença.
SILVA NETO, Serafim da Silva. (1960). A língua portuguesa no Brasil. Problemas. Rio de Janeiro: Acadêmica.
ROBERTS, I. e KATO, M. (1993) (orgs.). Português Brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: Editora UNICAMP.
TEYSSIER, Paul. (1982[1980]). História da língua portuguesa. Lisboa: Sá da Costa.


Maria da Conceição Paranhos é formada em Letras, cursou o Bacharelado na Faculdade Santa Úrsula da PUC do Rio de Janeiro, e a Licenciatura, pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia. Ph.D. pela Universidade da Califórnia, Berkeley.
Ficcionista premiada nacionalmente, no gênero conto, dramaturga, tradutora, poeta, apresenta significativo número de publicações em livros, antologias, revistas e periódicos de modo geral.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

BRINCADEIRA


Gláucia Lemos


Eu brinco de te amar, de madrugada,
resguardo no meu colo os teus segredos,
e te amo o dia inteiro às escondidas.

Brinco de te esquecer no fim da tarde,
quando se mata o dia no letárgio
do infausto aguardo, e do inacontecido.

À noite brinco que és tu quem me guarda.
Sou a “rainha da cocada preta,”
sou nau onde navegas teus delírios.

A mão direita sem saber da esquerda...
Um olho crê e o outro ainda duvida...
- Ah! eu só brinco para agüentar viver.



Gláucia Lemos é ficcionista e poeta, tem 33 títulos publicados. Seu mais recente romance (foto da capa) é Bichos de Conchas (Scortecci, 2008).

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

ESSA TERRA


Gerana Damulakis

O romance Essa Terra, de Antônio Torres, foi editado agora pela Best Bolso. Para quem não conhece o primeiro livro da Trilogia Brasil é uma oportunidade e tanto. Preço acessível, edição primorosa. É imperdível a leitura do romance que consagrou Antônio Torres.

domingo, 23 de novembro de 2008

NOTÍCIA À MODA DA CASA


Gláucia Lemos


O encontro foi o de praxe, mas a novidade, o novo endereço.
Poeta mora é em torre de marfim, lá no alto inatingível. Alguns. Alguns também residem em apartamentos, e quando se cansam dos antigos, trocam por novos, assim, tão depressa como se tirassem o escolhido do bolso da camisa. Só assim. Como se fossem figuras de joguinho de computador. Estala o dedo, muda de palácio. Depois é só distribuir e-mail. Novo endereço dois pontos.
E fomos todos reunir na nova moradia do poeta. Novidade? Mais espaço, mais ventilação. O principal, porém, não tem nenhuma novidade, é a acolhida, a descontração do encontro. Grupo pequeno como é bom, meia dúzia de inteligente bom-humor. Reunimos com uma ausência, por conta de acepipe baiano que castigou a leitora crítica, fazendo falta na alegria da noite.
Como sempre, por conta dos afazeres, o casal de doutores chegou por último, para fazer contraponto com a moça que bateu ponto tão mais cedo, que nem o anfitrião tinha chegado à casa.
Jantamos à portuguesa, bebemos à baiana sem álcool, ninguém precisa de combustível para acelerar a animação.
Lá para as tantas, o anfitrião, entusiasmado com a aprazibilidade da varanda, desacomodou todo o mundo da sala para fruirmos a aeração do outro ambiente. Literatura mesmo não aconteceu dessa vez. Literato também joga conversa fora. Até que o doutor tentou iniciar uma conversa pertinente, perguntando a alguém sobre projetos imediatos, mas alguns assuntos interferiram, e o clima da noite estava mais para rir do que para poetar. E rolaram salsichas, pasteizinhos e olhos-de-sogra, refrigerantes diet e comuns, pontuados com piadas inocentes. E lá estivemos, como sempre, até as 10 da noite, quando todos se despediram ao mesmo tempo.
Bom mesmo é uma noite por mês entre amigos despretensiosos, com muita descontração e um tanto de descompromisso; o cotidiano de todos nós já é bastante comprometido com os envolvimentos existenciais que nos são atribuídos pela condição de estarmos vivos e atuantes. Graças a Deus que estamos. E todos, mais uma vez, ficamos felizes, com uma felicidade merecida, aguardando o próximo encontro.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

