sexta-feira, 20 de junho de 2008

ENJAULADA COM FEBRE DE AMAR




(sobre a angústia de amar na poesia de Florbela Espanca)




Gerana Damulakis

O poeta geralmente sofre da síndrome de ser vário. Walt Whitman vociferou: "Sou vasto. Contenho multidões". Fernando Pessoa inventou os heterônimos para multiplicar-se. E Mário de Sá-Carneiro chegou a dizer: "Morro à míngua, de excesso" e, sendo tantos "já não me sou". Enquanto o nosso Mário de Andrade proclamou ser trezentos, trezentos e cinqüenta, mas precisamente. Há qualquer coisa de Iago (em Otelo, de Shakespeare): "Não sou o que sou". Florbela Espanca completa: "E neste sonho eu já nem sei quem sou...".

A poeta portuguesa não escapou a essa tendência de sentir sua personalidade multifacetada. Fez-se princesa, castelã, sóror e, cada uma - como diz José Régio em estudo crítico - "morta, ressurgirá em todas as mulheres beijadas pelo homem que a amou". Como nos contos de fada, Florbela traz a concepção de viver encantada. Por tal, Jorge de Sena atenta que a poeta se transforma em seres de outros reinos, e crê que só terá esse encanto quebrado com a vinda da morte. A poesia de Florbela Espanca, como um diário, registra os estados de espírito, os seus vários: da ansiedade à depressão, do delírio da paixão à exaltação ilimitada. Daí ser terna ou voluptuosa, daí doar-se e se sacrificar ou apiedar-se com imensa comiseração de si mesma: "Tantas almas a rir dentro da minha!".

Tudo está escrito em linguagem desinibida, de fácil acesso. Primeiramente, expressando-se pela forma de Antero, principalmente no que tange à opção pelo soneto. De qualquer forma, seu modus faciendi é inerente a ela própria enquanto mulher, revelando uma sensualidade sem hipocrisia. Algo nos lembra que se assemelhe a este aspecto de Florbela, certamente as Cartas de Amor de Sóror Mariana Alcoforado. Na literatura brasileira, Gilka Machado (1893-1980), nascida um ano antes que Florbela, fala com igual sensualismo em seus versos impregnados de desejo e volúpia.

Retornando ao ponto de partida, a variedade de seres em Florbela justifica-se por este misto, esta mescla de emoções que a sensualidade encerra: insatisfação - o amor sempre quer mais -; exaltação - sensação de plenitude ao ser tomada pelo amor que julga ser total, mas logo mostra sua pequenez; "O amor dum homem? - Terra tão pisada,/ Gota de chuva ao vento baloiçada.../ Um homem? - Quando eu sonho o amor dum Deus?...". Para tanto, ela deve se transformar mais uma vez e, aqui, Florbela almeja ser aquele que o mundo cristão venera como idealização da mulher "(...) Onde couber/ O mal da vida dentro dos meus braços./ Dos meus divinos braços de Mulher!". Conseqüentemente, a insatisfação prevalece, pois que não há amor capaz de render a poeta. Ela segue com sede deste amor: "Grito o teu nome numa sede estranha,/ Como se fosse, Amor, toda a frescura/ Das cristalinas águas da montanha!".

A poeta não alcança a saciação: "Sede de beijos, amargor de fel,/ Estonteante fome, áspera e cruel,/ Que nada existe que mitigue e a farte!". Sem preconceitos, essa angústia por tamanha vontade de amar está liberta de amarras, justamente para mostrar os conflitos da alma feminina e sua volubilidade: "Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: Aqui... além.../ Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente.../ Amar! Amar! E não amar ninguém!".

Ousada e sincera, Espanca afirma: "Quem disser que se pode amar alguém/ Durante a vida inteira é porque mente!". E declara: "Eu não sou de ninguém!...". Sendo tantas, ela é única com estes versos tão explícitos da condição humana frente ao amor e suas vicissitudes, que o transforma em vários sentimentos. Enfim, as transformações dos estados de alma fazem do poeta aquele que expressa a variedade, o dinamismo da vida. Quem define bem este ponto é o Prêmio Nobel de Literatura de 1981, Elias Canetti, em A consciência das palavras (Companhia das Letras, 1990), abordando o ofício do poeta: "O mais importante é que ele (o poeta) seja o guardião das metamorfoses". Não tendo como escapar, a história e a imediatividade da vida de um poeta estão inseridas em suas metamorfoses. E se o poeta em questão é poeta do amor e sua superfluidade, a imagem é como a revelação exuberante no ápice da escrita desse erotismo que, acima de todo o universo dos sentidos, mescla carne e espírito na voragem das mudanças ou transformações. Georges Bataille, em O Erotismo (L&PM, 1987), diz que o "interdito existe para ser violado": proposição cumprida por Florbela, que revela a multiplicidade do ser mulher em várias vozes. E a dela é das que o tempo não mata; na verdade, desperta, anima para dar-lhe mais vida a cada nova leitura.

A foto da capa do meu O rio e a ponte, do qual retirei este texto, é de Edward Hopper. Foto da estátua de Florbela Espanca em Évora, Portugal, retirada do Flickr, assinada por moitas61.