sexta-feira, 30 de novembro de 2007

DEZEMBROS


Aramis Ribeiro Costa



A mente lerda, entorpecida, arrasta
Em lentidão o tempo, idéias, membros
A tarde é morna e a própria vida é gasta
Na lassidão completa dos dezembros.

Nas esperanças dos janeiros basta
A vida que desbasta dos novembros
E a tarde se acomoda, lenta e vasta
Na tessitura lorpa dos dezembros.

O mormaço conjuga clima e fados
E em planos inconclusos e adiados
A tarde dezembral planeja e lembra.

São tempos vesperais que sinos plangem
Enquanto idéias poucos ventos tangem
E a mente, mole, sem querer, dezembra.




Este poema está em Espelho Partido - Sonetos Escolhidos - 1971/1996 (FUNCEB, 1996).

UM PARAÍSO

Gerana Damulakis


Um ruído me faz desejar
um paraíso:
tempo e espaço,
um lugar que diminuísse
o mundo para alargá-lo.

Tenho tantos livros para ler,
tantas cidades para conhecer,
tanto pensamento por escrever.

Mas não vou embora pra Pasárgada,
não sei onde está,
nem conheço o rei de lá.


Este poema pertence ao livro Guardador de Mitos (Edição do Autor, 1993).

NORMAN MAILER ( * New Jersey, 31/01/1923 - + Nova York, 10/11/2007 )



Gerana Damulakis


Na Antiguidade, quando os gregos iam fazer o obituário de alguém, perguntavam aos que conheceram muito bem o morto: “Ele viveu com paixão?”. Esta era a única questão importante. A morte de Norman Mailer levanta imediatamente uma associação com a pergunta dos gregos porque a resposta sobre ele é, sem dúvida: sim, viveu com muita paixão. Participou como sargento do exército americano no Pacífico sul, nas Filipinas, na Segunda Grande Guerra, foi preso por protestar na frente do Pentágono contra a Guerra do Vietnã, formou-se em engenharia aeronáutica em Harvard, estudou na Sorbonne, foi boxeador, foi roteirista em Hollywood, ganhou prêmios como o George Polk, por reportagens, e como o Pulitzer, duas vezes, em 1969 e em 1980, com Os exércitos da noite (Record, esgotado) e com Canto do carrasco (Portugal: Editora Europa-América, 1983) e, ainda, o National Book Award. Gostava de briga, deu uma cabeçada em Gore Vidal por conta de uma crítica, deu duas facadas na segunda de suas seis mulheres, tentou eleger-se prefeito de Nova York pelo Partido Democrático, em 1969, opinou sobre tudo e sempre, até sobre a invasão do Iraque, o que fazia dele um escritor influente nas muitas polêmicas travadas.
Mais de 30 títulos compõem uma obra iniciada aos 25 anos de idade com Os Nus e os Mortos (Record, 1976), que o consagrou de imediato. Encontram-se na obra estereótipos da sociedade americana; os diálogos, algumas vezes, ao modo de Hemingway; a fragmentação do texto nos moldes do precursor John Dos Passos; o conteúdo pleno de debates sobre as conseqüências da guerra e, enfim, uma teoria: a teoria do hipsterismo, que está no artigo “The white negro: superficial reflection on the hipster”, de 1957, incorporado ao livro de ensaios Advertisements for myself (1959). Este ensaio é um panegírico ao tipo “inadaptado aos valores vigentes”; o que, de saída, estabelece a simpatia com os beats. Em Parque dos cervos (Record, 2001), Mailer leva o leitor para Hollywood no tempo do macartismo e das desilusões quanto à esperança por um futuro diferente: ou seja, no tempo em que o sujeito já não sabe como escapar e se vê entregue às prerrogativas sociais. Um sonho americano (L&PM Editores, 2007), de 1965, trabalha a dialética entre o hipster e o engessado pelas regras sociais.
A crítica encontra Mailer mais bem sucedido quando mescla ficção e realidade. Com o talento jornalístico, que o marcou como aquele que fez a imprensa alternativa, com a fundação do jornal The Villag Voice e com a fama que alçou seu nome a expoente do new journalism, chega ao “romance não ficcional”, segundo a expressão cunhada por Truman Capote. Um bom exemplo é Canto do carrasco, quando é contada a história verdadeira de um assassino condenado à morte. Mailer não utiliza apenas ocorrências históricas, mas também figuras reais dramáticas como em Marilyn, a biography, de 1973; em A luta (Companhia das Letras, 1998), de 1975, narrando a luta entre os boxeadores Muhammad Ali e George Foreman em 1974, ou em Evangelho segundo o filho (Best Seller, 2007). O último título, The castle in the Forest, de 2007, trata da primeira parte da vida do jovem Adolf Hitler, é mais um exemplo. Para finalizar, uma sugestão que garante trazer o clima norte-americano, aquele “american way of life”, é Homem que é homem não dança (Record, 2002): vale conferir.



Este texto é a coluna Olho Crítico do jornal Tribuna da Bahia, 01/12/2007.

SEM TÉDIO E SEM SAUDADE

Gláucia Lemos



Aqui não tenho ninguém comigo. Tenho a minha alegria particular. No meio da tarde apanho um chapéu e saio ao sol. Os gravilhões do jardim trincam sob meus pés, venço o jardim onde guardo os meus silêncios e venero as alamandas, as espirradeiras e as buganvílias, pela festa que me oferecem de graça. Caminho sobre areia da rua sem me incomodar com a poeira fina do verão.
A maré que subiu sem justificativa, inaugurando um dezembro qual se fora março, atravessou o cais e, se arrastando até a rua, quase interrompe o meu percurso. Passa límpida e rasa a água franzida, tangida pelo vento, e eu entro por ela, sem descalçar as sandálias, divertindo-me com essa rebeldia infantil extemporânea. Caminho ao ritmo do chap chap que meus passos orquestram, rompendo a corrente, leve, com a água me banhando as panturrilhas. É tão simples esse prazer simplório, mas agora é como se o tivesse pela primeira vez, e descubro o conforto da água fria na pele dos meus pés, que quase afundam na lama fina e clara e limpa da areia inundada. Arde o sol nos braços e no decote. Parece derreter o filtro que me protege. Fico cheirando a um coquetel de bronzeador e maresia, então sorrio de mim. Ando inclinada a me gratificar com esses pequenos grãos de satisfação. Eu já sabia que, às vezes, os grãos são mais saborosos que as fatias generosas. Por isso tento racionalizar o meu momento para possuí-lo inteiro. Raros são os que possuímos inteiros.
Minha filha está em um curso na Espanha, minha irmã em uma excursão com amigas, eu acabo de desistir de uma viagem à Argélia (alô Camus, sem por isso deixar de amá-lo fielmente como aprendi)). Estou plena e tranqüila nesse esconderijo do mundo, uma ponta insignificante do continente, tentativa de voluntário exílio, entre nativos de corpos tisnados e balaios de crustáceos, vivendo solidão sem tédio e sem saudade, a mais que perfeita solidão. E isto também se chama Liberdade. Esta solidão — a que quero reter, cada vez que atravesso a baía retornando, e me enfio indefesa na guerrilha urbana, na qual inevitáveis punhais despertam nas gentes o primitivo impulso de fugir aos predadores, nossos próprios semelhantes.
Aqui descubro o fascínio da fotografia, nas manhãs em que me aventuro pelos troncos cinzentos que a natureza retorce com arte somente sua; pelos arranjos eventuais dos barcos encalhados na maré-baixa, que nem sabem da harmonia e do ritmo que exibem em suas formas; no contraste dos galhos coloridos de hibiscos debruçados por cima dos muros em ruínas limosas. Descubro esse mundo e me apaixono, com a paixão guardada em pequeninos rolos de celulóide. É uma alegria nova, uma paixão solitária que se realiza em si mesma quase egoísta, refletindo para dentro de mim a criação que de mim foi descoberta, no encontro dos detalhes.
Retorno da padaria com os braços cheirando a pão quente. Pão de milho que ainda se faz com gosto de milho. Refaço o percurso da volta, com direito a novo mergulho de pés calçados, no transbordo da maré.
Há duas redes de madras esperando na varanda com a paciência monacal que só as redes nas varandas parecem ter. Chego-me, a concha me abraça. Capitu aproxima-se abanando a cauda e lambendo o sal dos meus pés que estão sobrando pela borda rendada, enquanto aguardo a revoada de periquitos que, a cada fim de tarde, atravessa o espaço no rumo do poente espalhando pelo ar uma longa harmonia barroca em vários diapasões.
Esvoaça uma garriça no beiral da casa, onde adivinho um ninho. Um ninho! É um berço de palhas, uma manjedoura... Natal é quase amanhã.
Fecho os olhos. Lembro-me de que ainda é tempo de acreditar. Acho que acredito em quê... Na tranqüilidade que pode ser. Ainda pode ser. Na alegria que é bonita e, algumas vezes, está guardada em rolos de celulóide. Sobretudo acredito na solidão perfeita. Sem tédio e sem saudade.



Gláucia Lemos é autora de mais de três dezenas de títulos. Entre os premiados estão O riso da raposa, A metade da maçã e As chamas da memória.