ATUALIZAÇÃO DA ANTOLOGIA


Gerana Damulakis

Na Antologia panorâmica do conto baiano — século XX — (Ilhéus: Editus, 2004), que saiu na Coleção Nordestina nº 37, procurei uma vasta gama de representantes do conto na nossa terra, incluindo até os contistas bissextos, mas que fizeram nome na literatura. Ainda assim, a crítica, isto é inevitável em se tratando de antologias, apontou ausências. Ora, a antologia deixou de fora os autores não nascidos na Bahia, mesmo que aqui tivessem passado boa parte de suas vidas, pois que há de haver critérios. Ausentes estavam Nelson Araújo, Marcos Santarrita, Ayêska Paulafreitas, Judith Grossman e outros, todos inegavelmente contistas cujos textos antológicos são de fácil identificação porque evidentes em suas obras. Desta feita, na atualização, o critério vai gerar mais ausências. Explico: além de conservar de fora os que não nasceram em terras baianas, estão ausentes baianos que vivem no chamado Sul Maravilha e, talvez, em demais maravilhas Brasil afora. Mas a intenção não é suscitar polêmica, é fruto de fatos desagradáveis. Sem invenção, há autores que residem fora da Bahia que expressaram seu desacordo em fazer parte de antologias produzidas aqui. Como em tantas situações na vida, muitos pagam por poucos, não há como fugir da triste verdade. O caminho foi, para não divulgar nomes, optar por não incluir autores que não residem na Bahia.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

JOSÉ SARAMAGO: 86 ANOS


Dia 16 de novembro José Saramago completou 86 anos. Vale a leitura do texto que ele postou naquele dia no seu blog: O Caderno de Saramago.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

