quinta-feira, 13 de março de 2008

NO TEMPO DOS FRUTOS



Gláucia Lemos




Março é fim de verão e começo de outono. Justamente no dia do equinócio ele chegou.
A janela abria-se para a varanda. Além da varanda havia o muro. No muro, o portão fechado. Além do portão, o passeio. Da janela, eu o vi chegar. No meio-fio, parou.
Muitas fronteiras havia entre os dois, a janela, a varanda, o muro, o trinco do portão. Não sei se ele as notou, mas eu, sim, não poderia ignorá-las. As fronteiras eram minhas.
Escancarei a janela e não fiz mais um gesto, ao perceber que chegava. Não sei o motivo, mas adivinhei que era ele.

No último dia do verão que é também o início do outono, estou muito complexa. Ainda é verão com todo brilho incandescente do sol e todo calor, vapores e suores, e, no entanto, já é outono, com todos os meus frutos carecendo cuidados. Ainda estou tomada dos ardores e quero, mais que tudo, vivê-los. Pois não é no verão que as mulheres se tornam Damas de Paus? Ainda com a floresta em chamas, e já conhecendo o apelo dos frutos. Intermediária, ora transportada, ora ocupada em abafar fogueiras. Meio-rainha, meio-plebéia, metade direitos, metade deveres, reivindico em mudez o atendimento a meus incêndios, mas devo doar-me inteira a meus frutos.
O vivenciar da repressão no verão, encaminhou-me à necessária decisão de despir a fantasia. Ah! Meus demônios convenceram-me de que toda rainha veste fantasia. Os resquícios, porém, são seqüelas, por isso não conseguia tornar-me plebéia e não sabia por onde começar a rasgá-la Isso eles não me ensinaram. Assim, me guardava e me escondia, semi-despida ante o apelo da estação que me instigava. Conservo o que remanesce da fantasia e me cubro em pudores. Eis porque no derradeiro dia do verão ainda não conseguia desligar-me para inaugurar o outono tranqüila e amadurecida, como necessário para a guarda dos frutos, bem investida no encargo. Só que não estava preparada.
Esse era o conflito quando ele chegou. Abri inteiramente a janela. Vi-o estacionar no meio-fio da calçada. Não deu um passo aquém do meio-fio.

Senhor, é o primeiro equinócio, deverei perguntar-lhe o que deseja? Que quer de mim, agora? Porque hoje? E porque não apertou a campainha para que o olho-mágico me revelasse a sua figura tardia? Ah, senhor, por quê? Eu nunca lhe abriria a janela como agora. Hoje é o dia de começar a encapotar os meus frutos. Começa o outono, não sabia? Não posso sequer vê-lo. Porque veio, senhor, após tanto tempo de espera? Porque se fazer concreto após tanto tempo de sonho? Porquê? Vê-lo exatamente agora, é como o resgate da esperança, aquela mesma esperança vesga que sempre se enganou ao vir a meu encontro. No entanto, senhor, isso hoje me faz odiá-lo, sem que lhe caiba culpa. Mas, por acaso ignora a verdade dos meus frutos? Enlouqueço porque veio, senhor, e enlouqueço por eles que não sei deixá-los. Careço de lucidez como nunca, em tamanha divisão. Madrasta lucidez que por certo me avassalará.

