quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

QUASE SAUDADE






Gláucia Lemos




Não sei para que hoje tanta luz.
Um delírio azul de luz,
um exagero de lua,
na minha janela clara.

Tenho esta noite nas mãos,
na minha pele viva.
E ela me desperdiça.

Não sei para que hoje tanta noite.
Tanta que transborda das bordas do tempo.
...se não estás.

Eu me avesso de mim.
E tenho à minha frente este luar inútil,
inútil como ausência,
distância,
partida.




Gláucia Lemos tem mais de duas dezenas de títulos publicados e vários prêmios. É autora de, entre outros, A metade da maçã.
A foto é Lua Azul, de Cristiano's Photos, retirada do Flickr.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

AVALIAÇÃO ANUAL - PARTE I


Remover formatação da seleção
Gerana Damulakis



Não deixa de ser um exercício de vaidade isto de listar as leituras do ano que marcaram em termos de prazer estético, prazer da leitura ou como se possa chamar a mais. A soberba me incomoda muito, talvez seja o pecado capital que tem uma relação plena de conflitos comigo. Como uma pessoa que condena a vaidade pode gostar tanto de opinar sobre literatura? Não sei responder, mas garanto que é sempre com deleite que leio, vibrando a cada frase perfeita, a cada verso tocante. Lembrei de Fernando Pessoa que soube dizer em "Gosto de dizer": "As palavras são para mim corpos tocáveis (...). Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim(...). Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. 'Fabricou Salomão um palácio...' E fui lendo, até o fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar".
É esta paixão pelas palavras, um tanto ao modo de Pessoa, que acaba levando ao desejo de escrever sobre as leituras, para mexer mais um pouco com elas, para que perdurem mais. O livro que me deu mais prazer este ano foi Istambul, de Orhan Pamuk (Companhia das Letras, 2007) e, que ironia, eu nem gosto muito de biografia, prefiro sempre a ficção. Mas Istambul é diferente: trata-se de "Memória e Cidade" numa mistura equilibrada, despojando, desta forma, o narrador de um trono. Em autobiografias o que me incomoda é o narrador se colocar como centro do mundo, parece que se qualquer pessoa respirar, só respirou porque o narrador existe! Não há isto em Istambul, Pamuk consegue algo raro: uma narrativa deliciosa sobre a cidade e sua vida dentro dela.
Seguindo em frente: há sempre um clássico que ainda não se leu, mesmo sendo uma leitora tão fascinada e com tanta gana por ler tudo; todavia há muito para ler. Li O deserto dos tártaros (Nova Fronteira, 1984), de Dino Buzzati, clássico do século XX que estava pendente. Embora já soubesse tudo sobre o livro através de ensaios, um dia teria que fazer tal leitura. Tenho que reproduzir algumas frases de Buzzati: "Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso que causa a solidão da vida".
Resta agora levantar um paralelo Buzzati - Kafka, o que iria resultar num ensaio instigante se eu tivesse o talento de César Aira. E é Aira o autor do livro de ensaios Pequeno Manual de Procedimentos (Arte & Letra, 2007) que destaco neste ano: foi saboroso porque pensamos a literatura de modo muito parecido.
Falta muito o que comentar. Para encerrar, por um jogo de associações complicado, tive necessidade de um pouco de poesia, da poesia de sempre, de versos que já estão entranhados e ficam se repetindo dentro da mente: o som das palavras de Drummond no "Poema de sete faces":

"Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco".






As fotos são de: Fernando Pessoa, Orhan Pamuk, Dino Buzzati, César Aira e Carlos Drummond de Andrade.

domingo, 23 de dezembro de 2007

A HISTÓRIA DE UM POEMA



Gerana Damulakis


Numa noite de domingo estavam reunidos comigo na varanda de meu apartamento os seguintes escritores, por ordem alfabética: Aramis Ribeiro Costa, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Malba Vellame, Maria da Conceição Paranhos e Soares Feitosa. Talvez algum silêncio cômodo entre dois assuntos, talvez o frescor da noite, o certo é que já não me lembro o que levou Malba a exclamar bem naturalmente: "Eu não quero chegar em casa nunca!", mas a fala detonou em Luís Antonio a seguinte estupefação: "Isto é um verso!". Imediatamente Soares Feitosa concordou e, logo, ficou resolvido que iríamos criar um poema a partir daí. Quando cada um estava dando sua contribuição, na minha vez eu disse assim: "Eu me perco no infinito de teu beijo", que foi transformado, por Luís Antonio, em: "No ocaso de teu beijo eu me infinito/ e esqueço da procura em que me perco", que são os dois últimos versos do segundo quarteto. Este soneto, de Luís Antonio Cajazeira Ramos, saiu primeiramente no livro Como se e agora consta também do livro Mais que sempre - uma antologia, onde está reunido o melhor de Cajazeira.


FADO DE CONTAS

Eu não quero chegar em casa nunca!
Malba Vellame (de súbito)


Eu não quero chegar em casa nunca,
a caminho, no abrigo de teu colo,
sonhando... no balanço do automóvel
que nos leva a um destino inalcançável.

O tempo pára, o espaço cristaliza-se,
e o carro é lar, e leito, e colo, e beijo...
No ocaso de teu beijo eu me infinito
e esqueço da procura em que me perco.

De encontro aos vidros saltam fachos vários,
como se objetos de desejos vastos,
nos quais meus gestos não se satisfaçam.