VESTIDO BRANCO


Carlos Vilarinho

Estava embaixo da mesa catando pimenta. Esparramou toda no chão, dizem que é um perigo. Contudo acho que naquele dia desmitifiquei a ação da pimenta, pelo menos sobre mim. Lá embaixo da mesa, de quatro, ouvi os passos. Não eram passos de salto alto, mas eram de mulher. Dizem também que mulher e pimenta se completam. Continuei a catá-las. A pimenta me tomou por inteiro, que entrei em transe picante, ouvi o tilintar dos talheres sendo lavados por minha sobrinha. Ouvi também a louça, presente de minha avó estilhaçar-se. Minha sobrinha achava que eu não sabia, mas era facilmente perceptível o estado de letargia que ficava quando fumava maconha.
— Ai, Amelinha, acho que preciso de um amante.
Voltei do transe imediatamente. Era a voz de Harmonia. Desde que a conheci, o nome me instigava a conversar com ela. Convertia-se num imenso vai-e-vem. Harmonia era uma mulher sexy, tinha trinta e um anos. Madura o suficiente para ser verdadeiramente mulher, diria Balzac. Conversávamos durante horas, sentia um comichão por dentro quando falávamos. Que mesmo do alto dos meus quarenta e quatro anos não sabia discernir com precisão o que aquilo representava. Harmonia uma vez fez queixas coléricas a respeito do marido dela. Segundo me disse ele a qualificou de uma pífia dona de casa.
— Que absurdo!!
Disse pensando em raptá-la.
— E ele não faz nada, Vadinho. Mal sabe fritar um ovo.
Isso tem tempo. Mas a mágoa ainda passeia dentro dela. Pois já me repetiu duas vezes.
Minha sobrinha Amelinha guardava os domingos na minha casa. Eu sabia o que ela fazia escondida. E ela me olhava todas as vezes que eu ia ao sótão, demorava horas e voltava aéreo. Longe dessa desconfiança interativa, tratava-se de uma excelente menina. Conversávamos sobre filosofia e linguagem. Amelinha sempre trazia uma novidade da faculdade que estudava. Comecei sem entender a amizade de Harmonia e Amelinha, dada a diferença de idade. Depois não foi difícil perceber que Harmonia precisava de alguém para conversar. Na verdade desconfiei que ela ia conversar era comigo.
Então de quatro, como estava catando pimentas, ouvi uma boa parte do desejo obscuro de Harmonia embaixo da mesa.
— Ai, Amelinha, não agüento mais aquele cara.
Vi então uma reunião de pimentas vermelhas, caíram todas formando imagem estelar. Aí vi também os pés de Harmonia. Estavam enfiados em uma sandália cheia de miçangas. Uma sandália marrom, toda enfeitada. Eram lindos os pés de Harmonia, tinha as unhas feitas e sem cutículas. Lembrei-me então que Harmonia só andava de salto alto. Me estiquei um pouco mais para a frente e vi a ponta do vestido rodado de Harmonia. Era todo branco. Vi também o começo das pernas, uma canela compacta e bem morena.
— Tio, já catou?
— Quem é?
—Sou eu, Harmonia.
Harmonia abriu um largo sorriso e um brilho piscou em seus olhos. Me ajudou a levantar e comentou até que eu estava mais magro. Fiquei contente e lembrei do chá de ervas emagrecedoras que Amelinha me presenteara. Eu tomava o chá em jejum logo quando acordava. Estava desconfiado que não estava adiantando nada quanto ao emagrecimento, até porque quando dava umas dez, dez e meia, abria a primeira cerveja depois de ter entornado uma folha podre, erva-doce. Comia moela e coraçãozinho de frango. Harmonia comentou ratificando meu peso. Olhei então para ela toda, vestida de branco e de sandálias de miçangas. Estava linda assim e me repreendia envergonhada. Então eu tirava os olhos de mira e deixava os de esconso.
— Não sabia que estava, Vadinho.
Ri satisfeito com o semblante de Harmonia e falei sobre as pimentas.
— Há uma lenda que pimenta no chão é sorte no amor. Dizem que um largo sorriso se abrirá e todo o universo, a partir do ardor da pimenta, se unirá em conjunto com dois casais próximos e que até então não sabem que se amam.
Falei com a cara mais deslavada e num blefe gigantesco. Lembrando instantaneamente de um autor romano, lá pelos séculos do império, que dizia o seguinte: “Qual homem experiente que não combina beijos e palavras de amor?”. Quase que repito a frase subitamente. Parei no meio da oração e olhei Harmonia rindo para mim, esquecendo do conjugue estorvo.
— O quê?
— Nada...
Disse-lhe que tinha escrito um novo poema. E ela mais do que depressa se ajeitou na minha mesa esperando para ouvir.
— Fiz pensando em você.
Blefei de novo, acreditando eu mesmo no meu blefe. Amelinha riu e como se estivesse tudo combinado entre elas. Saiu. Eu notei tudo. Lembrei das sandálias de miçangas e das canelas. Pedi para que pegasse água e quando se voltou para ir à cozinha, fitei em zoom ou raios-X se Harmonia usava algo por baixo do vestido. Era uma calcinha branca bem comportada. Mesmo assim suscitou meu desejo. E agora propositalmente com os olhos de mira, pus as vistas no decote. Harmonia encabulou-se e tentou esconder o volume, mas como? Mesmo encabulada Harmonia sorria e exalava uma suavidade plena que só as grandes mulheres são donas. E eu disse.
— Você tem duas qualidades raríssimas em uma pessoa, sobretudo porque és mulher.
Ela continuou encabulada, mas agora mais curiosa.
— Vou lhe dizer...
Harmonia se desnudou. Senti languidez em seu semblante e um orgasmo singelo de carência. Antes de dizer recordei as falas que tivéramos entre nós. E ali naquela hora percebi que ela só tivera mesmo vontade de ter orgasmo.
— Você é dona de uma autenticidade ímpar e o que é mais importante, talvez em conseqüência disso a sua sabedoria seja tão latente...
Queria continuar a falar algo mais, mas não tinha o que falar. Harmonia então me beijou suavemente passando a mão com cheiro de creme sob a minha face.
— ... e também é doce e suave...
Harmonia colocou o rosto bem em frente ao meu.
— ...e também é...
Sempre andava com metáforas e comparações, achava importante fazer link de uma coisa à outra.
— ...e também é morena como jabuticaba...
Ridículo, me senti. Mas foi tão simples, aliás, simplório, que singelamente Harmonia quedou-se aos meus encantos metafóricos. Me beijou, aí eu disse.
— Que homem experiente não combina beijos com palavras de amor?

25/11/ 2007
Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (SCT, FUNCEB, 2005)

sábado, 24 de novembro de 2007

LUNARIS

Gerana Damulakis




Carlos Ribeiro é experimentado contista e romancista, só para ficar na literatura e deixar o jornalista um pouco longe dos comentários desta coluna. Lunaris (EPP Publicações e Publicidade, 2007) é seu mais recente romance; simplesmente não há como ignorar o quanto é instigante sua leitura. Ir descobrindo quem é o personagem, para qual lugar caminha, esta é a grande chave do romance. A epígrafe é de Stanislaw Lem, autor polonês consagrado no século XX como grande nome da literatura científica, cuja obra mais importante e conhecida, Solaris (Relume-Dumara, 2003), é de 1961 e hoje é tida como um clássico da ficção científica, já com versão cinematográfica. Solaris é um planeta com órbita entre dois sóis, tendo como exclusivo ser vivo um oceano inteligente, responsável pela existência do próprio planeta. Quem deseja que façamos o paralelo com Lunaris é o próprio autor, pois há aqui mais do que sugestão, há indicação explícita: “Este lugar — que chamava de Lunaris, numa referência ao romance Solaris, de Stanislav Lem —, era uma forma especial de pensar”. Em Solaris, o psicólogo Kris Kelvin vai à estação para socorrer os cientistas que estudam o planeta inteligente. O que se passa é o seguinte: os tripulantes ficam espantados porque imagens de seus próprios pensamentos são corporificadas pelo oceano. Kelvin recebe, inclusive, a visita de sua mulher que se suicidou há 10 anos. Não há propriamente um diálogo entre as duas obras, a de Lem e a de Ribeiro: antes, há uma ponte, uma obra e sua ligação com a outra, tal como ocorreu com o romance O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati (Nova Fronteira, 1984) e o poema de Konstantinos Kaváfis, “À espera dos bárbaros”, ambos de um lado da margem, enquanto do outro está o romance homônimo do poema, que J.M. Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura de 2003, escreveu: entre as obras uma bela ponte.
Voltando à leitura de Lunaris: para Alberto, personagem de Carlos Ribeiro, basta lançar uma garrafa ao mar, ou jogar um aviãozinho de papel ao ar, que prontamente é atendido e visitado por Hélio, habitante de Lunaris, pois que este lugar é assim como uma possibilidade. Em meio ao dilema entre viver para trocar lâmpadas e comprar pão, ou viver numa dimensão, digamos, mais elevada que o reles dia-a-dia da humanidade, Alberto entra no ensaio das idéias, discutindo literatura, nomes e valores, mitos como Glauber Rocha para, mais uma vez, sentir-se com vontade de escapar. Estes são ótimos momentos.
Quando se desloca para outro plano, Alberto vislumbra uma vida que pode ser, mas no final — e é um grande final — ele se vê prestes a ter que optar. Nada mais pode ser dito aqui sem causar prejuízo na leitura. No total, o oceano de Solaris é, em Lunaris, o próprio Alberto, haja vista ser ele quem “refaz pessoas, reconstrói acontecimentos, elimina todos aqueles que o aborrecem”, na medida em que sabe como escapulir de um mundo para outro.
A estrutura do romance é muito bem lograda, com capítulos curtos que vão num crescendo de interesse para o leitor. Chega a ser ousadia dizer que neste crescendo, cresce também o escritor — ousadia, pois Carlos Ribeiro já é portador de uma obra importante —, mas é notório que Lunaris confirma a competência da arte de Carlos Ribeiro.

Este texto é a coluna Olho Crítico da Página Aberta do jornal Tribuna da Bahia, 24/11/2007.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

"ESTOU FARTO DO LIRISMO..."