14 DE NOVEMBRO DE 1901: NASCEU SOSíGENES COSTA


O PAVÃO VERMELHO

Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

domingo, 9 de novembro de 2008

O POEMA QUE É UM ROMANCE

Gerana Damulakis


Preciso terminar a introdução da minha antologia atualizada e não consigo. Digo para Cassas que somente depois que concluir a penosa tarefa escreverei alguma coisa sobre seu mais recente livro. Mas algo me puxou, reli o livro de Cassas, senti tudo de novo, aquele encantamento e não vou esperar: vamos ler A mulher que matou Ana Paula Usher (História de uma paixão), editado pela Imago, neste 2008.
Luís Augusto Cassas é um poeta experiente, senhor da palavra, do verso, da estrofe, do poema, fazendo com eles o que desejar. Tenho seus livros e sei do seu caminhar. Não sei é se, por ser este o mais recente livro, sou levada e me posicionar desta forma tão tomada pela emoção, ou se acontece o mesmo a cada vez que recebo um livro dele saído da editora. Sim, porque ele é um poeta que sabe nos arrebatar. Porém, ao ir escrevendo e lembrando que realmente já senti tudo isto por conta de outros dos seus títulos, ainda assim este de agora está me parecendo mais estonteante. É um poema, é um romance, é a história de uma paixão. No final dá uma vontade louca de perguntar se não haveria uma maneira de, em lugar da morte do amor, fazê-lo renascer qual uma fênix. Não, quem renasce não é o amor, é o sujeito amoroso que das trevas procura e encontra a luz. Ora, isto é confundir ficção com realidade. A poesia, por mais confessional que ela possa ser se comparada aos demais gêneros literários, não deixa, por outro lado, de ser a ficção do sentimento. Só que há versos que nos fazem viajar na história da paixão, como em “Torpedo à Moda Antígona”: contigo eu moraria/ numa casinha de palha/ à beira da praia/ onde o vento faz a curva/ e viveria de brisa/ bebendo em teus lábios/ a água que vem da chuva”. É incrível o efeito do livro sobre o leitor, até esqueci que meu olhar deve ser o de uma observadora da literatura e não apenas uma deslumbrada leitora.
O título não deve ser associado nem ao poderoso e emblemático personagem, a amortalhada Senhora Madeline de Usher de Edgar Allan Poe, nem a qualquer outra que se chame Ana Paula, pois não precisamos de pontes. O livro está dividido em partes com seus títulos, contém uma estrutura perfeita, uma organicidade tal que, ao se deparar com seis páginas de prosa, a impressão do leitor é a de que o conjunto em prosa é inteiramente necessário. A prosa vem com o mesmo ritmo dos poemas, numa cavalgada frenética. Leia assim, sem tomar fôlego; depois, releia com calma, aí será de tirar o fôlego!
O poema “Um”, uma conjugação do ato amoroso, está disposto como a seguir: “quando estou em ti/ e tu estás em mim/ inverte-se o princípio/ do início ao fim/ no primeiro momento/ há movimento:/ eu sou tu és/ no segundo momento/ há desfalecimento:/ não sei quem sou/ acaso és?/ no terceiro momento/ viramos fragmentos:/ o nós e o vós/ habitam em nós/ depois não há nada/ e o espírito do só/ recolhe-se ao pó”. Conclusão: é um poema perfeito, leia com amor. Melhor, com paixão. Os poemas “A Cama”, Doença & Cura”, “Herança” ( em linha contínua), “O Vento e a Estrela”, “Dia dos Namorados”, “O Círculo”, “Epílogo”, A Busca do Mito”, “As Núpcias”, suscitam a vontade de começar reproduzindo-os aqui.
“O Discurso de Lilith nos Lençóis de Or” está fechado em cinco capítulos curtos: a primeira mulher, ou seja, o mito de Lilith é irresistível para a literatura, os escritores ficam encantados com a gama de significações encerrada nesta lenda, pois, criados por Deus em condição de igualdade, Adão e Lilith viviam juntos até que ela cometeu o primeiro pecado — que não foi a mordida na maçã — ao proferir o nome d’Ele; expulsa, então, do paraíso graças aos seus excessos, afoiteza e galhardia, e suas inquietações, Lilith passou a simbolizar a desventura, o mal, o diabólico exagero. Adão não suportou a solidão e rogou a Ele uma mulher, mas isto é outra história.Voltando ao “Discurso de Lilith...”, asseguro que é uma peça poética para ser desfrutada com releituras várias, dados a genialidade do discurso e o ritmo impresso; numa certa altura leio: “Sou Sodoma saqueada, Paris desfigurada, Berlim destronada, Londres transtornada. (...) Até ontem fui Noite. Meu nome é Luz”. Já em “A Mulher que matou Ana Paula Usher”, é restaurada “ a luz do meu arco-íris bombardeado”, porque o livro é um reencontro com a luz após um amor doloroso.
O autor sabe trabalhar a matéria amorosa com extrema energia, recorrendo tantas vezes ao acervo mitológico que reforça o imagético mundo de sua poesia. Uma poesia que não receia as exigências discursivas, que conhece os ritmos e os movimentos da língua portuguesa para apontá-los diretamente rumo às brilhantes senhas literárias. O certo é que Luís Augusto Cassas transcende sempre... e daí encanta o leitor.

sábado, 8 de novembro de 2008

DE JOSÉ SARAMAGO

...porque os livros do mundo, todos juntos, são como dizem que é o universo, infinitos...

Ensaio sobre a cegueira

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Gerana Damulakis

Nasceu em 6 de novembro de 1919, em Porto, Portugal. Não há melhor homenagem do que a leitura de seus versos. A poeta, contista e tradutora morreu em 2004, aos 84 anos, em Lisboa. Recebeu o Prêmio Camões em 1999.
Entre os tais versos que me acompanham, como costumo escrever aqui, estão estes:

A bela e pura palavra Poesia/ Tanto pelos caminhos se arrastou/ Que alta noite a encontrei perdida/ Num bordel onde um morto a assassinou.