Aproxima-se o instante em que me apeio,
vai a carruagem, dobra a esquina, e sigo,
noctívago das horas, a teus passos.



Luís Antonio Cajazeira Ramos é autor de Fiat breu (Edições Papel em Branco, 1996), Como se (SCT, FUNCEB, 1999), Temporal temporal (Relume Dumará, 2002) e Mais que sempre (7Letras, 2007).

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A TESSITURA DA SEDA

Gerana Damulakis


Seda (Rocco, 1997) não é apenas o título de um dos volumes de Alessandro Baricco com tradução no Brasil, é a palavra indicadora para definir um estilo original, suave como o toque do tecido. Antes de adentrar o universo deste italiano de Turim, é importante lembrar que há, na língua portuguesa, aquele título que foi o ganhador do Prêmio Viareggio e que teve edição pela Iluminuras, em 1997, Oceano Mar. É quase garantido: quem leu o primeiro seguramente não deixou de acompanhar as demais traduções. Em 1999, a Rocco, que já havia editado Seda, trouxe o escritor ao Brasil para o lançamento de Mundos de vidro. Pela Rocco, ainda saíram os seguintes volumes: Novecentos — Um monólogo, em 2000 e City, em 2002. Agora, em 2007, a Companhia das Letras traz a nova edição de Seda e o lançamento de Esta história.
Em Roma, em um teatro, houve a leitura pública de Seda, assistida por mais de 300 pessoas. Pensa-se logo em um silêncio sepulcral e um deleite ímpar, pois que há tanta melodia no ritmo de Baricco, há uma emoção de tal intensidade levantada pela bela história do livro e há, ainda, o choque plasmado no antagonismo de culturas pelo qual passa o protagonista. Seda conta como uma epidemia, em 1861, atingiu a criação dos fiadores europeus e por isso Hervé Joncour, comerciante de ovos de bichos-da-seda se vê obrigado a procurar a mercadoria no Japão. A acompanhante do fornecedor dos ovos, em certa feita, entrega-lhe um bilhete, mas Hervé não entende os caracteres e tem que contratar uma prostituta para saber o que ali está contido: era uma declaração de amor! Mas Hervé é casado e ama a mulher. Na última viagem ao Japão ele recebe uma carta com sete páginas, carta esta que só será decifrada depois que sua esposa morre.
Às vezes alguém escreve primeiro justamente o que se pensava colocar na resenha. Na revista EntreLivros, Paulo Bentancur é igualmente aficcionado pela obra de Baricco e deixa isso muito evidente, inclusive porque vê na reedição de Seda, dez anos depois, uma segunda chance para o “leitor brasileiro acordar”, pois que Alessandro Baricco “é um escritor que precisamos ler com urgência”. Mais adiante ele aponta a construção “meticulosa, o pudor e a exigência formal e estilística”. E atesta sobre a destreza do escritor: “E desliza, linha a linha, com seu ritmo verbal quase doce não fosse tão visceralmente tocante, melancólico — amargo em seus desfechos”.
Também já não é em primeira mão qualquer testemunho sobre a capacidade de Seda de nos levar, durante a leitura, a um estado de suspensão. Indo um pouco mais longe, este estado é o que se espera sempre de um bom livro. Se a literatura é uma escapatória, então, escapamos para o mundo de Seda, para confirmar que a revelação da leitura pode ser de tal ordem avassaladora, que nos surpreenda em demasia, mais do que possamos suportar.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O ENTERRO DE VADINHO