No entanto, nada lhe pergunto, nada lhe falo. Vejo sua figura elegante, seu porte esbelto e os traços finos no rosto contido. Tem algo de nobre, justo no perfil dos nobres despidos de arrogância. As roupas empoeiradas de quem teria viajado longamente – pelo tempo? pela história? pelo sonho? – pareciam impróprias a seu porte altivo e seu rosto delgado e seu olhar aberto como um lago. Algo de nuvem esvoaçava em sua fronte. Anjo, ou cavalheiro de miragem.
Acho que o conheço sem jamais tê-lo visto . Descanso meus olhos nos seus sem completar o gesto de debruçar-me à janela. Vejo-o interromper-se também, sem concluir o passo que subiria o passeio. É um nobre, não se permite os ímpetos do populacho. Seu olhar parece calmo, mas sinto que não está pleno de paz. Talvez seja mais triste que tranqüilo, e adivinho que traz a sua solidão para juntá-la à minha.
É o meu cavalheiro da cerração que me buscou decerto nas areias atlânticas das praias longínquas, aonde jamais fui, e que andou pelos ângulos do mundo à minha procura, e que enfim me encontra em um final de estação, num limiar das febres. Sei que é ele. Veio no rastro daquela que se atrasou para o encontro marcado pro verão, em algum tempo que não sei precisar. Chegava fatigado, marcado de estradas, no pó dos cabelos trazendo fios das estrelas. Cumpria a história e chegava porque tinha que vir salvar sua dama prometida. Onde o cavalo? Onde o veleiro? Que importa...? ele veio.
Olhei-o transportada pela perplexidade de quem não acreditava que ainda viesse. Olhei-o em transporte miraculoso porque o reconhecia. E assim ele me olhou ansioso porque me encontrava. Não trazia séquito de escravos nem arcas de tesouros. Não o seguiam os dezesseis peões guardas de rei de xadrez, nem mirra, nem ouro, nem incenso do oriente. Suas mãos abrigavam não mais que uma ave pequenina que ergueu ante os meus olhos e deixou que voasse.
Eu a vi traçar um círculo perfeito no espaço, livre, e depois, dirigir-se à minha janela e repousar suave, nas conchas das minhas mãos. Começou a cantar. E a solidão da minha sala vestiu-se de alegria.
Por um momento, caminhei até a porta, abri-a, para fazer que penetrasse no mais perto de mim. Afinal, acreditava não ser mais rainha. Meus nobres e minhas aias tinham me abandonado, desde que lhes confessei que desistira de ser Rainha de Copas, e que o Rei de Ouros e de granito, eu o deixara ficar na arrogância do seu trono de pedra. Todos me condenavam porque destravara as cordas vocais para gemer as dores dos calos dos meus pés. Rainhas não gemem nunca. Não lhes é próprio. Eu já podia, pois, abrir a minha casa a meu cavalheiro que trouxera o canto de uma ave para apagar a minha solidão.
Quando descerrei a porta, ele subiu ao passeio e avançou até o portão do muro. Desci a soleira e pisei o chão da varanda para ir a seu encontro. Ele abriu o portão e começou a entrar para vir ter comigo. Por um segundo, os nossos olhos se conheceram e ele sorriu em sol que se derramou por toda a rua e incomodou os meus olhos. Sabia ser aquele o momento da minha salvação. Era aquele o momento, não outro, eu o sabia. Novamente parei, envolvida pelo canto da ave, cada vez mais penetrante e irresistível. E ele então, parou também, esperando o meu gesto. O meu gesto... que eu não fiz.
Não entendo por que, lembrei-me de que já chegara outono e eu tinha que abrigar os meus frutos desde o dia do equinócio. Era outono e eu tinha frutos a cuidar. Quando ele me estendeu a mão em convite, fui ficando indecisa, f u i f i c a n d o i n d e c i s a, e me voltei depressa, e retornei a correr para dentro da casa.
Levei as mãos à cabeça em desespero e rasguei minhas vestes e corri a abrigar com os trapos os meus sempre verdes frutos.
Então, só então, chorei. Eu que antes jamais me permitira o privilégio de chorar. Precisei enfim chorar.
Quando ergui a cabeça das mãos encharcadas, feridas da acidez de um pranto corrosivo, a ave tinha emudecido, e percebi que também ele tinha ido embora. Era sutil bastante para entender o impossível.
Pé ante pé, como em vias de um crime, pisando leve no alagado do meu piso, espiei pela janela. Lá fora, a rua era deserta. E nunca mais passou ninguém. Nem gente, nem ave, nem carro, nem barco, nem cavalo, nem inseto. Nem um riso, nem um canto, nem um choro.






Gláucia Lemos é ficcionista premiada e tem mais de 20 títulos. Este conto dá título ao volume de inéditos.