terça-feira, 26 de maio de 2009

O EQUILIBRISTA

Flamarion Silva



Fui agraciado: o patrão disse que precisava enxugar.
— A culpa não é minha. A culpada é essa crise. Todo mundo enxugando. É preciso enxugar. Passe em dona Cláudia, ela está avisada, precisa assinar uns papéis. Preocupe-se não — disse batendo no meu ombro — logo logo arranja outro emprego, quem sabe até melhor que esse...
Passei em dona Claudia e assinei os papéis. Graças a Deus tinha o seguro-desemprego, por algum tempo ia receber um troco, dava para garantir o sustento da família.
Fui avisado da demissão no fim do expediente. E, como se não bastasse saber-me demitido, o patrão ainda ratificou à minha saída:
- Amanhã não precisa vir.
- Está bem, senhor — respondi triste.
Lembro-me que o patrão me foi muito amável naquele dia. Lembro-me que dona Cláudia, pela manhã — reparem só que besta eu fui —, uma das vezes em que passou por mim, no corredor da empresa, olhou-me diferente. Ora, meu Deus, uma moça distinta, até bonita, hierarquicamente acima de mim— eu, auxiliar de escritório, exímio digitador; ela, responsável pela contabilidade —, dando-me o ar de sua graça? Fiquei todo garboso. Eu era casado, sei, mas que homem não se sentiria brindado com tão graciosa oferta? Atribuí o olhar de dona Cláudia ao tratamento especial que o patrão estava me dando. Conclui: ora, se o chefe, que é o chefe, dá-me importância, nada mais natural que ela também o imite, uma espécie de consideração aos olhos dele. Que mais podia ser?
Besta! Besta que fui. Olhar e tratamento especial não eram senão olhar e tratamento piedosos. Olhavam-me com pena, como se dissessem: mais um a ir para a rua. Que se há de fazer? Besta que fui. Imaginem: dona Cláudia, interessando-se por mim... uma moça chic... Patrão amável... hum... Besta, besta que fui, já sabiam que eu seria demitido.
Fui para casa. Minha mulher tentava me animar.
- Daqui a pouco arranja outro trabalho. É competente, é ótimo digitador, homem sério, tem referência. Preocupe não.
As primeiras noites foram suaves, dormi bem, mas... dia sim e outro também de entrevistas que davam em nada, todo mundo enxugando, as noites tornaram-se densas, pesadas, arrastadas.
Que se pode vislumbrar em noites brancas, quando os dias são negros?
Fazer cocada. A mulher já remediava a situação, deu de fazer cocadas para vender. O menino recebia orientação diária.
- Aperta a barriga! Aperta a barriga, menino; tranca a boca; não come tudo agora, pois quem come e guarda come duas vezes.
Ah, triste vida, fiquei mais de ano desempregado. Até o dia em que, cansado de não ter que fazer, saí com essa de ser equilibrista. Isso era coisa que fazia em tempo de menino, lá no meu interior. Amarrava corda retesada em duas árvores no quintal de casa e lá me punha a dar os primeiros passos. Obtive progresso e reconhecimento rápidos. A opinião de que havia nascido para aquilo era unânime. A plateia de meninos em redor do equilibrista só crescia. Até que vim para a capital. Meu pai disse que eu precisava continuar os estudos.
- Homem sem estudo não é nada, isso de ser equilibrista na vida é coisa de palhaço.
Arrumei minhas coisas e vim. Conheci linda moça, namorei, casei, fiz-me pai de um menino e aqui estou, equilibrista, ou, como dizia meu pai, palhaço.
Mas que nada, importante mesmo é fazer o que se gosta! Fui ser equilibrista na vida. Equilibrei-me por um tempo apresentando-me na Praça da Piedade. O público era grande. Meu menino recolhia o dinheiro, coitadinho, andava em círculos, de cá para lá, de lá para cá, num vaivém incansável. Alegrava-se quando o povo era generoso; entristecia quando passava a cuia e só recebia um meio sorriso acompanhado de balançar negativo de cabeça. Eu, também, confesso, ia entristecendo, cansando, achando tudo aquilo um saco. Uma coisa é equilibrar-se na vida por brincadeira, outra é equilibrar-se por necessidade. Mas o que é a vida senão isto: um eterno brincar de viver. Pena que se cresce e...
Upa! Upa! Voltei a me apresentar com a mesma alegria do começo. A alegria veio de repentina tomada de consciência. Ora, estava eu um dia muchuruco, jantava, quando minha mulher falou:
- Vamos, homem, deixa disso! Onde está aquele menino, o equilibrista que fazia piruetas sorrindo em cima da corda?
Ainda aí fiquei calado. Depois a conversa morreu de vez. Cada um foi para o seu canto e a vida nem por isso parou. Eu sim, parei. Parei pra pensar no menino e no homem, quando, minhas sobrancelhas, sem que dessem pela falta de boca, num erguer-se conclusivo, falaram-me:
- Upa! Upa!
- Upa! Upa! — exclamei reanimado — Nada mudou. A vida continua a mesma. O que muda são os homens, que deixam de ser meninos.
Voltei a ser menino e a sorrir. Isso parece que deu certo. Eu era animado, eu era alegre, eu era um completo palhaço. Sorria de mim, sorria dos outros, e com graça dizia:
- Papai, olhe eu aqui!
Isso eu dizia para mim; para o meu filho rodando a cuia; para os espectadores e...
- Papai, olha eu aqui!
E moeda pingava na cuia.
No fundo foi essa a verdade, precisava amar o que fazia. Passei a amar a vida como um verdadeiro palhaço. A corda, retesada sob os meus pés, esta eu já não sentia. O que era abismo transformou-se em horizonte.
Até o dia em que... o equilibrista pululava no ar, driblava a gravidade e os pés iam leves, e o corpo ia solto, e a pluma no vento soprada por Deus. Mas, que diabo! Uma pedra de tropeço no caminho. Desequilíbrio. Caio. Quebro a perna. O povo se aproxima, o povo evade.
- Não, não chore, filhinho. Ajude-me aqui, ajude-me aqui. Upa! Upa! Eis que estou de pé. Desarme o circo, vamos para casa.
Bem, essa foi a trajetória do equilibrista. Sem tenda não há circo; sem circo não há equilibrista; sem equilibrista não há palhaço — conforme meu pai —, e, sem palhaço, não tem graça, então, o que é que há?
- Hoje tem circo?
- Tem sim senhor.
- Tem marmelada?
- Tem sim senhor.
Ora, senhores, não se aborreçam, há um escritor, eis aí o maior equilibrista.