Carlos Vilarinho

Jazigo perpétuo de Risoleta Arquimedes, jazigo perpétuo de Carlos Teodoro, jazigo perpétuo de Frank Menezes, jazigo perpétuo de Florentina Antonia de Souza, jazigo perpétuo de Domingos Oliveira, jazigo perpétuo de Roberto Flores, jazigo perpétuo de Bonifácio Zurich, jazigo perpétuo de Augusta Magalhães, jazigo perpétuo de Hilda Freire, jazigo perpétuo de Joventina do Carmo, jazigo perpétuo de Gildásio Rodrigues, jazigo perpétuo de Lucas de Oliveira, jazigo perpétuo de Jovina Vieira...
Quanta gente morta. Tomara que eu encontre Aquiles. Sempre tive curiosidade em saber como se sentiu ao morrer simplesmente por uma flechada no calcanhar. Coisa mais estúpida. Agora sei como aquele gato preto do Edgar, Plutão era o nome dele, se sentiu quando foi colocado dentro de um buraco na parede e rebocado com bloco e cimento. É uma sensação horrível estar aqui preso nessa caixa. Vou sair.
— Não, mãe! Não! É muito pavoroso aqui, tenho medo.
Era o filho de Joaninha, a secretária do lar. Lar da minha casa. Aquela gostava de mim, está com a expressão triste, a infeliz. Se ela soubesse que isso aqui é um alívio. Cheguei bem perto de Harmonia, tinha os olhos inchados. Confortava com franqueza minha sobrinha Amelinha. A única vez que vi olhos brilharem realmente foi quando levei Harmonia ao teatro. Ela escondida do marido e eu da minha mulher. Parecia que havia duas pedras de diamantes dentro dos olhos da morena caiana. Assistimos a “A Comédia dos Erros” de Shakespeare. Harmonia ria um riso puro e rechonchudo. Fiquei contente naquele dia.
Não sabia que morto pesava mais. Meu sobrinho Antero, irmão de Amelinha, não sabia se chorava ou se fazia força para segurar a alça do caixão. Foi isso que me tornei, uma alça de caixão.
— Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Levou, painho! Levou painho!
— Calma, senhora, calma.
Era uma afilhada que toda semana me pedia dinheiro. Por isso eu era painho. Amelinha detestava essa criatura. Queria saber como Dorian Gray ficou morrendo dentro daquele quadro. Outra coisa esquisita. Agora, no entanto, sei como Brás Cubas se sentira. Não sou ele, o verdadeiro e original, mas acho que todo mundo que morre se sente assim, como Brás Cubas. Estou aqui em cima sendo carregado, vão me colocar numa gaveta horrorosa e, por enquanto, vou zanzar por aí. Vi de relance aquele que tem o segredo da vida e da morte. Já tinha sido avisado que ele viria. Era o velho Omolu. Sabia que viria só para me certificar de que tudo que desconfiava era verdade. Quando fiz quarenta anos, tive um insight na rua. Tive uma visão que mostrou a minha morte em vida. Não só uma, mas várias vezes. Diversas vezes fui um vivo morto e desconfiava que quando morresse estaria livre para viver realmente. Era isso que o Velho viria me avisar. Além dos procedimentos de praxe de um recém morto.
— Aqui pra nós, ele morreu de tristeza quando Harmonia terminou o caso com ele...
— Ele me contou que o chifrudo estava desconfiado e que deu uns safanões na criatura...
— Foi isso mesmo. Ela ficou com medo, mas ela está triste, vejam...
Eram Luís, Mariozinho e Joel Cara de Cachaça. Os únicos que sabiam de mim e Harmonia.
De qualquer forma teria que curtir meu enterro. Até então não saberia se haveria outro em qualquer parte do universo. Sabia que de agora em diante viveria com mais calma. Lembrei de uma vez que passei a freqüentar centros espíritas. Seria mais ou menos como eles falam mesmo, com a diferença de que o morto ouve o pensamento de todo mundo. Isso é que é bacana. Acho que vou continuar morto o resto de minha vida.
— Não, mãe, não! Não, mãe, não! É assustador aqui. É assustador. Seu Vadinho também tinha medo do escuro, mãe, seu Vadinho também tinha medo!
O filho de Joaninha era um bom garoto. Contava histórias para ele dormir, às vezes escabrosas que eu mesmo ficava com medo mais tarde. Engraçado, ele me disse uma vez que os mortos ouvem mais do que os vivos. Como ele sabia disso? Uma vez numa palestra ouvi uma dessas Facilitadoras dizer que a criança é mais perspicaz e sensível do qualquer adulto. Isso eu já sabia, contudo não tinha certeza, e fiquei em dúvida durante a tal palestra sobre a transparência.
— Mãe, enterro é um casamento ao contrário, não é?
Realmente. Nos dois há séquito. Nos dois há choro. Nos dois há extremos. Nos dois há contradições. Nos dois há franqueza e falsidade. Harmonia, por exemplo, com aquele brucutu. Destoava algo tão nítido e claro que não sei como ele não percebia. Ou percebia e fazia que não percebia. Mas ela própria ia e vinha com ele. Ou sobre ele. Trânsito confuso esse na cabeça de uma mulher. E só agora depois de morto, sem direito a fala, só a ouvidos, entendia então o que significava a transparência da criança naquela pergunta inocente do filho de Joaninha.
— Eu prefiro festa de natal a enterro ou casamento, mãe.
Ou na afirmação judiciosa da criança, ao passo que, naquele momento, tive a impressão de que ele, o pequenino, me vira, ou me enxergara, quando estava ao lado de Amelinha e Harmonia tentando confortá-las. Olhei para o fundo e vi o Velho. Quando retornei as vistas, o filho de Joaninha estava com os olhos fixos em minha direção. O Velho balançou a cabeça como, ao mesmo tempo, me certificasse e aprovasse a visão do pequeno. Ele, o Velho, estava me esperando para me levar não sei para onde. De vez em quando ouvia umas vozes de velho na minha cabeça, mas achava que eu estava ficando maluco com tanta maconha que fumava. Era ele, o anjo da guarda, me avisando dos perigos. Ele vinha e colocava um zumbido no meu ouvido. Olhei novamente o filho de Joaninha e ele estava com as mãos espalmadas rindo e olhando para o céu.
Ouvi umas palavras de Harmonia, as últimas antes de partir.
— Uma vez Vadinho recitou um poema para mim tão lindo, disse-me que era para eu não esquecer quando ele morresse... E agora esqueci.
Harmonia chorava saudosa. Mas num sopro de vida restante, enviei o poema que não era meu, mas de uma grande amiga.
— Acho que me lembro Amelinha, não sei como, mas lembrei pelo menos de uma parte, acho que é assim:
O que restará agora?
Na verdade o que restará?
Naquele dia parti enfim
nem olhar olhei, sem visão
Não levei lembranças sem fim
sem validade , sem mala
Como quem, deixando a sala,
deixa o ontem, tudo, escombros
Tudo deixado atrás dos ombros,
restou o sonho, essa viagem
para a qual não achei passagem.

19/12/07

Poema de Gerana Damulakis “DEPOIS DO INÍCIO”
Carlos Vilarinho é ficcionista, autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (FUNCEB, 2005).