Mergulhar na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, sendo ela uma das maiores poetas da língua portuguesa contemporânea, é mergulhar num mar puro. Digo mar, pois é evidente a importância do mar na sua obra, e digo puro porque a sua é uma poesia que chama por esta palavra.

A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


Foto retirada do site http://www.instituto-camoes.pt/

PARABÉNS PARA CRISTOVÃO TEZZA!

Gerana Damulakis
Cristovão Tezza venceu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa com O Filho Eterno (Record), publicado no ano passado. Também ganhou o Prêmio Bravo! Prime de Cultura, na categoria melhor livro do ano, e o Jabuti para melhor romance, além de ter sido agraciado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte.
O escritor catarinense vive em Curitiba e é autor de vários títulos, entre os quais lembro com prazer as leituras de A suavidade do Vento, Juliano Pavollini e Trapo.

Foto de stat.correioweb.com.br

terça-feira, 4 de novembro de 2008

VERSOS INESQUECÍVEIS QUE ME ACOMPANHAM



Gerana Damulakis

Meu primeiro choque com a literatura foi com os versos de Manuel Bandeira. Sim, foi um choque. Habituada aos livros porque a biblioteca da minha casa era enorme e livros eram objeto de conversas cotidianas, eu já andava com fumaças de leitora desde a tenra idade de 7 anos, mas aquela coisa que me deixou estupefata e cuja sensação ainda guardo comigo, esta foi causada pelos versos de Bandeira. Queria muito saber qual era o poema. Lembro da sala de aula, lembro da carteira escolar, lembro do livro de gramática da língua portuguesa, lembro que estava folheando e parei naquele poema e tomei um choque e entendi. Cada vez que leio a poesia de Bandeira (e leio sempre, pois que me faz falta se levo algum tempo longe dos seus livros), penso se estou lendo justamente aquele poema. Nunca saberei qual foi, já que são tantos os versos, as estrofes, os poemas de Manuel Bandeira que amo.
Minha memória está repleta de versos próprios para cada momento. Agora, sei que nunca terei a certeza de qual poema me fez mergulhar sem volta para o mundo da poesia. O que me resta? Como escreveu Bandeira:
"A única coisa a fazer é tocar um tango argentino".

ALEIVOSIA



Nilson Pedro






Cuidado com tudo isso
que não te espera,
que tudo isso que não
te espera nada mais é
que teu fado: e eis que
vem vindo algo mais
que à noite não se vê, não se
distingue na floresta
das visagens, das insônias,
dos meandros deste ser
que se desvela.
Cuidado sobretudo com
as palavras que deixaram
de existir.





Nilson Pedro posta no blog BLAG (http://nilsonpedro.wordpress.com/), com entrada nos meus Favoritos. Foto "Palavras...", por Maria Dalva, retirada do Flickr.