Gerana Damulakis


É fácil constatar que a crítica literária, tal como a crônica, sofre por ser datada. Ressalva feita para quando o autor está morto, portanto a obra concluída e, no extremo, sem riscos de que apareçam títulos póstumos. O fato é que avaliar um escritor em plena produção carrega uma gama de equívocos que apenas o futuro apontará.
Fica patente quando se pode averiguar isto num livro como A Leitora e seus Personagens, daquela que talvez tenha tido a maior lucidez analítica na crítica brasileira do meado do século XX: Lúcia Miguel Pereira. O brilho de seu pensamento, nas décadas de 40 e 50, percorreu as obras das mais diversas correntes literárias do país. Com uma cultura invulgar, uma bagagem de leituras invejável e uma percepção crítica como poucos, Lucia Miguel marcou seu lugar como militante na imprensa literária. Mas nada disso evitou o erro que só o tempo, implacável, acentua.
A leitura da reunião de textos críticos deixa evidente um caso interessante. Trata-se da avaliação dos, então, últimos poemas de Manuel Bandeira, vistos pela crítica no Jornal do Comércio, em 1936. Quase uma diatribe, não fosse seu cuidado para com o poeta amigo, Lúcia diz encontrar "uma nova maneira" na poesia de Bandeira. Tal maneira nova seria a ironia, avaliada como que uma negação de tudo aquilo em que o poeta acreditara, "alguma coisa de tenso, de voluntariamente desprendido". E conclui: "essa é a grande modificação". Então transcreve uma das estrofes de "Poética", poema que consta do livro Libertinagem: "Quero antes o lirismo dos loucos/ O lirismo dos bêbados/ O lirismo difícil e pungente dos bêbados/ O lirismo dos clowns de Shakespeare./ — Não quero mais saber do lirismo que não é libertação".
A crítica vê na ânsia de libertação uma obrigação do poeta em zombar de tudo e não se deixar dominar por coisa alguma, pois a ironia está "corroendo sua inspiração". Ora, tanto a poesia posterior de Bandeira quanto o próprio Manuel em seu livro Itinerário de Pasárgada, sua autobiografia literária, atestam que o lirismo não deixou os versos do poeta de Estrela da Tarde nem o poeta teve tal intenção. A feitura do poema estava intimamente ligada ao momento modernista, daí um grito, não contra o lirismo, mas contra certos tipos de lirismo: "Estou farto do lirismo comedido/ do lirismo bem comportado..."
Imagine-se se fosse levado a sério o fim do lirismo em favor da ironia absoluta. Enfim, a ironia incorporou-se à lírica moderna. Hoje, tão distantes daquele momento, atestamos o lirismo mais do que presente, a própria poesia: o lirismo pungente de Ruy Espinheira Filho quando diz: "Quero/ me apagar na noite,/ ser a noite/ esse grande silêncio/ lá fora,/ onde espero que o mundo/ não esteja mais". O lirismo Femina de Myriam Fraga: "Revesti-me de mistério/ Por ser frágil,/ Pois bem sei que decifrar-me/ É destruir-me". O lirismo a plenos pulmões de Ildásio Tavares: "Há um resto de mim em toda a parte/ Que nunca pude ser inteiramente". O lirismo musical de Aramis Ribeiro Costa: “O sol brilhando em plena madrugada/ O desejo de ser – sem ser loucura/ A vida, num segundo, iluminada”. O lirismo apurado de Florisvaldo Mattos: "Nada sei do que me contam/ as furiosas páginas dos diários mudos". Os versos líricos de Luís Antonio Cajazeira Ramos: "O sonho acabou./ Não mais acordei./ Mas tudo que sou-/ -be, no sonho, deixei". O lirismo refinado de Maria da Conceição Paranhos: "Mor ventura não há neste meu fado/ do que mirar teu corpo e usufruí-lo,/ pausadamente, a mão a desvesti-lo,/ saboreando teu olhar de dardos,..."
Lucia Miguel Pereira reclamava do fim da simplicidade de Bandeira. A lírica moderna pode não ter o acesso fácil de outros tempos, mas aí reside o seu fascínio. O lirismo é categoria tradicional e eterna na poesia, seja ele mais claro, seja obscuro e mágico. Menos mal que a crítica não pode ver além de seu tempo.



Este texto foi publicado no caderno 2 do jornal A TARDE, coluna Leitura Crítica, em 01/08/2001.

RESUMO

Gerana Damulakis


Não cheguei na lua.
Andei apenas pelas ruas
molhadas, cheias de buracos
que transbordam de pedras.
Nem plantei uma árvore,
nem colhi frutos,
mas não arranquei rosas.
Não escrevi um livro.
Apenas passei páginas,
lisas e lidas.
Não conquistei meu chão,
meu corpo é pequeno,
grande minha solidão,
e apenas consigo
abrir meu coração no tímido pedaço
de meu espaço;
semeio de paz o meu redor,
tento criar ilusões para
a difícil realidade da vida.

1993

A DAMA



Carlos Vilarinho


Foi lá na redação que vi Danyella. Estava sentado ouvindo o editor, pensando em tomar café. Ela veio e sentou-se ao meu lado. Não havia pensado em meu comportamento idossincrático-meditativo ao longo da vida. Não sabia o que eu era. E agora sei quem sou. Tudo de praxe durante o falatório, a não ser quando o poeta tomou a palavra.
— Tudo, companheiros, é uma questão natural. Se analisarmos o tempo em sua passagem iminentemente e, muito natural, efêmera... e, com a nossa perspicácia, ao observar e interpretar os fatos para depois criá-lo e recriá-lo teremos a notícia...
Eu tinha uma bolha no pé. Calçava um único tênis que possuía velho e surrado. Quando o poeta Carlos começou a falar, não sei por que, mas a coceira parou, deu um tempo. Pensei na passagem do tempo para escrever minha matéria. Então, olhei Danyella ao meu lado. Ela estava com uma calça colada ao corpo. Desenhava toda sua perna. Algo fantástico contatou minha energia com a dela que, sem querer e, com o pensamento voltado a um texto que teria que escrever, esperei Danyella levantar.
— ...não que não tentemos, não que não pensemos, não que não saibamos e alguns não sabem, mas as mulheres devem ser bem tratadas...
A bolha no pé voltou a coçar. Estava usando também um desodorante forte, ativo, e aquilo me deixava renitioso. O poeta Carlos é um bom amigo, um sujeito muito parecido comigo. Gostava de beber cerveja e falar na seleção brasileira. Enxergava nas entrelinhas e era até um pouco histriônico com relação às mulheres. O poeta era tão sensível que me fazia observá-lo ali com uma coceira nos pés. Sentia a volúpia da coceira. Notei então a mira acre e o bigode revoltoso de Valcélio a espionar, indignado, a minha coceira.
— ...e foi assim que Nietsche chorou, amigos... eu, enquanto jornalista, e com tantos fatos falsos noticiados pelo mundo afora, criados a partir da imaginação de um homem, digo-lhes que o que estão querendo fazer com nossa classe é um absurdo.
A reunião decidiria o dissídio coletivo. Havia no paroxismo da vida uma existência paradoxal, que era o jornalista desinformado. A turma toda estava além da indignação. Não abri a boca para dizer que era verdade tudo aquilo, o fato do desconhecimento, mas a minha presença incomodava boa parte da redação. Danyella então se levantou e ali eu senti o que há muito não sentia. Um tremor no coração e um desejo quase incontrolável. Durante o seu andar até a cafeteira envolvi-me numa espécie de transe em conexão com o universo feminino. Danyella me causaria, a partir daquele dia, muito embaraço de excitação espontânea.
— ...Fernando Pessoa genialmente falou que ficava no cimo de um outeiro olhando o seu rebanho, ótimo, amigos, se tivéssemos agora um Fernando, ou melhor, Alberto Caeiro, a nos olhar e nos guardar lá de cima no papel que está no seu pensamento...
Não sei quanto tempo o poeta falou, não prestei mais atenção depois que pus meus olhos em Danyella. Passei o resto daquele dia inquieto e excitado. Segui a mulher até o lado de fora da redação e minha excitação amoleceu quando a vi entrar num carro e seguir com um outro homem. A bolha de meu pé voltou a incomodar, o sangue corria dentro de mim com mais intensidade, tornou-se um córrego que parecia jazer de tristeza pela ausência de Danyella.
— Jornalista, para que lado fica o amor?
Um velho que ficava todos os dias na porta do jornal, limpando sapatos, me perguntou isso. Aliás, ele já havia me perguntado em outras situações e eu, indignado e sempre injuriado com as coisas da vida, resmunguei:
— HUMPF!!!!
Naquele dia eu respondi:
— O amor acaba de entrar num carro.
E foi ele mesmo, o engraxate, quem me contou sobre Danyella.
— É, eu vi. Aquela dama causa frisson em todo mundo quando chega. Ela é casada com um palermão que aparece de vez em quando na televisão, convocando o povo para ir à vigília dos crentes... Tem também um filho com o tal palerma chamado Esdras. È muito tímida, sensível e carente...
— Como é que você sabe disso tudo?
— Jornalista, tenho sessenta anos e já tive meia dúzia de mulheres, conheço todas... a dona que virou sua cabeça tropeçou no próprio salto e segurou-se em mim e eu a segurei para não cair. Acredita, jornalista, que só com esse toque ela ficou toda arrepiada?
A imagem dos seios arrepiados de Danyella veio imediatamente à minha cabeça. E saí para beber, levando comigo na obscuridade dos pensamentos aquela dama que só mil talheres iriam satisfazê-la.
Ao chegar à redação no dia seguinte, rodei em torno de mim mesmo para buscá-la. Não a vi, quase entro no desespero quando, em seguida, ouvi um melífluo “licença”. Era ela. Ouvi ao mesmo tempo o estrondo retumbante do meu coração acelerado. Danyella olhou dentro dos meus olhos e riu um riso contido num sopro de respiração. Eu ri também e emendei.
— Toda licença do mundo para a dama seguir seu caminho suavemente.
Ela olhou novamente e riu um riso menos contido. Lembrei do engraxate e imaginei os pêlos eriçados do sexo de Danyella, junto a uma gota de suor. Não sei por que, mas veio à minha mente Dom Pedro II. Tempos atrás havia lido um livro sobre o imperador deposto. Dom Pedro teve muitas mulheres e uma dedicatória que fez para uma delas ficou em meu pensamento: “Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de cobri-la de carícias”. Um dia direi isso a Danyella, prometi a mim mesmo. Depois de alguns meses, estávamos bem próximos. Sabia que de uma forma ou de outra Danyella me admirava e pensava em mim. Sabia que me olhava enquanto os meus olhos não estavam ao alcance dos olhos dela. Esgueirava-se na cadeira para ver como eu tratava as outras colegas, denotando um arroubo ciumento que a sua discrição e complacência não deixavam transparecer o que sentia por dentro; talvez passeasse por seu coração a dúvida de ser especial. Não deveria duvidar se me conhecesse perspicazmente. Enfim, estávamos na atmosfera romântica marcada por um ponto de intersecção que nos unia em algum lugar do universo. Trabalhávamos um em frente ao outro e cada vez mais eu a desejava. Acho que ela também. Inventei até um projeto fantasma para ficarmos juntos, discutirmos e, enquanto discutíamos, eu a imaginava nua, sem o seu vestido azul. Um dia, entretanto, tudo começara a se concretizar ao cair no chão a caneta com que trabalhava; abaixei para pegar. Foi assim que vi o talho de Danyella todo descoberto. Ela estava só de vestido, sem nada por baixo. Fiquei nervoso com a visão que tivera, e ela percebeu. Riu de esconso e levantou-se para ir à cafeteira. Olhou para mim de soslaio e quebrou para o banheiro. Eu fui atrás. Ela entrou, esperou que eu entrasse e trancou a porta.
— Estou pronta.
Beijei a mulher com furor, segurei o sexo com vontade, coloquei-a em cima da pia que quebrou. Levei-a então para o vaso, sentei e encaixei Danyella sem dar espaço a vácuo. Ela escorregou em cima de mim teso, duro e viril, soltou um urro de amor contido. Como dois animais, em transe de orgasmo, nos amamos no banheiro da redação por quarenta minutos. Ao sairmos, deparamo-nos com o poeta Carlos escorado na parede com dor de barriga, eis que me disse:
— Não há nada senão o fetiche
Não há nada senão o cio dolorido e desejoso de um poeta
Não há nada como saciar a dor
Não há nada como beber o amor...
Na última carta que mandei a Danyella, coloquei a frase que prometi a mim mesmo “Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de cobri-la de carícias”