FILOSOFANDO COM MANTEIGA

Gláucia Lemos


“A felicidade pode ser um par de botas.”
Machado de Assis


Venho tentando compreender o mistério que estabelece uma ponte entre a sensação do paladar e o universo complicado das recordações.
O advento das dietas vem nos submetendo à obrigação de negarmos um dos grandes prazeres da nossa condição humana: comer o que satisfaz a nossa aprovação gustativa. Assim, o melhor do ovo rejeitamos, e nos contentamos com a sem-gracice da clara, em nome do colesterol. Devemos dizer não a nosso purê amanteigado, à santa macarronada do domingo, à pizza de quatro queijos, às maioneses, e substituí-los pela verde mistura folhosa de lindo visual e gosto duvidoso; pela secura do filé de frango grelhado; pela grosseria da pizza de massa integral e pelo borrachudo queijo frescal. Carboidratos, lipídios e que tais, inimigos nossos irreconciliáveis que merecem o nosso sincero desprezo, atormentam nossa vida, limitando os nossos jantares.
É assim que também riscamos a manteiga da nossa lista de compras, um dos mais deliciosos resultantes de um processo laborioso. O que passarmos no pão nosso de cada dia? Geléia? Nunca, é preciso cuidar da glicemia. Queijo? Só se for o frescal, com aquele sabor do leite vertido do sapoti verde. Resta margarina, mistura química que dizem ser vegetal, mas acabamos por ingerir sem certeza do que estamos somando à poluição das nossas vísceras. Pois, não é que ando comendo cream cracker com margarina há muitos anos?
Numa dessas manhãs, porém, uma caixa amarela com rótulo vermelho, em cujo conteúdo um dos meus filhos exercita sua rebeldia, por não se render ao dessabor das margarinas, lá estava tentadora à minha frente. Seduzida, já que também não sou de ferro, entreguei os pontos — faça de mim o que bem quiser — rendi-me ao fascínio, e eis uma tênue espatulada de manteiga no campo retangular do meu cream cracker. Uma mordida. Uma mastigada. Uma revelação!
Redescobri a alegria da infância. Alguma coisa naquele sabor me transportou para uma intraduzível sensação. Digamos que foi felicidade, como havia muito tempo não me fora dado sentir. O sabor do biscoito com manteiga — atente-se que não era um manjar, uma ambrosia, um pudim especial, um pastel-de-Belém , era um mero, o mais comum dos biscoitos conhecidos, um apenas cream cracker acompanhado de café-com-leite — me transportou a momentos muito vividos do meu primeiro decênio de vida, o do café da manhã antes de ir à escola naquele tempo despreocupado e meio irresponsável, em que vivemos só porque nos colocaram no mundo, e a vida não tem arestas nem tristezas, não tem vazios nem culpas, não tem tédios nem mágoas, a vida corre deslizando como as águas de um rio. A vida é somente Vida, para que a possamos colher, porque acreditamos que para isso estarmos no mundo. Entendi então que naquela época nunca observara quanto sabor havia no biscoito com manteiga — claro, ainda não havia margarina nem colesterol, eu comia manteiga todos os dias sem restrições para o meu prazer de degustar.
Mas nessa manhã descobri que a satisfação do paladar também é como o encontro de um caderno de anotações que se guardara no fundo de uma velha e emperrada gaveta, e que, folheado ao acaso, reconta horas encantadoras das quais até pensávamos nos haver esquecido, em um regozo de alegrias físicas, vivas e pulsantes. Pode ser uma ponte que conduz a nosso íntimo mais profundo, e alvoroça lembranças e sensações. Para o que às vezes não é preciso mais que um biscoito sem nobreza e uma pequena transgressão.
A gente vive aprendendo e se surpreendendo, e exercitando o poder e o direito de filosofar, até mesmo sobre um pouco de manteiga em um biscoito cream cracker.

Salvador, dez/2007.
Gláucia Lemos é ficcionista com mais de duas dezenas de títulos publicados, entre eles, O riso da raposa (Bibliex, 1988).

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

I CARRY YOUR HEART WITH ME


No filme IN HER SHOES, traduzido aqui como EM SEU LUGAR, Cameron Diaz diz o poema de e. e. cummings de uma forma espetacular. Sou fã deste poema e uma insatisfeita com as traduções que encontrei. Pedi, então, ao Manuel Anastácio, do blog Da Condição Humana ( tem entrada pelos meus favoritos, mas mesmo assim, vai aqui o endereço: http//:literaturas.blogs.sapo.pt/), que aceitasse o desafio de traduzir o poema para nossa língua. Creio sinceramente que os portugueses sabem usar melhor as possibilidades do nosso rico vocabulário. Por exemplo: pra o verbo "to carry", eu achei quem traduzisse pelo verbo "carregar" e por "levar". Não gostei do resultado, que ficou assim para o primeiro verso, respectivamente: "carrego o teu coração comigo" e "eu levo o seu coração comigo". Manuel Anastácio optou por "trago o teu coração comigo". Por tal exemplo já dá para perceber a sutileza na hora de usufrir da língua portuguesa. Vale apreciar a escolha em "segredo a todos velado": a poesia alcançando a poesia. Agradeço a Manuel Anastácio pela tradução que coloco, com sua permissão, para que seja desfrutada, pois é a melhor até hoje realizada para o poema de cummings.