Flamarion Silva é autor de O rato do capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, Selo Letras da Bahia, 2006).
Foto: L'Equilibrista, por BaD85, retirada do Flickr.

SITUAÇÃO

Gerana Damulakis


Como me situar
se espaço, tempo, energia
são conceitos relativos da teoria ?

Como me geografar
se a equação ilógica
é indemonstrável, complexa questão
da mutabilidade do mundo
a cada segundo?

Como me localizar
se o eu vaga mais que o corpo,
é totalitário e onipotente,
refazendo-se à revelia de mim?

Como me plantar
nos meus pés,
quando se fixar pode
significar a morte,
o fim absoluto,
renegado sete vezes,
sete vezes injuriado?

Rogo ... que um mapa o limite
em seu mundo, ó imaginário:
viajante de mim.

De Guardador de mitos (Edição do Autor, 1993).
Foto: Imaginário, por Patricia Carmo, retirada do Flickr.

CARDO


Gláucia Lemos


Escolheste ser cardo.
Tua lenda se inscreve no traço
das cicatrizes em sangue
que desenhas.
Do espinheiro a dádiva é a dor.

Escolherias ser chuva
afago da vida sobre sementeiras
redenção ao sedento.
Escolherias fruto,
serias ao faminto mais que seiva,
polpa madurecida.

Escolheste ser cardo,
cardo te fizeste.
Não me venhas dizer que minha dor
feriu o teu espinho.


Foto: Cardo, por Juliovet, retirada do Flickr.

SONETOS EM PORTUGAL

Ildásio Tavares


Antônio José Queiroz (o chamo Tonzé, carinhosamente), grande poeta, grande pessoa, encantado com meus modestos sonetos, sugere que eu faça com eles um livro e os edite pela Labirinto de Fafe, uma das mais tradicionais editoras de poesia de Portugal. Aceito sem mais delongas. Pessoa diz: o homem sonha, Deus quer, a obra nasce. Assim nasceram As Flores do Caos, 68 sonetos peneirados de mais de 800 que já escrevi, desde a adolescência, e postos na rua pelo editor da Labirinto, o encantador João Arthur Pinto que, com sua mulher, Cristina, puxaram o tapete para este velho poeta no Porto.
No Porto, uma confusão de muitas esteiras que os portugueses botam fora de ordem, justamente para atrapalhar baiano. Corri pra lá e pra cá até achar a esteira n° 6 que, com uma lentidão baiana, me devolveu minha pequena mala. O cara da alfândega, braços cruzados, sorridente, me fez sinal, “venha”. Nada de sinal verde ou vermelho, bens a declarar, nada a declarar. Eles implicam com brasileiro mesmo.
Quando abriu minha mala cheia de livro, o fiscal nada disse. Só fez futucar lá embaixo de minha mala com aquelas mãos nodosas que nunca viram um livro. Me liberou.
Lá fora, a presença sempre augusta de Francisco Topa, uma das maiores autoridades em Gregório de Mattos, no mundo, senão o maior, com sua alentada de mais de duas mil páginas. Topa é meu filho acadêmico em Portugal e me orgulho muito de sua seriedade, argúcia e tirocínio. Ele e Teresa formam um belo casal e até adotaram um casal de miúdos, Pedro e Jéssica, esta xará de minha filha mais velha. Topa me leva, sorridente, ao meu hotel predileto no Porto, o Grande Hotel Paris, fundado em 1880 e que era a coqueluche na Belle Époque, com seus vitrais, com seu teto de gesso finamente trabalhado, com a classe e a categoria de seus recepcionistas.
E começam os lançamentos. O primeiro na Universidade do Porto, promovido pelo Chico Topa, em que fiz uma conferência sobre a presença de Angola na Bahia. O segundo na Biblioteca Municipal de Fafe, onde uma platéia seleta foi surpreendida pela minha atitude incomum em lançamento. Ao invés de dissertar sobre minha obra, o que eu não faria com prazer, mandei distribuir o livro entre os presentes e lhes pedi que escolhessem um soneto de seu gosto e que lessem para nós. Foi um sucesso. Tonzé começou sugerindo a leitura dos IX Sonetos da Inconfidência, que ele acha meu melhor trabalho. Depois vieram as escolhas do público. E ficamos até tarde lendo poesia.
Refleti que o melhor que um poeta pode dizer está nos seus versos. Ao dar ao público a chance de ler os poemas, o poeta está ouvindo o seu pensamento, a sua música, com a inflexão do outro com a expressão do outro, uma outra leitura, diferente da sua. É uma experiência muito rica, para a platéia como para o autor que, inclusive, quebra a atitude de estrelismo que poderia assumir, e se irmana, democraticamente com o público.
Em Lisboa repeti a experiência com igual sucesso.

Foto: Porto - Portugal, por Francisco - PortoNorte, retirada do Flickr.