18/11/07



Carlos Vilarinho é ficcionista e cronista, autor de As sete faces de Severina Caolha & outras histórias (SCT, FUNCEB, 2005). Coleção Editorial Selo Letras da Bahia, 103


terça-feira, 20 de novembro de 2007

OS TEXTOS

Os textos postados, "Crônica e poesia: a tênue fronteira" e "A literatura baiana contemporânea" foram publicados, respectivamente, na Revista iararana nº 5 - março a junho de 2001 e no caderno Idéias, do Jornal do Brasil, em 03/11/2001 ( este último trazia um título diferente: "O que é que a Bahia tem").
GD

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

CRÔNICA E POESIA: A TÊNUE FRONTEIRA



Gerana Damulakis

A crônica é um gênero riquíssimo, portador, antes de mais nada, da liberdade de expressão. Livre das amarras que a prosa ou a própria poesia acabam por ter que enfrentar, a crônica pode fazer fronteira com o conto, com a poesia, com o texto filosófico e, com tal eterna desculpa, o gênero, que se desenvolveu no Brasil, guarda uma fortuna de variantes, todas elas ligadas diretamente a seus escritores.
A história da nossa crônica revela que, apesar de originárias dos jornais e das revistas, seus autores viram desde muito cedo a necessidade de eternizar aqueles textos em livro. Assim, Ao Correr da Pena, de José de Alencar, é um volume que não apenas serve para contar tal história da crônica, mas e, principalmente, para comprovar que, mesmo sendo um texto datado, a crônica sobrevive décadas depois como crônica dos costumes. Exemplo é a intensa curiosidade pelas crônicas de Machado de Assis, hoje em edições várias, trazendo estudos cada hora mais aprofundados, revelando o lado mais solto do escritor.
Este século viu um desfile de cronistas, quase sempre escritores de primeira água em outros gêneros. Neste momento não se pode esquecer das exceções, ou seja, dos cronistas 100% cronistas, como Rubem Braga e o nosso Adroaldo Ribeiro Costa, ambos exercendo a crônica por algumas dezenas de anos como único gênero praticado. Até a atualidade, no entanto, o que se constata é o cronista que escreve primeiramente a sua contística, a exemplo de Hélio Pólvora, ou os seus romances como Carlos Heitor Cony e João Ubaldo Ribeiro — inclusive Luís Fernando Veríssimo, notadamente cronista, tem publicados pelo menos dois romances.
Houve época em que encontramos o poeta-cronista, como foram Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, enquanto na Bahia, exercitavam a crônica os poetas Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares, só para citar dois. No sul do estado, Sosígenes Costa muitas vezes escrevia primeiramente o texto da crônica que viria a ser um poema logo a seguir, como bem se pode lembrar o que ocorreu com "Búfalo de fogo", poema do qual Jorge Amado fez constar algumas estrofes no livro São Jorge dos Ilhéus. Aproveitando para registrar a crônica que deu origem a tal poema antológico, há de caber registro também para o fato de que ela foi publicada na Revista Única, nº 15 do ano 1, de Salvador, Bahia, em 1º de maio de 1930, intitulada "Búfalo de Fábula", enquanto o poema data de 1928. É de ser assinalado que tanto a crônica quanto o poema são de índole descritiva: há a animalização metafórica da paisagem, o humor e o lirismo associados; há, inclusive, a característica tão sosigenesiana no gosto pela rima rara, inusitada e, sabemos, proposital. Todos os elementos do poeta Sosígenes Costa marcam presença na crônica poética, ainda assim, crônica.

Búfalo de Fábula

A Jorge Amado, ilheense que aprecia búfalo

Anoiteceu. Roxa mantilha suspende o céu do seu zimbório. Que noite azul! Que maravilha! Sinto-me, entanto, merencório. Dentro da noite Ilhéus rebrilha qual grande búfalo fosfório.
Estão as casas figurando umas corcovas de camelas. Longe, o farol, de quando em quando, luze no plano das estrelas.
Estou no cimo deste monte, a cavaleiro da cidade. Dentro da curva do horizonte, Ilhéus recorda, ao pé do monte, um grande búfalo bifronte com olhos rútilos de jade.
Anoiteceu. Tudo rebrilha. Sinto-me, entanto, merencório. A noite pôs sobre a mantilha negro adereço de avelório. Como as formosas de Sevilha, a noite vai para o desposório.
Não quis a lua, para o noivado da noite azul, brilhar qual jóia; pelo infinito constelado rodar a rútila tipóia.
Não quis brilhar para o noivado, a lua, Helena astral de Tróia. Não quis a lua, o rosto amado, boiar nos céus em que ela boia com um semblante decepado de uma princesa de Savóia. Dentro da noite, iluminado, despede Ilhéus clarões de jóia, qual grande búfalo encantado, com cem pupilas de jibóia.
Petracas beijam doces Lauras junto de pélago espalhante. As flores languidas restauras, ó vento amigo e sibilante.
Crio visões de lendas mauras:
Dentro da noite sussurrante pela canção das bandas auras, Ilhéus recorda neste instante, como talvez nas lendas mauras, um lindo búfalo gigante que, perseguido por centauras, por ter olhos de brilhante e ser mais rápido que as auras, veio agachar-se palpitante, ao pé do morro, entre as centauras.
Anoiteceu. Pede a mantilha o céu a noite, em doce rogo. O bravo pélago dedilha cantos mongólicos de Togo. Protervos ventos em mantilha, como cem eras em regougo, fazem da noite na Bastilha revoluções de demagogo. Ventos, ladrões de uma quadrilha, depois do crime, vão para o jogo. Dentro da noite, Ilhéus rebrilha qual grande búfalo de fogo.


Longe de falar sobre a "versiprosa", o que é preferivelmente necessário constatar é o "deslimite" da crônica, mas precisamente quando faz fronteira com a poesia, sem se apresentar como tal. Mantendo a narrativa, a tênue fronteira fica por conta da imagem poética, do lirismo, da nostalgia tão propensa a se fazer presente no texto, haja vista o exemplo supracitado. Mas, na maioria das vezes, o escritor não transformou sua crônica em poema colocando em versos o que antes se apresentava em linha contínua; deixou a poesia lá, pertencendo ao texto chamado crônica.
Quantas vezes o cronista Adroaldo Ribeiro Costa deu vazão ao seu lado poético e expôs seus poemas na espaço do jornal A TARDE? E é aí que se quer chegar: quantas vezes mais se pode encontrar esta tênue fronteira entre a crônica e a poesia nos textos de Adroaldo, embora as tais linhas contínuas? Tudo isso pode ser atestado na reunião de 200 das suas crônicas selecionadas pelo escritor Aramis Ribeiro Costa para o livro Páginas Escolhidas, da Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia. Aí, em textos que encerram um memorialismo nostálgico, a poesia não poderia ficar de fora por prejuízo da emoção e lá está ela, plangente, pungente, em pleno texto da crônica. No exemplo de "A Mesa Vazia", de 27/ 03/ 1975, tal memorialismo, lembrando, no caso, as comemorações da Sexta-feira da Paixão, quando era um dia singular na casa do cronista, deixa o texto prenhe de poesia: "Fiquei sozinho, sem nada que me alimente o corpo e o espírito, senão as lembranças do passado morto". É expressivo que, ao contrário dos autores que pretendem fugir de fazer poesia na crônica, Adroaldo deixe claro que esta é uma crônica evocativa da fase poética de sua vida; poética porque encantada e, assim, finaliza:

O relógio baterá amanhã as doze pancadas do meio dia, mas ninguém estará sentado à mesa. À sua volta, apenas saudades, e saudades não comem iguarias servidas em pratos: alimentam-se de corações que ficaram sozinhos...

Em Adroaldo Ribeiro Costa, os exemplos de crônicas que fazem fronteira com a poesia são muitos, apesar de ser necessário lembrar que ele, cronista plural, fez sua crônica chegar perto também do conto e tantas vezes exercitou a própria poesia com veros e rimas. Aqui o objetivo é colher a poesia no texto da crônica enquanto narrativa. Belamente poética é "Cantigas da Noite", de 22/ 04/ 1978, que já inicia com a sugestão de um crescendo poético: "A noite vai crescendo lá fora. E há uma noite a crescer dentro de mim", para terminar com duas frases mais belas ainda, quando "nessa noite, em minha homenagem, todas as noites silenciarão. Eu serei o próprio silêncio".
Rubem Braga é outro que, desligado de qualquer compromisso com uma obra de outro gênero, derramou um lirismo, do qual se colhe frases que se fazem versos. No entanto, seus poemas, publicados sob título Livro de Versos, na edição da Record, de 1993, mas que teve uma pequena edição em 1980, a pedido de artistas e poetas do Recife, reunindo apenas 14 poemas, os quais foram logo avisados que seria o primeiro e último livro de versos e sem cuidados do autor, são poesia de pequena importância. A poesia de Rubem braga está nas suas crônicas, nos seus mais de dez livros que reúnem quase mil crônicas das 15 mil que escreveu para jornais, revistas e rádio. Não há como não reconhecer poesia em "O pavão":

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores: é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. [...] Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! Minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Já com um escritor reconhecidamente poeta pode ocorrer um fato curioso: no primeiro livro de prosa de Vinicius de Moraes, Para viver um grande amor, o autor coloca seu ponto de vista quanto ao lirismo da crônica, o qual tem uma relação mais próxima com o subjetivismo do cronista, ao contrário do que acontece com o contista ou o romancista. Na sua definição da crônica, sem esquecer que é uma definição de um poeta, ele mostra que a narrativa curta em cima dos fatos miúdos do cotidiano se vincula diretamente ao jornalismo. Parece um esforço em traçar limites para os espaços: a poesia no seu espaço, a crônica também. E no papel, como se deu a crônica de Vinicius de Moraes? De saída, o livro supracitado, é composto de crônicas e poemas. Por que estão juntas? A maioria das crônicas do poeta contam realmente um episódio sem notarmos qualquer poesia inserida, mas não seria Vinicius, poeta que foi dos mais poetas apesar do infeliz epíteto, que passaria incólume pelo olhar que busca poesia na sua prosa. A crônica "Poema de Aniversário" é pura poesia em linha contínua, embora o autor teime e finalize o texto, ele próprio plenamente poético, com "versos finais de uma canção que te dediquei:

'...dorme, que assim
dormirás um dia
na minha poesia
de um sono sem fim...'"

Enfim, a crônica alicia o escritor a miradas mais encantadas diante da vida, a reflexões poéticas sem sequer ter consciência disto e, menos ainda, sem ter consciência de que é neste deslize para a poesia que ele vai prendendo o leitor apressado: é pela gota de lirismo ao comentar o sempre terrível tempo em que vivemos, que a crônica ganha lugar cativo na manhã do cidadão, ao lado do café, talvez da brisa característica entrando pela janela, marcando a longa jornada do dia que começa.

