sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

CONVERSAS

Gerana Damulakis

Quando Carlos Drummond de Andrade, no poema "Procura da Poesia", do livro A Rosa do Povo, de 1945, enumera os temas com os quais a poesia não combina, ele praticamente elimina tudo o que há ao nosso redor, pois que diz "Não faças versos sobre acontecimentos" e "Nem me revele teus sentimentos", e ainda "O canto não é a natureza/ nem os homens em sociedade". Adverte que não é para dramatizar e "A poesia (não tires poesia das coisas)/ elide sujeito e objeto", assim como não se deve trazer a infância para a poesia. É ironia? Não é nada disso. O poema quer enaltecer a poesia buscada "surdamente no reino das palavras", as palavras "contempladas", pois que "ermas de melodia e conceito/ elas se refugiaram na noite, as palavras".
Lembremos que os temas enumerados por Drummond, temas com os quais a poesia não deve ser construída, são seus temas. Vamos além do dito, trata-se de Drummond.
Partindo deste poema, o poeta Gustavo Felicíssimo criou um diálogo, pelo menos é assim que eu sinto. Sinto essa conversa. E escutei, enquanto lia.

REVELAÇÃO
-----------------Gustavo Felicíssimo


Não estamos acima da poesia
para justificar nossa imperícia frente ao verso:
à sua frente, somos a fração do imponderável
--------------entre existência e linguagem.
Tua biografia não é a tua obra
e o que dela dizem não é a melhor imagem.
Deixa o teu leitor à vontade,
oferta-lhe a poltrona mais confortável,
um gole de água fresca
e o convide ao delicado mergulho em tuas vivências.
Não perguntes sobre os teus poemas,
observa primeiro se possuem raízes
--------------e se oferecem frutos saudáveis.
Cuida que a palavra,
esse incrível instrumento que tens às mãos,
não seja mais importante que os sentidos,
mas a memória, tua fascinante e intrigante memória,
--------------dela tirarás teus versos.
Preserve-a ilesa, perene, infinda,
na imutável companhia das coisas que te são caras.
Na memória reside a chave que decifra
a inadvertida presença da poesia nas coisas.
Sua morada é escura
--------e espera que acendas as lâmpadas,
---------------após, todas as coisas se revelarão.


Ícaro - Henri Matisse, c. 1943 Image from Metropolitan Museum of Art