domingo, 2 de novembro de 2008

UM CASO ANTIGO


Flamarion Silva



Não vou afirmar que havia sentimento. Apenas ficando, como dizem os jovens de hoje. Ela também nunca demonstrou amor rasgado por mim. Talvez quisesse também só ficar. Mas olhe a tentação em que o diabo nos meteu. A sua madrinha, não a do diabo, a madrinha da moça, deu-nos a ocasião para pensar que nosso amor era imenso, e tudo simplesmente por ter viajado e deixado a menina sozinha em casa. Tanto bastou para que ela e uma amiguinha armassem um encontro naquele recinto à noite. Convocou-nos, a mim e ao Luciano, para que lá estivéssemos depois de a luz do motor apagar. Foi ponto frisado não deixar ninguém nos ver e, para garantir o sucesso do investimento, tínhamos de ir pelo fundo do quintal.
A Luciano e Zelda coube a cozinha. Eu e ela ficamos com a sala. Percebes como éramos inocentes? Havia dois quartos na casa. Mas, que fazer? A inocência é assim mesmo: um descobrir natural das coisas, sem malícia nem cálculo, um ir na correnteza da vida. Fomos, do corredor para a sala, do encostados na parede para o chão, do chão duro e frio... Dureza e frieza do chão que nos lembrou da cama macia e quente. Por favor, senhor leitor, não vá pensar que essa idéia saiu de nossas cabecinhas, percebeste que a necessidade foi provocada pelo desconforto a que o chão nos acometia. Olhe lá, hein, não te precipites no julgamento. A necessidade nos deu o quarto.
A cama era boa. A lamparina, pendurada num prego, foi regulada para menos. É que a chama tremeluzia e desenhava sombras na parede, dava medo, por fim apagamos, não a nós, a lamparina.
Estávamos bastante acesos; pra falar verdade, pegávamos fogo, e, talvez por isso, a impressão de o fogo já ter queimado nossas roupas.
Queimou-as. O vestido voou longe, foi cobrir os olhos de um São João do Carneirinho que insistia em nos espiar na escuridão.
Ei-la, a moça, nos seus dezesseis anos, irresponsavelmente nua e linda sob a luz da noite que penetrava num espectro através de uma telha de vidro. O corpo moreno, que cheirava tão-somente à química que se formava sob sua pele, embriagava-me o desejo. Decerto que a possui tonto. Tanto foi que, no outro dia, curtindo a ressaca de uma noite de amor, arrependi-me da irresponsabilidade. Ora, meu Deus, virgindade era coisa preciosa por aquele tempo e por aquelas bandas. Que tinha eu de ir fazer mal à menina? Resultado: o pedir cuidado na discrição era pura arte, arte inocente e natural mas arte; ou talvez medo. Assim que a madrinha voltou de viagem, a mocinha contou-lhe tudo. Meu pai foi inquirido pela parte ofendida, assim meio discretamente, o caso não podia espalhar, a menina ficava falada, chamavam-na de furada, era um escândalo. Meu Deus, que vergonha! E agora? Que providência tomar?
Meu pai providenciou-me vermes, disse que eu estava empestado e tinha de viajar. Precisava tratar-me. Viajei.
Hoje, já curado da verminose, repensando este caso, ocorreu-me lembrá-lo com carinho, é que me deu pena, soube que ela não deu sorte na vida. Casou-se, mas assim que o safado descobriu-lhe rapariga, furada, disse: quero não! Largou-a. Outros homens também não a quiseram, só para “ficar”, assim como eu a quis.



Flamarion Silva é autor de O rato do capitão (Selo Letras da Bahia, 2006). Foto "A maçã do amor", de Fabiana Velôso, retirada do Flickr.

sábado, 1 de novembro de 2008

NÃO SOU MADAME BOVARY


Gerana Damulakis


Um grande conto gerará sempre um grande prazer. Eu organizo antologias de contos: panorâmica, histórica, atualizada. E leio romances. Por que vivo tal paradoxo? Ou melhor, por que faço, por que eu continuo fazendo isto; isto de ficar grudada nos romances quando amo ler os contos, quando meu amor escreve contos, quando minha biblioteca está repleta deles? É bobagem tentar analisar todas as contradições da alma humana, além de ser uma terrível falta do que fazer, além de ser inútil e, por fim, além de tudo mais que quiserem. Mas sigo tão intrigada com a minha atitude. Ontem mesmo, ainda ontem, basta o exemplo do ontem, li um conto de James Salter do livro Última Noite, um conto de Bernard Malamud, de O Barril Mágico, e chega. Leio contos às colherinhas de café (parafraseando T. S. Eliot no poema “A canção de amor de J. Alfred Prufrock”). Feita a leitura dos contos, hora de mergulhar nos romances: entrei no recentemente premiado com o Nobel 2008, Jean-Marie Le Clézio, para devorar Peixe Dourado e igual e antropofagicamente fazer o mesmo com a Crônica na pedra, de Ismail Kadaré (foto), romance de múltipla estrutura, obra de arte. Não sei o que de mim faça (verso de Aramis Ribeiro Costa) com a mania de ler romances. Sei, nesta altura, que não há como temer uma transformação que me leve a ser outra Madame Bovary, só que há vários exemplos na própria literatura que, de tanto ler romances, em lugar de sair pegando homem alucinadamente, a criatura leitora ficou louca. O que é muito pior!