I carry your heart with me

I carry your heart with me ( i carry it in
my heart). I am never without it ( anywhere
I go you go, my dear; and whatever is done
by only me is your doing, my darling)
I fear
no fate (for you are my fate, my sweet) I want
no world (for beautiful you are my world, my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you

here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life; which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart

I carry your heart ( I carry it in my heart)


Trago o teu coração comigo (guardo-o dentro
do meu coração) nunca o deixei noutro lugar (onde quer
que vá, vais comigo, meu amor; e o quer que seja feito
apenas por mim, é por ti feito, minha querida) temerei

jamais qualquer destino (pois és o meu destino, minha doçura) quererei
jamais qualquer mundo (que a tua formosura é todo o meu mundo, minha verdade)
e és tu o que uma lua sempre possa ter significado
e o quer que tenha sempre um sol cantado, és tu

aqui está o mais profundo segredo a todos velado
(aqui está a raiz da raiz e o botão do botão
e as alturas das alturas de uma árvore chamada vida; que cresce
para além do que a alma pode esperar ou o pensamento esconder)
e é esta a maravilha que mantém as estrelas separadas

Trago o teu coração (guardo-o dentro do meu coração)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

DEPOIS DO INÍCIO

Gerana Damulakis


O que restará agora?
Na verdade, o que restará?

Agora pensei em criar,
pensei vibrar com cada ilusão.

Naquele dia parti enfim,
nem olhar olhei, sem visão.

Não levei lembranças sem fim,
sem validade, sem mala.

Como quem, deixando a sala,
deixa o ontem, tudo, escombros.

Tudo deixado atrás dos ombros,
restou o sonho, essa viagem

para a qual não achei passagem.



De Guardador de Mitos (Edição do Autor, 1993).

domingo, 16 de dezembro de 2007

CONTO DE NATAL



Carlos Vilarinho



Sofia me disse que sua mãe era fã incondicional dos artistas italianos. Daí seu nome igual ao da atriz italiana. Ela não conhecia as atrizes, via somente os livros que o tio Pepe lia com avidez e por vezes languidamente derretendo-se na poltrona. Tinha nove anos e uma curiosidade enorme em saber o que aquelas letras todas reunidas faziam na mente de tio Pepe. Uma vez assistindo a um desenho animado, meio atenta na tela, meio atenta na conversa de Antonio e Lúcia, ouviu:
— Não, querida, para que livros para Sofia no Natal?
— Antonio, a Sofia vive nos braços da poltrona de Pepe tentando fazer as leituras que ele faz...
— Não, nada disso, vamos comprar uma boneca bem bonita parecida com ela.
Sofia saiu totalmente do mundo animado da TV e voltou-se para dentro de casa. Olhou a estante e a poltrona vazia de tio Pepe. Dependurou-se e arriscou pegar qualquer um que estava ali. Ela então abriu e leu uma história de uma menina que cultivava livros. Leu com dificuldade, é certo, mas conseguiu ler. Depois daquele dia, Sofia adquiriu uma paixão imensa pelos livros. Chegou a sonhar que era uma personagem que se escondia naquela estante. Primeiro voava por um lugar do nunca, havia um amigo com o nome parecido com o do tio Pepe. Depois conversava livremente com um príncipe pequeno, do mesmo tamanho dela; contudo, gigantesco nas idéias. Por vezes, enquanto conversava com o príncipe pequeno, como ela, tinha imagens de letras e palavras rondando eles dois. De repente viu passar nitidamente um bloco de palavras e letras combinadas, que já ouvira falar em poesia. Achou a combinação e a imagem que aquelas letras lhe proporcionaram tão criança e infantil quanto ela, contagiantes ao se pronunciarem. Era assim:
Sonhadora menininha,
cativas o universo.
Para mostrar sua vida lindinha,
em sonho de verso.
Vira ainda as renas que carregavam aquele velhinho gordinho que ria fácil e trazia presentes. “Ah! Que mundo aquele dos livros e das histórias!”, pensava. Ouviu o som da garagem. Correu para a porta já entreaberta e espionou por um facho de luz.
— Então, Lúcia? Olhou o presente de Sofia?
— Eu achava melhor livros... Vou concordar com você, ainda que muito duvidosa.
— Não se preocupe, diremos quando chegar a hora da leitura.
Sofia pressionou os lábios entre os dentes. E ficou pensativa. Ouviu a mãe dizer que ia levá-la no dia seguinte para escolher. Feliz e convicto que daria um belo presente para a filha, Antonio falou, Sofia ouvia e sentia a satisfação do pai em presentear-lhe. Sentiu orgulho nas palavras do pai. Afinal Micheli não ganharia presentes, foi o que a amiga lhe dissera. Mas logo o orgulho se dissipara, lembrou que garantira a Michele que também não aceitaria presentes. E olhou os livros do tio Pepe esparramados pelo quarto.
Enquanto se arrumava dentro de um misto de tristeza e decepção, Sofia teve uma idéia. E se dissesse ao pai com toda a sua pureza e autenticidade de princesa pequena que queria pelo menos um livro? De uma forma ou de outra iria comprar os presentes de Natal, não destituiu contudo a idéia de ter livros para si. Viu novamente a satisfação no rosto do pai. Definitivamente Sofia não era uma menina como as outras, ela sentia isso. Insistia para o tio Pepe contar-lhe histórias e, como uma mágica, lá estava ela facilmente no mundo das histórias dos livros.
Havia uma árvore de Natal enorme em frente ao shopping que todos iam. Parecia que toda a cidade dirigia-se unicamente para aquele lugar cheio de lojas caras e só duas livrarias. Lembrou-se de que uma vez o tio Pepe leu para ela a história de Natal que um velho sovina ficava sozinho durante a noite da ceia e então ao refletir sobre sua vida tentou mudar para melhor. Era esse então o espírito natalino. Com neve ou no calor do verão, o Natal servia para despertar nas pessoas o sentimento franco e puro. Mas só no Natal? Que estranho. Então nos outros trezentos e tantos dias as pessoas podem magoar umas às outras? Aquilo era demais para Sofia, que pensava agora em Micheli.
Conseguiu, com a ajuda da mãe, convencer o pai a ganhar livros também.
— Só livros, não. Vou lhe dar uns presentes bem bonitos, umas roupinhas e uma bonequinha parecida com você para se divertir... Leitura faz bem, mas na hora certa, de qualquer forma escolha o livro.
Escolheu “Vinte mil léguas submarinas” e “As mil e uma noites”. Teria o seu próprio e não esperaria mais o tio Pepe para ler as histórias de Sherazade.
Micheli chegou com a mãe. O pai constrangido não se integrou à reunião natalina. Havia de tudo na mesa e os presentes ao pé da árvore de Natal. Sofia estava especialmente feliz. E não era só porque ganharia seus dois primeiros livros mais importantes. Era porque dentro dela estava a imagem e as palavras que vira quando viajava pelo mundo das letras. Sofia cativava o universo. Transformaria um sonho em realidade. Na hora da entrega dos presentes, notou ao fundo, bem serena, dona Helena e a filha Micheli com um ar perdido na atmosfera bendita da noite feliz. Sofia encarregou-se, em frente a todos, de segurar duas caixas bem enfeitadas, em uma havia a bonequinha que parecia com ela e na outra a roupinha em linho que o pai escolhera. E com o riso infantil de Natal cruzou toda a extensão da sala e brindou com mimo de criança viajada pelo mundo das letras, disse:
— Papai, o Natal não serve para despertar nas pessoas o sentimento franco e puro?
E então deu as duas caixas de presente à Micheli. Pelo rosto do pai passearam contornos de decepção. Depois de surpresa. E finalmente de felicidade e orgulho pela filha que tinha. Sofia deliciava-se com Simbad, o marujo, Ali Babá e os quarenta ladrões, além do capitão Nemo. E com o riso infantil do Natal, completou:
— Feliz Natal, Micheli!




