quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O BRUXO DO COSME VELHO


Ildásio Tavares


A 29 de setembro próximo passado comemorou-se o centenário deste que é um dos grandes escritores da língua portuguesa e, sem dúvida, o seu maior ficcionista. Joaquim Maria Machado de Assis, pobre, mulato, epiléptico, filho de uma lavadeira do Morro do Livramento, é um excelente exemplo da capacidade do ser humano de ultrapassar as suas contingências e subir ao primeiro escalão da espécie humana. Entre outras coisas, fundou a Academia Brasileira de Letras para onde arregimentou a fina flor da inteligência brasileira de sua época que aceitou sua liderança de olhos fechados.
É, inclusive, um tapa de luva na cara dos racistas que um afro-descendente, não só tivesse o respeito e a admiração de todos escritores do seu tempo, mas também que o estilo de narrar de Machado de Assis estivesse longe de identificar-se com uma África selvagem e primitiva. Ele é dos nossos escritores o que melhor esgrimiu a finura, a classe e a sutileza, além de ser um profundo mergulhador no mar desconhecido da alma humana de onde nos trouxe perfis imortais. Não será ocioso repetir como o jogo de ambigüidade no romance Dom Casmurro criou uma dúvida eternamente insolúvel a respeito da honestidade conjugal de Capitu.
Esta ambigüidade é conseguida pura e simplesmente pela sofisticação narrativa. através do ponto de vista do narrador implicado Bentinho que é a única testemunha que nos relata a maneira de agir de sua mulher, uma personagem que vem sendo construída por ele em flash-back, até que culmina com a acusação, que ele procura comprovar para o leitor, a fim de justificar a própria crueldade com sua mulher. Afinal, não há nenhuma certeza, e até um júri já foi feito para decidir se Capitu traiu ou não traiu. Como um verdadeiro bruxo da narrativa, Machado se limita a expor as peças do quebra-cabeça e deixar para o leitor a tarefa de armá-lo.
Se grande romancista, Machado não foi menor no conto e na poesia. Alguns de seus contos ou novelas são antológicos, são leituras obrigatórias tendo encantado as gerações. "Missa do Galo" é um conto cuja linguagem poderíamos apontar como calcada numa atmosfera. em que a sutileza, e os entretons governam a ficção machadiana e não podemos arriscar um palpite sobre o comportamento feminino, este enigma que Machado gostava de construir. Em "O Alienista" temos um fantástico estudo psicopatológico da natureza humana raiando ao absurdo em que o personagem principal é a loucura humana. Outro conto magistral e que todos deviam ler é "O Espelho".
Um dos primeiros cultores deste gênero tão difícil no Brasil, Machado escandiu a narrativa curta com um primoroso tratamento de linguagem, uma prosa castiça, ritmada e de excelente seleção vocabular que superava o gênio português Eça de Queiroz.
A crônica machadiana é essencialmente leve e requintada e nela, ele consegue uma dualidade difícil: captar o sentimento de seu tempo e fazê-lo atravessar o tempo.
Para mim, de grande beleza, com a incrível capacidade de unir pensamento e sentimento, é, sobretudo sua poesia.

Ildásio Tavares assina mais de 10 títulos como poeta, mas tem romances, contos, ensaios e é compositor. Foto "Cem anos", de ailana09, retirada do Flickr.

Ó PAI


Gerana Damulakis

"Por que me abandonaste?"
Cristo


Qualquer dia, qualquer mês
e estou só.
Só as estrias de luz mostram o ar
carregando suas massas de partículas
redondas, tantas quantas são
as pessoas da multidão.
Lá fora é onde deve haver alguém.
Por que tarda?
Estou em plena tarde
sem perder o relógio de vista.
Preciso dizer-te isto, meu Pai,
que já vivo a minha tarde
e tenho medo.



Já editei neste blog o poema "Ó Pai". Mas é outubro, mês que levou meu pai, meu amor maior. Que imensa saudade, e dor. Quando escrevi este poema ele estava vivo e era a minha âncora, o meu pilar (um medo e ele resolvia) e poderia viver ainda (jamais ficou doente). Todavia há os acidentes de percurso. Fica mais difícil aceitar. Dá vontade de virar uma menininha e gritar: "Eu quero meu pai". Sem ele, eu sou nada, ou, por outra, sou lágrimas.

Foto "Cristo Redentor", Rio de Janeiro, uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno, de Leonardo Paris, retirada do Flickr.

POEMA

Gerana Damulakis

Com o poeta João Cabral de Melo Neto se faz uma viagem plural, às vezes com os pés no chão, achando que cada coisa foi bem posta em seu lugar, mas por vezes há uma sensação tal como se

"nadando/ em rios invisíveis".

Quatro versos inesquecíveis de Cabral:

Há vinte anos não digo a palavra

que sempre espero de mim.

Ficarei indefinidamente contemplando

meu retrato eu morto.

De "Poema", em Pedra do sono.



João Cabral de Melo Neto, Recife, Pernambuco, foto de marcusrg, retirada do Flickr.