terça-feira, 19 de agosto de 2008

FLOR DE BARDANA EM CHÃO DE TOLSTÓI



(sobre a novela Khadji Murat, de Tolstói)




Gerana Damulakis

O dogma de que a vida imita a arte pode ser apenas mais um desafio estético dentre outros paradoxos e oxímoros de Oscar Wilde; contudo, quando a vida apresenta um espetáculo tão aproximado de uma narrativa literária escrita quase um século antes, passamos a pensar no paroxismo de Wilde com mais atenção.
A Tchetchênia viveu na história recente o inferno de uma guerra civil como república separatista frente ao gigante russo. O autor é a vida. Na virada do século, Liev Tolstói escreveu uma novela intitulada Khadji Murat, filmada depois com o título O Diabo Branco. Trata-se de um episódio das guerras do Cáucaso em 1851, onde o escritor em parte foi testemunha.
Naquela época, no Cáucaso, cada companhia administrava-se por si mesma e recebia certa quantia do tesouro aos cuidados do chefe regional. Khadji Murat era o lugar-tenente de Schamil, chefe célebre por suas proezas, mas a situação inferior de Murat foi suplantada pela sua fibra e coragem. Assim, ele é um patriota que se vê obrigado a passar para o lado dos russos com o fim de obter um exército e marchar contra Schamil para vingar-se. Antes os russos precisavam libertar a família de Khadji Murat em poder de Schamil, trocando-a por prisioneiros.
Os russos sabiam que, com Khadji Murat submetido a eles, seria o fim de Schamil, mas, incapazes de resolver a questão do resgate das mulheres, da mãe e dos filhos de Khadji Murat, pois que bastava ter o bravo submisso, desdenharam a paciência do montanhês que acaba fugindo para enfrentar Schamil e libertar a família.
As lembranças eram caras a Khadji: a mãe e a bela história de como defendeu o filho desde o nascimento, garantindo-lhe a alimentação; suas mulheres e os filhos e, principalmente o filho predileto, lussuf encerrado numa prisão, cova aberta no solo, por Schamil. Por tudo isto, ele toma a resolução: Khadji Murat foge em busca dos seus, mas é vencido pelos russos, baleado, pisoteado, até que arrancam sua cabeça para ser exibida pelas aldeias das tribos do Cáucaso.
Entre 7 e 8 de abril de 1995, outro lussuf, filho da tchetchena Raisa Husseinova, era arrancado dos braços da mãe por soldados russos e jogado debaixo de um tanque. O corpo esmagado, posto em cima de uma pilha de madeira, foi encharcado de gasolina. Os soldados exigiram que a mãe tocasse fogo no filho, mas ela não conseguiu, então, eles atearam fogo com uma granada. Outra coincidência: o nome do chefe dos rebeldes era Schamil, o mesmo nome do chefe muçulmano da novela de Liev Tolstói. É Wilde outra vez: a vida imitando a arte.
Tolstói admirava os tchetchenes, e a narrativa não esconde isto. Assim ele os vê através de uma bela metáfora que abre a história: o narrador ia por uma campina assolada e sombria quando viu uma flor de bardana, a mesma espécie de flor que certa vez ele colhera com tanta dificuldade; passa, dessa forma, a refletir sobre a resistência da bardana coberta de lama, com aspecto de que havia sido esmagada por uma roda e, no entanto, continuava “em pé”.
Escreve Tolstói: “O homem tudo venceu, exterminou milhões de ervas, mas, esta, não se rendeu! “, fazendo uma associação, associação confessa, ele lembra o herói Khadji Murat para, vinte e cinco capítulos depois, morto o bravo, voltar a escrever sobre a bardana, fechando o arco da novela: “A bardana, esmagada no meio do campo lavrado, fez-me lembrar essa morte”.
O capítulo quinze descreve Nicolau através de seus atos. Poderia ser o retrato do dirigente de então, na metade dos anos 90 do século XX, Boris. Aliás, os retratos construídos por Tolstói, em sua obra, dão a impressão, como ele mesmo acreditava, de que seu destino era o de um profeta.
Conclusão: uma vez que a arte é tradução, a formalização literária da vida pode ser tão verdadeira quanto a própria vida.



Foto de saudeamas, retirada do Flickr.

DAS PEDRAS


Manuel Anastácio



Está quieta. Não te mexas.
Ignora-me.
Demora-me.
Enterra-me.

Distende agora os membros sobre o chão.
Pensa que o teu corpo é uma prisão.
E não tenhas dúvida de que o é.

Esteja quieta. Não se mexa.
Me ignora.
Me demora.
Me enterra.

Distenda agora o peso pelo chão.
Pense que seu corpo é metal em fundição.
Nem duvide, porque é.

Está quieta. Não se mexa.
Ignora-me.
Me demora.

Espreguiça-te lentamente, ao chão rente.

Levante-se agora.



Manuel Anastácio assina o blog Da Condição Humana, http://literaturas.blogs.sapo.pt/; tem entrada pelos meus "Favoritos". Foto de Robert Portoquá, retirada do Flickr.