16/12/07
Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina caolha & Outras Histórias (SCT, FUNCEB, 2005).

UM CAFÉ NA TARDE FRIA



Gláucia Lemos


Espantou um moleque que, à porta da rua, gritava para dentro: velho maluco!, depois voltou para a sala devagar. Mais uma vez olhou, no canto da mesa, a cafeteira suja. Depois sentou-se no banco a um canto, e acendeu o cigarro. O corpo era pequeno e frágil como o de um adolescente. As mãos delicadas e leves seguravam o cigarro como se estivessem vazias.
Pelo chão, espalhavam-se os cavacos de cedro.
Fixou os olhos no piso, em um ponto qualquer. Fora pela porta em frente que ela entrara naquele fim de tarde. Apressada. Quase correndo a abrigar-se da chuva. Como um potro assustado.
— Dá licença?
O homem ergueu a cabeça. Ela transpunha o batente sacudindo a chuva do vestido branco. Passando as mãos pelos cabelos cacheados.
— A chuva me pegou. — Parecia desculpar-se.
— Pode entrar, fique à vontade.
Ele como que emergiu da sisudez habitual. Sorriu. Só com os olhos. Como só sabia sorrir. A mulher parecia assustada. Olhava em volta com olhos de expressão espantada. A sala pequena, as ferramentas espalhadas, não sei quantas esculturas povoando o ambiente, desordenadamente, com a mudez da madeira. Depois, ela ficou olhando o homem. Barbado, o peito nu não muito forte, cabelos crescidos, grisalhos nas têmporas, parecendo velho.
A mão soltou a goiva em cima da mesa, e Samuel aproximou-se dela. A silhueta da mulher de branco na moldura da porta, pareceu-lhe um anjo. Mãos levemente pendidas, o corpo parado, o cabelo curto cacheado. E os olhos muito abertos fixando seu rosto. Parecia um anjo. Ele tentou sorrir com seus dentes grandes. E descobriu que ainda sabia. Repetiu.
— Pode entrar, fique à vontade.
Ela tentou um sorriso tímido. Depois sorriu também um sorriso aberto e livre, como criança.
— Não quero atrapalhar, pode continuar no seu trabalho.
Parecia medrosa. Talvez do escultor excêntrico. Ninguém aproximava-se dele. Calado, sombrio, sozinho, um ar de velho no rosto grave. Só eventualmente, pessoas estranhas aos vizinhos apareciam de carro e levavam suas peças. No mais, era só solidão.
Ele retomou as ferramentas e voltou a seu trabalho. Ela ali ficou, sentada em um banco, até que a chuva passou. Calada. Só olhando os movimentos de Samuel. Os pedaços de madeira caíam ao chão, as formas nasciam dos hábeis movimentos das mãos pequenas, e ela acompanhava sem desviar os olhos.
Quando a chuva passou a mulher levantou-se e foi embora. Sem dizer nada. Ele apenas viu seu vulto transpondo a porta e continuou no trabalho, como se nada houvesse acontecido.
Uma tarde, algum tempo depois, alguns meses, ela voltou. Chegou devagar, como quem não quer nada, espiou na porta com a antiga timidez, e perguntou.
— Dá licença?
O homem ergueu a vista para a mulher, que, sem esperar resposta, entrava devagar. De olhos ausentes, como se a visse pela primeira vez, ele não a reconheceu de pronto. Ela sentou-se no mesmo banco, encolhida e perguntou, como criança
— Posso ficar aqui?
Fez que sim, com a cabeça. Ela sorriu e ficou. Calada. A tarde inteira. No fim da tarde, foi embora.
Depois dessa vez ela voltou. Outras e outras mais. Não todos os dias, mas sempre que as tardes eram frias, ou sempre que chovia.
Uma tarde, Samuel perguntou seu nome.
— Lúcia. — Respondeu lacônica.
— Mora onde, Lúcia?
Ela sorriu.
— Aqui perto.
— Que é que você faz?
— Uma porção de coisas... e você?
—Eu?... - Samuel fixou-a admirado — Não está vendo? Eu corto madeira, faço uns troços... Faço árvore virar figura de gente. Isso tudo que está por aqui espalhado, não está vendo? E espanto os pivetes que vêm a minha porta me amolar. Me chamar de velho... e de maluco.
Não parecia importar-se muito com o detalhe.
Uma tarde ela chegou e entrou em silêncio. E, como sempre, sentou-se no mesmo banquinho. E baixou a cabeça entre as mãos, e chorou. Chorou muito, calada. O homem, surpresa no rosto, deixou seu trabalho e ajoelhou-se ao lado dela. Os olhos claros sempre tranqüilos tornaram-se inquietos. E, qual se estivesse diante de um ser de outro mundo, não atinava com o que fazer para consolá-la. Pôs-se a seu lado calado e ansioso, sofrendo por vê-la sofrer e vendo-a transformar-se ante seus olhos, em um ser mais real, mais concreto. Por várias vezes tentou passar as mãos pelos cabelos dela, para consolá-la, e por várias vezes recuou. Por timidez. Não deveria tocar em Lúcia. Mas a dor de Lúcia, por que quer que ela fosse, foi uma revelação para Samuel. Aquele anjo que enchia a sua solidão chorava. Aquele ser envolto em pureza, tão cheio de doçura e de silencioso mistério, para quem não lhe seria possível olhar com malícia, era uma mulher. E tinha mágoas. Aquele anjo era uma mulher, Samuel descobriu com perplexidade. E foi então que se lembrou de olhar um espelho depois de muitos anos sem o fazer. E também descobriu que não era um velho. Era um homem maduro, sensível, que se escondia naquela solidão que o afastava do mundo e vincava-lhe o rosto e o envelhecia. Um homem que perdera o hábito de sorrir e reaprendera que existia vida pulsando dentro de si, por causa da presença de Lúcia.
