sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A VIDA BEM OU MAL PENSADA



Gláucia Lemos




Eu vi a mulher preparando outra pessoa
o tempo parou para olhar para aquela barriga
.
Caetano Velloso
In Força estranha



Percebo a vida caminhando lá fora. No movimento matinal dos carros deixando o prédio; nas crianças borbulhantes de energia chegando à escola em frente; no menino do jornal correndo a cada vez que um motorista acena; nos pombos que toda manhã descem, não sei de onde, e se espalham bicando as pedras portuguesas da pracinha, ou se põem a virgular a fiação dos postes. A praça acorda na mulher das toalhas com seu vaso de paçocas de amendoim; no menino dos cds-piratas; no homem dos panos de chão caminhando entre os carros a sacudi-los como bandeiras da paz, branquíssimos e porosos, nas mãos que, incansáveis, oferecem. A vida em cada um pulsa no roteiro que lhe foi apresentado pelas circunstâncias. Cada ser, uma vida.
Dizem que as vidas são traçadas, e cada qual seguirá aquele traço inevitavelmente. Fatalismo em que nem creio nem contesto. Fico no “pode ser”.
Ciganos acreditam que os traços da vida estão dispostos nas palmas das mãos. Abro as minhas mãos: linhas longas, curtas, cruzes, asteriscos, estrelas, um bordado apurado mostrando uma grade miúda. Isso é minha vida cifrada? Por algum motivo a natureza desenha, indivíduo a indivíduo, esses rabiscos em cada mão a seu jeito. Que trabalho! A cada um, seus desenhos. Nem gêmeos têm linhas iguais, é como impressão digital, nem gêmeos idênticos. Ciganos vêem a longevidade, o sofrimento, a fortuna, os amores, a morte, os filhos, as viagens. Quem ensinou aos ciganos? A própria natureza os dotou? E por que a uma raça eleita? Eles que erram em caminhos sem início e sem fim, sem território e sem governo senão o do próprio clã, e carregam a força da sua cultura sobrevivente desde o princípio dos tempos, e a carga das perseguições até o fim dos tempos e do nada, como povo que luta rijo e em silêncio, para continuar sendo sempre, e honrando o que sempre foi: somente ciganos, zíngaros, jitanos, rons e calões - de onde herdaram essa sabedoria? Uma cigana me disse que caminhar é costume, e que a vida nas palmas das mãos, foi o Senhor quem botou.
Cada crença tem sua lenda para explicar a vida, sua mitologia. São lendas que encantam, até pela ingenuidade. Para começar pela minha religião, em cujo Deus eu creio acima de tudo: um deus que deu vida a tudo durante seis dias, e no sétimo dia descansou; deuses que dão vida e presidem aos animais e aos homens; deusas cujos seios deram vida aos rios; deuses que se apaixonaram e se acasalaram com mortais, e deram vida a gigantes e heróis. Seus crentes apostam nessas suas lendas, e em outras.
Lá embaixo a vida está pulsando na inexplicabilidade azul e espumosa daquele mar que me comove e sereniza, tanto quanto pulsa ininterrupto na barriga imensa daquela mulher simplória que vai passando, quase arrastando os passos cuidadosos, porque está prestes a trazer à luz a vida que seu sangue gerou na divisão da sua própria vida, no mais belo e intrigante de todos os mistérios.
É! Como eu disse: A vida está caminhando lá fora. E o que é que eu estou fazendo aqui sentada, junto a este telefone que não toca?





Gláucia Lemos é autora de O riso da raposa entre outros títulos.
A foto é de Iroma Baby retirada do Flickr.

POEMAS DO MÊS


COTIDIANO

Gláucia Lemos

Pendura a roupa no varal
que seca.
Pendura a dor na corda do perdão.
Pendura o sonho que te faz poeta
que sonho é fogo que se ateia em vão.
Pendura o quadro na parede certa.
Pendura o amor no arame do passado.
E pendura este desejo que te seca,
que ele te sabe ao pão
mais amargado.
Pendura a chave numa argola aberta
Pendura a luta ao prego do cansaço.
E pendura essa fé que te alicerça,
que nada vale que lhe vás
ao encalço.
Pendura a toalha no cabide, reta.
Pendura o tempo em torno do vinho
e pendura o beijo em boca predileta,
que tudo acaba,
e acabarás sozinho.



JARDIM

Gláucia Lemos


As órbitas róseas das begônias fechadas
viajam pelos olhos dos lagartos
e os braços histéricos
das acácias
choram, todo o verão,
suas lágrimas de ouro.

Eróticos antúrios,
fálicos, eretos,
desafiam o pudor
da pudica mulher
que espreita da janela.



Gláucia Lemos é ficcionista bastante premiada, mas é poeta também!
A foto é de kkdraga retirada do Flickr.