A LITERATURA BAIANA CONTEMPORÂNEA



Gerana Damulakis



Embora se saiba que a literatura brasileira nasceu na Bahia com Gregório de Matos e os outros poetas da época, e se saiba igualmente de nomes famosos como Castro Alves, Adonias Filho, Jorge Amado, a verdade é que hoje não se tem conhecimento nos outros estados do que se vem fazendo de literatura da mais alta qualidade na Bahia.
Principalmente nos últimos anos tem havido uma intensa atividade literária com vasta produção de livros, inclusive de novos autores que, infelizmente, por circunstâncias de distribuição, não chegam às livrarias do país. Aqui, se torna necessário caracterizar a literatura baiana, porque há a literatura feita por escritores nascidos na Bahia, mas não residentes no estado; há alguns poucos que produzem na terra sem serem baianos natos; e há, finalmente, os que nasceram, residem e produzem em seu próprio solo. Tais divisões separam da realidade literária nacional nomes como Antônio Torres, João Ubaldo Ribeiro, assim como uma Sonia Coutinho e uma Helena Parente Cunha, moradores do Rio de Janeiro, de seus pares e conterrâneos que não deixaram ou que deixaram e logo voltaram para Salvador.
Ventos promissores vão, no entanto, engrandecendo a história da literatura baiana feita pelos autores que permaneceram na terra. Na peneirada do joio e do trigo, assoma o trigo na poesia reconhecida de Ruy Espinheira Filho, autor da Poesia Reunida e Inéditos (Record, 1998); nos versos densos de Florisvaldo Matos, cantando em clave épico-lírica a invasão holandesa à baía de Todos os Santos reunidos no volume Mares Anoitecidos (Imago Ed./ FCBa, 2000); na voz forte e igualmente telúrica de Myriam Fraga em Sesmaria (Ed. Macunaíma, 2000); e na poesia de Maria da Conceição Paranhos, que chega a intitular sua coletânea como Minha Terra (Edições Cidade da Bahia, 2001) para dialogar com a "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, sendo que sua terra fica restrita ao espaço baiano. Encontra-se a marca do amor à terra, enfim, em poetas como Ildásio Tavares, Fernando da Rocha Peres, Luís Antônio Cajazeira Ramos, porque a força telúrica advinda do tema parece ser tão suficiente como a força de outros grandes temas.
O mesmo ocorre na prosa. Aliás, o conto figura ao lado da poesia como os gêneros mais afeitos aos baianos na atualidade. O talento da contística de um mestre como Hélio Pólvora, evidente em O Rei dos Surubins (Imago Ed./ FCBa, 2000), centra sua ação dramática no espaço baiano e sobre ele está colocada toda a visão reflexiva, sem desvincular, portanto, o homem das terras do sul da Bahia e da saga do cacau. A ação dramática volta-se para a capital do estado nos contos de Aramis Ribeiro Costa, tanto em seu volume A Assinatura Perdida (Iluminuras, 1996), como também em seu outro título, O Mar Que a Noite Esconde (Iluminuras, 1999). É através da visão do homem baiano e suas contingências que emerge o homem universal também nos contos de Vila Nova da Rainha Doida (Record, 1998), de Guido Guerra, na prosa límpida de Gláucia Lemos, na narrativa grapiúna premiadíssima de Cyro de Mattos, ou no conto fantástico de João Carlos Teixeira Gomes; e, ainda, na ficção de Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro.
Visto que este espaço é claramente identificado como o espaço baiano, distinguindo-o do resto do Nordeste, região a qual a Bahia pertence, a causa cultural marca presença na vivência das tradições, ora grapiúnas, próprias do sul da Bahia, ora do sertão, ora da capital. A referência assim tão explícita ao estado e ao homem enquanto personagem tão telúrico e tão enredado em ações que se acham alicerçadas nos costumes, nas lendas e mesmo na oralidade da Bahia, vem precisar as paixões, as angústias, os sentimentos que elevam o personagem à categoria de ser universal.

CIRCUNSTÂNCIA

Gláucia Lemos
Descubro uma formiga saúva caminhando no peitoril da janela. Uma formiga vermelha, cabeçuda, dois ferrões à frente da cabeça. Sinto imensa alegria. Essas formigas amam roseiras. Uma dessas na minha janela, fora de qualquer dúvida, sinaliza a existência de roseiral por perto. Detenho-me, dispensando-lhe toda a minha atenção. Maravilhado, vejo que não há somente uma, mas um pelotão deslocando-se em fila indiana pela beirada do mármore que liga os peitoris do sexto pavimento. Rapidamente resolvo ir com elas. Estou convencido de que em algum lugar chegaremos a roseiras.
Incorporo-me ao pelotão. Começo a caminhar pelo relevo da parede, com minhas pernas finas e compridas e curvas, de formiga. Tenho que caminhar lentamente para acompanhá-las. No entanto, mesmo que pretendesse locomover-me depressa no meu natural passo de humano, não o conseguiria. A princípio, custo a entender como minhas pernas estão frágeis e meus passos milimétricos. Deverei fazer com centenas de passos o percurso que venceria em segundos, em não mais que três passos das minhas pernas de homem. Agora, creio que consumirei algumas horas para andar da minha janela até a mais próxima, por cima do peitoril. Não há alternativa, já que decidi segui-las.
O contingente é numeroso e todas parecem pôr as patas exatamente onde as pôs a que vai à sua frente. Mesmo não entendendo porque, procuro comportar-me como as demais.
Há algum tempo que caminho e estou notando que minha janela parece muito distante agora, embora a do vizinho também me pareça longínqua. Não é fácil ser formiga – penso. Ou não é fácil ser formiga para quem sempre foi humano. Contudo, prossigo na jornada. A meio caminho, as companheiras que me precedem param em torno de um animal muito maior que nós. Tenho que imitá-las e me ponho a examinar também o objeto da curiosidade e do interesse geral. Caminho em volta do monstro e acabo descobrindo que se trata de uma barata. Mísera barata que está morta, ou quase. Em decúbito dorsal, uma das patas ainda se movimenta. Parece acenar um adeus. Nunca entendi porque as baratas mantém um péssimo costume, de não morrer de uma vez. Demoram-se com uma perninha tremendo, tremendo, denunciando que ainda estão vivas, arriscando-se a um pisotão derradeiro. Penso em fazê-lo, mais uma vez além das muitas em que já o fiz. Mas agora sou formiga e meu pisotão é muito mais leve que o da própria barata.
Após breves momentos, tenho a impressão de que um conselho decisório achou por bem carregarmos o monstro moribundo. Cada uma das formigas agarra-se a um pedacinho para que todas consigamos transportá-la, ou quase todas. Parece haver uma disputa por uma pontinha a que se possam agarrar. Não sei se as que não colaborarem nessa tarefa deixarão de merecer banquetear-se, já que não trabalharam. Quanto a mim, não estou interessado em comer barata, mas já que participo do grupo, dou também a minha bicadinha em uma ponta da asa e cá estamos indo como quem transporta um banquete. Para mim, suficientemente desinteressante, já que não sou formiga nativa, sim uma circunstância de formiga, por conveniência.
Não sei quanto tempo gastamos para vencer da janela do meu quarto até a do quarto mais próximo, e após, à do quarto seguinte e assim por diante, rumo ao final do parapeito. Finalmente vamos ter que descer por um tubo plástico que me parece muito calibrado, mas logo percebo tratar-se da rede hidráulica. Liso, como se fosse encerado, nele os meus pés deslizam, também os das outras formigas. E assim o peso da barata nos obriga a precipitar até o chão. Caímos todas agarradas à nossa carga qual um paraquedas coletivo. Algumas soltam-se e prosseguem. Terão recebido dispensa aquelas algumas? Ou poderão estar sem fome ou fazendo dieta. Aproveito e desisto também, por nenhum dos dois motivos, pelos meus especiais, absoluto desinteresse em degustar aquele petisco. Novamente em fila indiana, as desistentes prosseguem, e eu, naturalmente, as sigo.
Estou ficando fatigado da jornada, só a certeza de que encontraremos algum roseiral não me permite retroceder. Andamos longamente por chão acidentado. Suponho que seja a área localizada logo abaixo da janela do meu quarto. Vista de cima, do sexto pavimento, não parecia cheia de pedras, de saliências e reentrâncias tal como a conheço agora. Logo vejo-me diante de enorme palma de bainhas serrilhadas. Eu poderia caminhar por cima dela. Limito-me, porém, a examiná-la enquanto a minha formação de botânico leva-me a reconhecer uma prosaica touceira de capim. Estou surpreso. Como mera gramínea terá crescido a tais proporções? Logo, porém, me elucido: reduzido à condição de formiga como me encontro, um pé de grama terá que me parecer agigantado. Então compreendo também que as enormes pedras com que me tenho defrontado, não passam de pedregulhos que pude avistar inúmeras vezes lá de cima, quando na janela do meu quarto. Preciso dar muitos passos para vencer o pequeno percurso em torno do capim e sinto que está sendo muito cansativo ser formiga, o que me leva a recear não atingir jamais o hipotético jardim de rosas.
Atraso um pouco para falar à companheira que me sucede na fila.
- Ainda estamos muito distante, suponho.
Ela não me entende. Sacode suas antenas na minha direção como se me examinasse e prossegue ligeira. Fico meio decepcionado, logo, porém, compreendo que não poderia esperar de uma formiga o entendimento à minha linguagem. No ar, o que percebo, é algo semelhante a um cicio que deve ser a maneira de comunicação entre elas.
Após a caminhada de toda a tarde, chegamos finalmente, ao muro alto, agora altíssimo que me parece tocar as nuvens. Sei que se trata daquele dentro de cuja área se encontra o prédio onde estou morando. Com algum tédio recordo que em circunstâncias normais não gasto mais que dois minutos, talvez menos, entre o hall e o portão principal.
A tarde quase se foi, pois noto que escurece. Caminhamos ao longo do muro , ao encontro do portão de ferro, no qual passamos tranqüilamente por entre as grades, alcançando o passeio.
Aqui fora são muitos os pés humanos pisando quase sobre as nossas cabeças e os nossos corpos. Minhas companheiras não se assustam, parecem acostumadas, eu, porém, vejo a morte descendo sobre o meu corpo, na forma de um solado de couro – ou será de borracha? Encolho-me, com o maior susto da minha recente vida de inseto. Como um filho dos deuses, consigo ficar no pequenino espaço entre a sola e o salto do sapato. – Deus meu, como me tornei insignificante! – Tem suas vantagens a minha atual minúscula estatura. Às vezes, divirto-me com a situação. Dessa vez, porém, o coração bate acelerado e respiro fundo, antes mesmo de poder considerar se formiga consegue respirar fundo. Passado o susto, sinto vontade de rir. Não crendo que formigas riam, consigo conter-me.
As outras companheiras de jornada seguem sem qualquer receio, são felizes vivendo perigosamente, pois que é a única vida que conhecem. Quanto a mim, procuro encostar-me tanto quanto possível, ao canto da parede, bem rente ao sujo rodapé dos prédios, e vou andando, sabe Deus até que lugar.
Agora sou assaltado por importante dilema: se as sigo nesse passo ínfimo, de formiga, não sei quando chegaremos ao hipotético roseiral para meu retorno às pesquisas que precisei interromper desde que transferiram a minha residência. Se desisto de segui-las e reassumo a minha natural condição humana, não saberei jamais onde encontrar as roseiras. Estou muito preocupado com isso, pois ainda não me decidi.
O que ainda não entendo é porque me trouxeram a morar naquela casa. Será tão estranho querer, como eu quero, compreender a alma das rosas, convencido como estou de que elas a possuem, e pretender, como eu pretendo, ensiná-las a falar ?
Gláucia Lemos é ficcionista, com vários títulos premiados, inclusive com literatura infanto-juvenil. Este conto pertence ao volume No tempo dos frutos.