Depois daquela tarde, ela continuou a vir como se nada houvesse acontecido. Nunca lhe disse quais eram suas mágoas e Samuel nunca lhe perguntou. Mas agora, ele lhe passava as mãos pelos cabelos com carinho mudo, de quem entende que sendo uma mulher e não um anjo, Lúcia precisava de carinhos. E lhe afagava o rosto e lhe beijava os olhos porque descobrira que ela era uma mulher. E uma mulher que se abrigava à sua sombra, tão recluso que era, tão solitário que sempre fora, era porque ela também não tinha amigos. E assim, Lúcia descobriu a cafeteira a um canto de uma velha mesa e lhe fazia café todas as tardes. Porque estavam em um inverno muito chuvoso e frio, e assim sendo, Lúcia vinha a Samuel todas as tardes. E se amavam. Naturalmente. Como um homem e uma mulher se descobrem e se amam, desde que o mundo é mundo.
Ele soltava as ferramentas do trabalho, quando a mulher lhe estendia a xícara de café, com as mãos delicadas, de pele fina. E Samuel punha-se a perguntar a si mesmo, que mulher era aquela? Frágil, quase como uma criança, de rosto delicado e mãos bem cuidadas, de modos finos e cabelos encaracolados, que lhe trazia todos os dias um sorriso inocente, nos lábios rosados. De onde teria vindo aquela mulher nem bem madura, nem bem menina, que entrara em sua vida de repente pela porta a dentro, numa tarde de chuva? E se tornava indispensável. E mudava toda a sua vida. E o levava a descobrir que ainda era moço e sabia sorrir e sentia vontade de viver. E tornava tudo tão diferente à sua volta que até os pivetes deixaram de vir importuná-lo. Mas suas perguntas ficavam insatisfeitas, porque Lúcia sempre respondia com gracejos, dizendo qualquer coisa, menos o que ele ansiava por ouvir.
— Eu? Eu sou uma princesa encantada.
— Eu sou Cinderela.
— Eu sou Rapunzel de cabelos cortados.
Talvez nem mesmo se chamasse Lúcia. Mas, que importava o nome? Se ela mesma nem se preocupava com o depois? Não lhe fazia perguntas, não lhe dizia respostas. Apenas existia. Era só uma presença que ele sabia que se repetia todas as tardes, sem compromisso. Sem promessas e sem segurança. Enquanto chovesse, ele soube depois.
Quando o inverno acabou, na primeira tarde de sol, ela não veio. E não veio nunca mais. Sem adeus, sem despedida. Sem recado e sem explicação.
O homem pôs-se a esperar. Primeiro com a inquietude e o desespero dos apaixonados. Depois com a saudade e a dor dos abandonados.
Todas as tardes ele ficava contemplando a cafeteira suja a um canto da mesa, como Lúcia a deixara pela última vez. Sem tocá-la. Como um objeto sagrado. E a goiva e o formão descansados sobre a mesa. O trabalho que iniciara no tempo em que Lúcia lhe vinha, nunca foi concluído. E no atelier nunca mais foi ouvido o toc, toc do formão talhando a madeira. Era só o silêncio e o homem esperando, com a fronte escorrendo em suor, e o calor da tarde abrasando tudo com a força do sol que dourava lá fora o céu de verão.
As têmporas grisalhas de Samuel depressa embranqueceram. Seu corpo pequeno e magro tornava-se em um corpo de velho baixinho e mirrado. A barba lhe chegava ao peito como a de um ermitão e os dentes grandes nunca mais sorriram. Agora os pivetes voltavam à sua porta para xingá-lo de velho.
Samuel sentiu o cigarro arder-lhe entre os dedos pendidos. Queimara todo. Sacudiu a mão e a baga caiu entre os restos de cavacos antigos. Uma dor profunda, física, começou a apertar o peito do homem. Levantou-se lentamente. Uma angústia nos olhos. Foi até a porta, por onde ela sempre viera, no tempo em que vinha. Olhou para o céu, azul e brilhante e começou a pensar... Se chovesse. Quem sabe? Quem sabe, se chovesse ela voltaria? Ergueu os braços para o céu e clamou:
— Chova! Que chova muito! Que chova muito e alague o mundo!
Transpôs a soleira. Olhos para o céu azul e seco. Os braços erguidos em súplica incompreensível para quem assistia. Que chova muito! Começou a andar pela rua. Os pivetes juntaram-se em volta acompanhando. Velho maluco! Velho maluco! Gritando, assobiando, dizendo piadas. Samuel indiferente à zombaria de olhos agoniados para o céu, prosseguia clamando. Que chova muito!!! As mãos para o alto, a voz em apelo de comover os passantes. Alguns paravam para olhar, alguns riam. Louco, está bêbedo, é o velho que faz esculturas Sempre teve um parafuso frouxo.
Repentinamente, escureceu. Grossos pingos começaram a cair. Ribombou o trovão, e o temporal veio abaixo, inundando a rua. A molecada correu a abrigar-se. Os curiosos dispersaram-se. O homem, perplexo, demorou-se parado no meio do asfalto, debaixo do aguaceiro. E sorriu. Primeiro com os olhos, depois com os dentes grandes como reaprendera a sorrir no tempo de Lúcia. Em seguida foi caminhando devagar até a casa. A porta estava aberta. A chuva respingava nas figuras de madeira. Samuel entrou. Olhou em volta, não havia ninguém. Permanecia o deserto que torturava os dias de Samuel havia tanto tempo. A cafeteira suja lá estava em um canto da mesa, no fundo da sala, como Lúcia a deixara. E na bancada do trabalho, em frente, o imenso e pesado bloco de jaqueira, inacabado, de onde começava a emergir, Deus sabe há quanto tempo, um torso de mulher para o qual Lúcia posava, quando vinha. No mais, o silêncio e o vazio.
Samuel sentou-se frente à mesa e atirou com violência a cabeça atormentada por cima dos braços dobrados. A mesa balançou mal aprumada. O trabalho inacabado, foi lá, veio cá, e despencou-lhe por cima da cabeça pesadamente.
Lá fora, chovia ainda. No fim da tarde o vento estava frio.
Lúcia veio vindo lá do fundo da sala, devagar, e estendeu ao homem inerte a xícara de café. O vestido branco colado ao corpo, encharcado de chuva. Caracóis molhados nos cabelos curtos. Um sorriso inocente nos lábios pequenos. Como um anjo.
Não sei se Samuel despertou ou se dormira definitivamente. Lúcia nunca me contou.







