terça-feira, 28 de outubro de 2008

SONATA AO LUAR


Gláucia Lemos


Hoje eu toquei somente para você.
Enlouqueceu, você dirá, como eu poderia escutá-la a toda essa distância? Não sabe você que os sons se propagam a quilômetros e se conservam no espaço, não só a imensas distâncias, como também, possivelmente, através de séculos? Dizem. Eu não sei se há verdade nisso, não entendo dos assuntos da Física, com certeza por isso é que eu tanto admiro os físicos. Mas alguém já afirmou que talvez se consiga ainda detectar alguns ecos das pregações de Cristo. Dois mil anos é muito tempo, eu não sei. Digamos que alguém tenha razão. Por que em minutos apenas, e não em séculos, a quilômetros muito mais curtos que a nossa distância até Jerusalém, os sons do piano não poderiam chegar a seus ouvidos?
Não, não sou delirante a ponto de crer em teses improváveis. Só consigo botar fé nas afirmações que me convençam. No entanto acredito que as pessoas se comunicam à distância, quando um fio imponderável se tece entre elas, uma interação amorosa. Certa vez li uns versos apaixonados, de cujo autor não me lembro e diziam: Não acredito que quando choras / não vejas que uma das tuas lágrimas é minha. O poeta falava da comunicação, até choravam a lágrima do outro. — São coisas de poeta, você dirá, mas poetas, meu amigo, são seres especiais, quase sempre têm razão.
Hoje recebi sua mensagem. Não foi preciso mais que um olhar rápido ao envelope, à sua caligrafia nervosa, uns garranchos riscados às pressas que me fizeram sorrir, àquele traço esquisito com o qual você grafa a minha inicial, para ter acesa aquela flama de cumplicidade muda. E a flama cresceu e me iluminou, iluminando todo o meu quarto, onde eu estava arrumando meus livros. Então, sua foto, que maldade! Sua foto. Não se envia foto para quem está com as mãos tão distantes do seu rosto. A quem está com as mãos frias pelo prolongamento no tempo de ausência. Ou se envia? Para que não se turve a imagem que se traz nas pupilas e o espaço ameace apagar, envia-se foto, com certeza.
Se eu disser que beijei o seu nome que assina a mensagem, ficará tão piegas! Muito mais que piegas, ficará tão ridículo! Por isso não direi. Não se usa mais beijar fotos nem cartas, mas na solidão do quarto, muitos dos pós-modernos que condenam românticos, certamente beijam cartas e fotos, porque amar ainda se usa de vez em quando, e sentir a alegria por se saber amado, ainda se usará por muito tempo.
Hoje estudei outra vez a Sonata ao luar. Não consigo mais tocá-la com a desenvoltura com que o fazia há vinte anos passados, por isso tenho que estudá-la muito, para compensar o tempo do silêncio. Mas hoje, tudo foi tão mais simples. A melodia fluía de mim como se a minha emotividade estivesse deslizando pelas teclas do piano. Sabe aquele trecho no qual eu ainda tropeço? Aquele trecho em que se troca a clave? Hoje não tropecei, hoje não perdi o compasso. Hoje eu quase fui parceira de Beethoven. Será que foi porque hoje eu estava tocando para você?



Gláucia Lemos está escrevendo um livro de crônicas neste blog. Esta é mais uma crônica para a reunião futura. Foto de regolare, retirada do Flickr.