A ANTA DE MAINARDI

Goulart Gomes
A escritora Zélia Gattai publicou, em 1979, um livro intitulado “Anarquistas Graças a Deus”. Nesse livro, ela relata os primeiros momentos da imigração italiana para o Brasil, incluindo sua própria família. Uma das maiores contribuições dos italianos para a “Merica” foi a disseminação dos ideais libertários, que influenciaram profundamente o surgimento dos nossos movimentos trabalhistas e sindicais, no final do século XIX. O título do livro, propositalmente, traz uma contradição: o anarquista é, por excelência, um agnóstico, que busca a causa e solução para os problemas sociais na terra, e não no além. Essa dicotomia me remete a outra personagem: o articulista Diogo Mainardi, um anarquista neo-liberal. Mainardi parece ter herdado, simultaneamente, o ímpeto anarquista dos seus antepassados italianos e o afã capitalista norte-americano. O propósito dessa coluna é literário, e não político. Por isso, não pretendemos entrar em discussões ideológicas sobre o seu mais recente livro publicado: “Lula é minha anta”. Nunca na história deste país um presidente foi tão exposto ao ridículo. Mas nenhum dos seus detratores tem a coragem e o talento literário de Mainardi. Ele não é uma “versão barata de Paulo Francis”. Mainardi tem um estilo próprio, que alia uma estrutura de texto que nos relembra Nelson Rodrigues, de orações curtas e frases dilacerantes, com a verve irreverente do velho Francis (falecido há exatos dez anos) e uma cultura de fazer inveja. Nas crônicas que compõem o livro, anteriormente publicadas na revista Veja, ele atinge o seu objetivo de se colocar em evidência ao escolher, estratégica e ousadamente, um alvo de grande visibilidade: o homem que dirige o país, sobre o qual estão milhões de olhos postados, diariamente. O melhor exemplo disso é a crônica “Minha vida de coiote” na qual ele compara Lula ao Papa-Léguas e ele próprio ao Coiote do desenho animado de Chuck Jones: “Lula é o Papa-Léguas. Eu sou o Coiote. Se o Coiote é Lamarck, o Papa-Léguas é Darwin. Se o Coiote é o humanista Settembrini, o Papa-Léguas é o jesuíta Naphta. Se o Coiote é Bouvard e Pécuchet, o Papa-Léguas é a tempestade que devasta sua lavoura”. Setembrinni e Naphta são personagens de Thomas Mann, em “A Montanha Mágica”; Bouvard e Pécuchet são personagens de Gustave Flaubert, no romance de mesmo nome. Mainardi é um paparazzi das letras. Polêmico, amado, odiado, processado, perseguido e aplaudido, ele vem conseguindo, do seu jeito e pagando um alto preço, inserir seu nome na galeria dos maiores cronistas políticos da imprensa escrita que o Brasil já teve. Cínico e corajoso, graças a Deus.


Goulart Gomes é ensaísta, poeta, criador da linguagem poética POETRIX. Autor, entre outros, de Minimal (Copygraf Editora, 2007)

domingo, 18 de novembro de 2007

O ROMANCE MORREU

O romance morreu (Companhia das Letras, 2007) são crônicas de Rubem Fonseca, mas para quem não perde seus contos e romances, também este apanhado de textos é imperdível. E, imediatamente, se percebe que é válido ler um Rubem Fonseca solto, escrevendo sobre uma gama variada de assuntos. Logo no primeiro texto, que dá título ao livro, Fonseca conclui que talvez os leitores possam acabar, porém os escritores não, pois estes sofrem da síndrome de Camões, que salvou os manuscritos dos Lusíadas do naufrágio pelo qual passou, deixou a mulher amada morrer afogada e isto para que pouca gente lesse, haja vista ser o século XVI e em Portugal pouca gente sabia ler. Em “Loja de botox a varejo”, ele escreve: “Não quero me jactar dizendo que previ o que aconteceria em pouco tempo, essa avalanche de cirurgias cosméticas. Não me esqueço das agruras que passei com Feliz Ano Novo, prevendo a onda de crimes e invasões a residências que aconteceria alguns anos depois, o que me acarretou um processo criminal por apologia do crime”. Afora as veleidades de profeta (infelizmente ele estava certo quanto ao real barbarismo retratado no livro de contos de 1975), há o emocionante relato testemunhal sobre a Copa de 50 para os aficionados por futebol, em “Copa do mundo: alegria e sofrimento”.
E como há de tudo, pode-se passar de uma leitura leve sobre a dupla pipoca e cinema, até uma descrição de viagem como “Visitando Israel”. Entretanto, e como sempre, há um ponto alto, e este fica por conta de “José — uma história em cinco capítulos”, o texto mais longo do volume. Trata-se de uma pequena autobiografia. Pequena porque sequer chega a alcançar a plena adolescência do escritor. Ele optou por não usar a primeira pessoa, referindo-se ao personagem como José; olhando para si mesmo outrora e de fora, portanto. Aí encontramos um menino obcecado pela leitura de Michel Zévaco, Ponson du Terrail, Alexandre Dumas, enviados por uma tia, que era atriz de teatro no Rio, para Juiz de Fora, terra natal de Rubem Fonseca — em tempo: é o próprio quem diz neste livro que adora quando se referem a ele como escritor mineiro, apesar de ter vivido no Rio desde os oito anos de idade. Seguimos adiante com José encantado com o Rio de Janeiro, ainda que a mudança de Minas para a capital do país tenha sido causada por problema financeiro que fez a família passar de abastada para pobre. Mas um novo mundo abriu-se para o menino e seu poder de observação. A exuberância do Rio, seja dos lugares (Teatro Municipal, Biblioteca Nacional, zona boêmia da cidade), seja dos mais diversos tipos de gente, iam formando o imaginário do futuro escritor.
“Reminiscências de Berlim” é outro exemplo de peso dentro da coletânea. Rubem Fonseca estava lá em Berlim na noite de quinta-feira do 9 de novembro de 1989, quando de seu quarto ouviu gritos e buzinas na rua: era a derrubada do muro de Berlim. Relato incrível: ele encontra amigos que viviam no lado oriental, festeja com eles, passa por oriental que acabou de entrar na parte ocidental da cidade, ganhando flores e tapinhas nas costas...Uma delícia!
Enfim, os trinta temas refletem também os gostos e preocupações do autor e, nota-se o uso que faz deles na sua ficção: charutos ganham linhas, a paixão pelo futebol, como já foi citado, o próprio crime e, sempre, o fascínio pelas palavras que, agora sabemos, surgiu desde que ele aprendeu a ler sozinho e não parou mais. Aliás, diz Fonseca, a mania pela leitura só vem piorando. Acontece com todos nós.

Gerana Damulakis

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

AS CRIANÇAS DA LEGIÃO


Gláucia Lemos

Ler Clarice Lispector é um contínuo exercício de interpretação. Clarice reinventa significados, recria palavras com liberdade que induz o leitor a intrigantes reflexões. Aliás, reflexões a que nos acostumamos desde A paixão segundo GH, O lustre, A hora da estrela, e sobretudo Água viva, que nos parece tudo o que se possa criar como uma prosa poética inflamada destinada a ferir macia e inevitável, a sensibilidade do leitor.
Neste A Legião estrangeira, - Rocco, ed. 1978 – o editor reuniu treze contos cuja unidade está contida na poética voltada principalmente para a domesticidade.
Detenho-me – por me chamar a atenção e causar perplexidade – na natureza das crianças desses contos, protagonistas ou não. Não são crianças inocentes. Não têm alma branca nem candura de anjos. Ao contrário. As crianças da Legião, a Sofia, a Ofélia Maria, o menino de óculos, o menino menor, todos revelam sagacidade, malicia e até maldade, não obstante nem sempre se ter que esperar angelitude nos pequeninos. Essas crianças são ora calculistas, ora capazes de imaginar estratégias de comportamento, ora levadas a atitudes ofensivas inflamadas ou carregadas de frieza.
Uma revisitação da infância nas suas personagens, mas da criancice contemplada pelo lado malicioso e impertinente, Até mesmo na assunção de hipóteses como a do menino menor que, desejando a permanência do macaco do qual a narradora pretendia livrar-se, admite a possibilidade não de que ela também viesse a se afeiçoar ao animal, mas a de que ele viesse a “cair da janela e morrer lá embaixo’, ou ainda : “ E se eu prometer que um dia ele vai adoecer e morrer, você deixa ele ficar?”
A Sofia, uma garota que sente atração pelo professor gordo, de ombros contraídos, deselegante no seu paletó curto e desagradável na contensão da sua impaciência. Ela o vê como alguém difícil de se amar, mas o quer, e até divaga com ele todas as noites. No entanto, para atraí-lo, sabendo também não ser flor que se cheire, e igualmente ser difícil de se amar, vai à luta pelo lado avesso, tumultuando as aulas, atrevida, indisciplinada e contestadora, enraivecendo-o, somando à desagradabilidade do mestre, sua própria desagradabilidade. Querendo amor pelo caminho esconso da impertinência.
A Ofélia Maria sabe tudo, torna-se antipática por estar sempre pronta a um comentário ou colocação mais sábios que os dos presentes. Aconselha à narradora, sem ser consultada, sobre qualquer assunto, até que, de tanto entender de tudo e de tanto saber cuidar com sua pretensiosa superioridade, acaba por destruir aquilo que todos mais parecem amar no momento que vivenciam. E, irresponsável, não assume.
O menino de óculos atormenta-se por não ter consciência da própria inteligência. Vive vacilando ante a instabilidade de humores da família que ora o reconhece, ora se mostra indiferente. Confuso, arma estratégias, resolve agir sem naturalildade, sabe que pode fingir o que desejar, então se demora construindo a imagem que pretende aparentar em determinado dia que lhe está programado. Em um precoce maquiavelismo, vive um processo existencial que acimenta as bases de um caráter torpe.
A menina ruiva é a única a escapar do elenco de pequenos anjos decaídos, e também a protagonista do conto mais encantador e lírico da seleção de contos poderosos e encantadores na construção singular de Clarice Lispector.
Sem me preocupar com os temas evocados, tenho me detido na particularidade das personagens mirins e sua característica especial. No entanto A Legião Estrangeira é muito mais que crianças difíceis. É a angústia da incompreendida busca da adolescência; a inexplicabilidade da amizade que se merece pelo mero fato de existir; o tédio de obedecer ao cotidiano insosso e sem perspectiva, tal se fosse dogma; é a humilhante carência afetiva em confronto com a sordidez da vaidosa prepotência; é a velha Mocinha carregando todo o abandono e miserabilidade da condição humana; é a Quinta história que após oferecer quatro formas de contar como livrar-se das baratas, sintetiza a quinta história em duas linhas sob um título pelo qual só um autor corajoso arriscaria ferir a imaginação do leitor estupefato. Finalmente, é O Ovo que se enfiou entre as páginas do livro para que a autora se estendesse de premissa em premissa, desenvolvendo sua capacidade de filosofar profunda e demoradamente sobre a própria condição humana, e a condição da própria narradora, enquanto ser situado na heterogeneidade do universo. Até que, despertando para o quão longe se permitira, perguntar: Mas, e o ovo? E confessar: enquanto eu falava do ovo, eu tinha esquecido do ovo.
Isso é Clarice, um pouco do muito de Clarice Lispector em A Legião Estrangeira, do qual outros já tenham falado mais e melhor. Dela que, dominando a palavra em exercício pessoal, a ela se entrega, permitindo que se espalhe, se construa e desconstrua, porque na simbiose em que se alimentam, palavra e autor se confundem e se realizam, pois que assim se faz preciso.


Gláucia Lemos é escritora e crítica de arte.
Filiada à UBE-SP. Autora de A metade de maçã,
Vou te contar, meu camarada, entre outros.
glaucia-lemos@uol.com.br

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

O NOVEMBRO DE SOSÍGENES COSTA


Todo ano, o mês de novembro sempre tempo de homenagens ao poeta grapiúna Sosígenes Costa, o qual já inicia, no dia cinco, fazendo anos de morto, para logo no dia 14 completar anos de seu nascimento. É hora de olhar o que aconteceu com o nome e a poesia de Sosígenes Costa, inclusive para entender este momento. Autor de apenas um livro em vida, Obra Poética, da Editora Leitura, publicado em1959, e já admirado por um círculo de amigos, como Jorge Amado e James Amado, Florisvaldo Matos e Clóvis Moura, só para citar alguns, o autor prometia, na folha de rosto da edição reunida, outras obras e, entre elas, estava a Obra Poética II. Mudou-se para o Rio de Janeiro e lá morreu em 1968, como já foi dito, no dia 5 de novembro.
Na década de 70, James Amado despertou no poeta e ensaísta paulista José Paulo Paes o interesse pela poesia de Sosígenes Marinho da Costa. Isto se traduziu numa série de esforços para inserir o poeta grapiúna na história da literatura brasileira. Surgiu a pequena antologia de poemas sosigenesianos, acompanhada de uma "Tentativa de descrição crítica da poesia de Sosígenes Costa", subtítulo do volume Pavão Parlenda Paraíso (Cultrix, 1977), obra que testemunha a admiração de Paes. No ano seguinte, àquela Obra Poética II, prometida pelo autor na folha de rosto da edição de seu único livro, foi acrescentada a reedição da Obra Poética da Editora Leitura e, mais uma vez, em volume organizado por José Paulo Paes, a Cultrix continuava editando tais trabalhos. Não ficou nisto: o poema modernista "Iararana" só figurava na edição da Leitura como "Trecho de Iararana", mas veio a lume na íntegra, ainda pela Cultrix, junto ao MEC, em 1979, precedida, mais uma vez, de um importante estudo de Paes sobre o poema.
Há, é claro, o mérito da grande poesia movendo tudo isto. Mas temos que ser justos, e reconhecer que sempre encontramos o admirador James Amado animando os projetos, não deixando que o trabalho ficasse apenas na intenção. Em vários momentos, no estudo sobre a obra feito por José Paulo Paes, constatamos como a avaliação do ensaísta está recheada de informações cedidas por James, que ajudam a completar a figura do homem e o entendimento de sua poesia. No início dos anos 90, James Amado atuou novamente como incentivador de outro estudo que resultou no livrinho Sosígenes Costa: O Poeta Grego da Bahia (EGBA, FUNCEB, 1996), com título elaborado em torno da maneira como James certa feita referiu-se a Sosígenes: "o poeta grego da zona do cacau". Durante a década de 90, o poeta Florisvaldo Matos foi também incansável na publicação, no caderno Cultural de A TARDE, de artigos, ensaios e poemas dedicados a Sosígenes Costa. E, no final dos 90, em 1998, surgiu a revista iararana, recebendo o nome do poema da saga do cacau, como uma maneira de prestar homenagem constante ao poeta. A revista conta com dois sosigenesianos igualmente lutadores, os escritores Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro. Em Ilhéus,quando era Secretário de Cultura, o escritor Hélio Pólvora foi responsável por edições de três livros: a reedição da obra, Poesia Completa (Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Conselho de Cultura, 2001; iniciativa da Fundação Cultural de Ilhéus), a obra do Sosígenes cronista, Crônicas & Poemas Recolhidos (Fundação Cultural de Ilhéus, 2001) coletada por Gilfrancisco Santos e, ainda, uma coletânea de textos que prestam reverência ao poeta, A Sosígenes, com Afeto (Edições Cidade da Bahia; Fundação Gregório de Mattos, 2001). Por fim, um CD com poemas de Sosígenes. Tudo isto produto do monumental labor do contista de O Rei dos Surubins e cronista da coluna Conversas do Caderno 2 de A TARDE.
A admiração é a mola mestra que está fazendo crescer este rol de apreciadores do autor de "Iararana", "Duas Festas no Mar", "Tornou-me o pôr-do-sol um nobre entre os rapazes" e tantas outras peças poéticas tão surpreendentemente originais, pois nada há na poesia brasileira que se lhes assemelhe. Temos que continuar assistindo a muitas homenagens e temos que continuar espalhando a admiração pelo valor poético do autor dos famosos sonetos pavônicos, sonetos simbolistas impregnados com uma nota barroca, que encantam. Reconhecemos o poeta nascido em 1901, em Belmonte, Bahia, mas temos que reconhecer que, se hoje sua poesia está tão viva, isto se deve, para além da força de sua obra, ao empenho daqueles que não a deixaram ser vítima do injusto esquecimento.


Gerana Damulakis é autora de Sosígenes Costa: O Poeta Grego da Bahia (EGBA, FUNCEB, 1996)

terça-feira, 13 de novembro de 2007

POEMA DO MÊS

SHANGRI-LÁ

Talvez me entediasse em Shangri-Lá
Quando visse montanhas me cercando
E séculos e séculos passando
Talvez me entediasse em Shangri-Lá.

Leria livros - todos que há por lá
E passaria o tempo meditando
Os mistérios da vida desvendando
Que aborrecido, que seria lá!

Veria sempre o mesmo passarinho
Fazendo e desfazendo o mesmo ninho
Pois ninguém morre nunca em Shangri-Lá!

Mas talvez fosse boa a eternidade
E o tempo fosse pouco, na verdade
Se eu encontrasse o amor, em Shangri-Lá.

Este poema é de Aramis Ribeiro Costa e foi retirado de seu Espelho Partido - Sonetos Escolhidos 1971/1996 (Salvador: EGBA, FUNCEB, 1996)

sábado, 10 de novembro de 2007

TUDO QUE VOCÊ NÃO SOUBE


Tanto os escritores quanto os leitores vão adquirindo certos preconceitos como, por exemplo, não admirar outros escritores da mesma idade, região ou gênero, sequer lê-los porque não se pode perder tempo lendo o que os contemporâneos escrevem quando há muito clássico para “reler”. Se o escritor estiver na mídia, aí o nariz e a boca se contorcem e estará decidido que nada haverá de bom naquelas linhas escritas por fulano, seguramente. O mesmo se passa em qualquer área, é lugar-comum, humano demasiado humano. Imaginem o que dizem os oncologistas sobre seus colegas que exercem a medicina aplicando botox nas dondocas: simplesmente, para os primeiros os demais não são médicos. Quando se sabe, na verdade, que não é bem assim, há de haver de tudo, inclusive o que é fruto de preconceito.
Vamos fazer a leitura da escritora que está na mídia: Fernanda Young e seu sétimo romance, Tudo que você não soube (Ediouro, 2007). Primeiramente, vale lembrar que ela foi roteirista das séries Os Normais e A Comédia da Vida Privada, e que tem um programa no canal fechado, GNT, chamado Irritando Fernanda Young. Enfim, uma escritora inteiramente dentro da mídia. E ela faz questão de repetir que são romances o que sabe fazer melhor.
Afastando os tais preconceitos, nem que seja para ler apenas o primeiro capítulo, logo se dará o encantamento com o texto. A narrativa é uma catarse feita por uma filha para seu pai moribundo. Por vezes o tom é pesado, pois pesadas são a rejeição e a solidão que permearam uma infância sinônima de abandono afetivo. A capa do livro traz um martelo em relevo. É com ele que a narradora agride a mãe na adolescência, mas tudo que escreve para o pai não se quer como justificativa de atos passados, o desejo é o de verbalizar a mágoa. Imediatamente vem uma lembrança: o livro Carta ao pai de Franz Kafka, embora aqui haja um fundamento existencial concreto. O interessante é que Fernanda Young procura levar o leitor em outra direção, como quando escreve; “Caso fosse uma escritora, mesmo, deixaria que você morresse, antes, para poder me esbaldar nessas velhas lembranças; talvez transformando-as em patéticos biscoitinhos amanteigados num pratinho, como fez a bicha chata do Proust”. De resto, não deixa de estar presente o humor de Fernanda.
O mais incrível é que, embora pareça haver um esforço desmedido em certos momentos para que o leitor se assuste com tanto desamor, o relato acaba passando uma sensação incontestável: seja ódio, seja amor, há um sentimento muito intenso, por isso o romance consegue que o leitor se envolva com a narradora em algum ponto. Se houvesse indiferença e superação, a história não teria logrado êxito. Para além de preconceitos, portanto, é hora de saber Tudo que você não soube.

Gerana Damulakis

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

OS SERTÕES


Quando se questionou neste espaço a expressão indevida “qual a maior obra-prima da literatura brasileira?”, que abria um debate na internet, o texto pretendia apenas defender a existência de muitas obras de qualidade no mesmo patamar de excelência. Tendo em vista tão somente passear pela literatura brasileira e citar algumas obras com juízos de valor garantidos pelo tempo, ficou claro que não era pretensão o levantamento de cânone algum. Inclusive porque todo cânone é ditado pelo gosto pessoal de quem faz a listagem. O espaço aqui não alcançaria a enumeração das obras brasileiras de forma a satisfazer todos os títulos que possivelmente surgiriam na lembrança.
Vale enfatizar que, mesmo sendo como as considerações supracitadas deixam evidente, principalmente no que tange ao gosto pessoal, os autores mencionados no texto “Não há maior obra-prima”, sem dúvida, foram de uma importância capital para a história literária do Brasil. Por exemplo: José de Alencar foi prejudicado pelo romantismo exacerbado, mas como não reconhecer o escritor? Se Peri e Ceci incomodam o leitor de hoje, é provável que o romance Senhora produza encantamento. Outro exemplo: Jorge Amado, que tanto seduziu os leitores, que foi o precursor de uma literatura que chegou a impulsionar um Gabriel García Marquez, não pode ficar de fora de um passeio literário pelas letras brasileiras, bastando, para confirmar, uma leitura de A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água. Mas faz pouco tempo que Jorge Amado se foi, restam muitos ressentidos ainda fazendo o discurso do contra.
Por outro lado, voltando à ocasião da feitura da “lista” que não se queria como lista, ali não se leu o título de Euclides da Cunha, Os Sertões, obra monumental. É inesquecível e pungente o final, quando Canudos deixa de existir. Segundo Antônio Cândido: “livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, Os Sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira”. Alicerçada pelas palavras do maior crítico literário do Brasil, vale lembrar que a coluna “Olho Crítico” frisou que, no rápido passeio pela literatura brasileira, havia limites: o olhar estava restrito ao “romance ficcional”, não aos afluentes como romance reportagem ou romance histórico, os autores citados estavam mortos, o tempo abrangia do final do século XIX até o século XX. A leitura atenta desta coluna comprova tais requisitos cuidadosamente postos. O resto é questão de gosto, não de verdade absoluta.

Gerana Damulakis

domingo, 4 de novembro de 2007

CONTO DO MÊS

A ARMA DE CADA UM

– Eu andava solteiro, aí conheci a Diva, mulher bonita, loura, os homens endoideciam ao vê-la passar pelas ruas de Cruz das Almas. Mas Diva era uma dessas mulheres, como se diz, perdidas. Ganhava a vida assim, indo com um e com outro. Contudo, não se gastava, conservava o charme, a altivez, a postura. Sabe aquela atriz do cinema americano, a Marilyn Monroe? A Diva parecia-se com ela. Mulher bonita!
– Quem? A Marilyn?
– Também, também, mas a Diva... ah, bonita igual a ela, nunca vi.
– E o que aconteceu com a Diva?
– Tirei-a da rua. Levei-a para morar comigo.
– Casou-se com uma mulher da vida?!
– Casei-me. Ficamos juntos um ano e seis meses. Pensei que a Diva endireitava, mas... sei lá... talvez o destino de certas mulheres seja levar essa vida mesmo. A Diva me traiu com o Nestor. Peguei-os na minha cama. Dupla infeliz.
– E você, o que fez? Matou-os?
– Nada! Ia lá me sujar com dois perdidos!
– E então?
– “Vistam-se,” disse-lhes, firme. “Vamos, rapaz, não tenha medo. Não vou te matar.” O cabra ficou assustado, tremia igual vara verde. “Venha tomar café, você deve...”
– Convidou-o para tomar café?!
– Foi o que eu disse.
– “Venha tomar café. Você deve estar muito cansado, precisa alimentar-se. Venha, vamos à mesa. Você também, Diva.”
– Foram à mesa comigo. Botei-os na minha frente. Não se pode confiar, gente que trai é um perigo. Botei-os na minha frente. Apontava o revólver para os dois.
– Revólver?! Você tinha um revólver? Por que não os matou?
– Ah, menino, você ainda é muito novo, não sabe onde reside a sabedoria do homem.
– Eu não sabia que existia a sabedoria do... do...
– Vai, diz. Acostume-se logo com essa palavra. Todo homem tem de estar preparado.
– Eu, hein. Bem, o que fez com os dois?
– Nada.
– Nada?! Você não fez nada?
– Não. Tomaram café. Disse a ele, apenas: “Olhe, rapaz, a Diva vai com você, ela vai ser a sua mulher, e ai de você se fizer algum mal a ela.” Falei isso só para meter medo nele, a Diva era uma pobre coitada. “Levantem-se” disse-lhes. “Tome”, e passei meu revólver a ele.
– Endoideceu!
– Nada. Eu sabia o que fazia. Disse-lhe: “Tome, leve este revólver, você pode precisar. Tem dinheiro para o transporte? Não? Então tome aqui dez contos.” E se foram.
– E aí?
– Aí eu continuei levando minha vida. Até que, um dia, quando eu passava em frente à cadeia de Santo Antônio, alguém chama meu nome.
– “Seu Manuel Jorge, seu Manuel Jorge, lembra-se de mim? O senhor tem um cigarro para me dar?”
– Era o Nestor. Espiava a rua através de uma grade de ferro, retangular e minúscula. Lá estava Nestor, preso. Tirei um maço de Hollywood do bolso, aproximei-me da grade e passei-lhe o cigarro. Perguntei:
– “O que lhe aconteceu, Nestor?”
– “A Diva, seu Manuel, a infeliz fez comigo o que fez com o senhor. Peguei-a na cama com outro; matei os dois com aquele revólver que o senhor me deu. Estou vingado. Estamos vingados.”
– “É, Nestor, estamos vingados”, disse-lhe. E saí andando, livremente.
Flamarion Silva é contista, autor de O Rato do Capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, 2006 - Coleção Selo Letras da Bahia, 108)

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

RECEBIDOS E LIDOS

Livros, “livros à mão cheia...” dizia Castro Alves. São tantos que chegam. Devidamente recebidos e lidos foram os seguintes títulos: Todo sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, 2005), de Lima Trindade, reunião de 13 contos; As borboletas são assim (As borboletas, 2007), de Tatiane de Oliveira Gonçalves, coletânea com 18 contos; Andarilhos (Bagaço, 2007), de Maurício Melo Júnior, composto por duas novelas e, por fim, Ávidas paixões, áridos amores (Grafmarques, 2007), de Arriete Vilela.
A produção da alagoana Arriete Vilela, mestra em Literatura e com mais de uma dezena de títulos publicados, incluindo romance, contos e poesia, vem sendo muito aplaudida dentro e fora do meio acadêmico. No mais recente volume, Ávidas paixões, áridos amores, qualquer exemplo que dali seja retirado mostrará, tal a ordenação e a harmonia das peças poéticas, a busca incessante pelas palavras, guiada por um intenso sentimento: paixão ou amor, não; paixão e amor guiam o desejo de decifrar de vez o enigma através de questões assim formuladas: “Como pude escrever/ que os relhos da paixão não me deveriam esporear/ a alma, se é isto exatamente o que mais quero,/ pondo-lhes à disposição o próprio dorso/ da minha poesia?”.
As novelas que compõem Andarilhos, do jornalista da TV Senado Maurício Melo, são “Caminho só de ida” e “Volta à seca”. Ambas, ao misturar história e invenção, resultaram instigantes e, como estão acompanhadas do estilo do escritor, desde logo aliciador, não há como pensar em deixar a leitura antes do fim. Merece destaque a impecável narrativa sobre um cangaceiro de Lampião que, após cumprir 18 anos de cadeia, vai tentar uma vida decente no Rio de Janeiro, mas acaba envolvido num incidente, digamos, político. Está presente um toque inusitado, que talvez esteja na esperança que permeia a narrativa e que, com a aproximação do final, vira pó, ilusão, palavra “que a vida não alcança”, como escreveu Drummond no poema “Viver”, de As impurezas do branco (J. Olympio, INL, 1973).
As borboletas são assim, de Tatiane Gonçalves, vem trazendo o aval indiscutível de Maria da Conceição Paranhos que percebeu, de saída, o insólito emergindo da banalidade e as surpresas que concorrem para o desvio de rota nas narrativas de casos corriqueiros. “Meninice” é exemplo disto, uma história bem amarrada, que surpreende. Por vezes aproximando-se do fantástico (ou usa o fantástico como alegoria?), há textos com pitadas de magia e ilusão, como “Revirando”, “Um homem no tempo”, “Receita fúnebre”. Outros mostram a nossa complexidade, como as coisas nos afligem e como criamos escapatórias para a opressão da rotina, como os carimbos no conto “Os carimbos de Amélia”. Conceição aponta o talento para a ficção, notório em Tatiane. Está apontado!
E ainda na casa do conto, Lima Trindade também deixa evidente seu talento. Desta feita é Állex Leilla quem assina as orelhas e abarca o universo do autor neste livro Todo sol mais o Espírito Santo: “O universo de Lima Trindade é amplo, vai da infância possível, passando pela que jamais teve,criando divertidos suspenses ou uma história delicada de meninas, navegando em mares Gideanos ou num bonde meio Borges, meio Julio Cortázar”. As construções de Lima Trindade são maduras, mostram que o ofício é dominado pelo escritor, tanto na montagem do espaço, quanto na alegoria elaborada para vestir a história. Vale apontar o conto que dá título ao livro “Todo sol mais o Espírito Santo”, como um texto que merece ser antológico e, dentre outros bem logrados, vale citar “O pecado de Santa Helena”, “Calças de pintor”, “Luz mortiça” e a homenagem ao conto “Ônibus”, do volume Bestiário, de Cortázar, intitulado “Fim de linha”. Muito se pode esperar da literatura de Lima Trindade.
Aí estão os livros recebidos e lidos.

Gerana Damulakis
Ó PAI


"Por que me abandonaste?'
Cristo


Qualquer dia, qualquer mês
e estou só.
Só as estrias de luz mostram o ar
carregando suas massas de partículas
redondas, tantas quantas são
as pessoas da multidão.
Lá fora é onde deve haver alguém.
Por que tarda?
Estou em plena tarde
sem perder o relógio de vista.
Preciso dizer-te isto, meu Pai,
que já vivo a minha tarde
e tenho medo.

Gerana Damulakis