Gláucia Lemos é ficcionista e poeta, além de ter vários títulos dentro da literatura infanto-juvenil. Este conto pertence ao volume Todas as águas.








sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

UMA NOITE, MUITAS HISTÓRIAS

Gerana Damulakis

A noite é sem silêncio e no entanto onde os sinos/ Do meu Natal sem sinos?
Manuel Bandeira

A literatura tem seus temas universais. Mesmo a literatura mais regional, aquela que liga o homem à sua terra, trata, em instância mais profunda, das paixões, das angústias, dos sentimentos, enfim. Dentre os temas considerados consubstanciais aos prosadores, encontra-se o tema do Natal. Afeito aos contistas por encerrar geralmente um episódio bastante rico e possível de conter igualmente a brevidade e a densidade que o gênero busca, o tema natalino já se traduz como uma tradição.
O Natal traz a magia despertada pela luz dos enfeites, as recordações de outros dias de Natal e com elas as pessoas amadas que se foram e que outrora riram diante de um presente inusitado ou de um desejo realizado. É um dia de confraternização, porque o espírito natalino envolve todos com bondade, resignação e tolerância. O ritual permite impulsos imaginários e, logo, criações que se tornam narrativas recheadas de surpresas e efeitos literários. Se o tema do Natal fascina, há também, junto ao desejo de contar, o desejo de ouvir histórias, inerente ao homem desde a infância. A linguagem dos contos é explorada na sua condição simbólica, e se o mundo esperado pelo leitor é um mundo mágico ou lírico, então a composição natalina marca a embriaguez entre o real e o irreal. Neste tocante, o escritor francês Guy de Maupassant é um bom exemplo com seu “Conto de Natal”, porque há qualquer coisa de salvação, própria do clima natalino, quando certos vazios ou certos desencantamentos ganham esperanças, ilusões de uma noite. A referência vai para a Editora Itatiaia Limitada, que tem uma bela edição com cinco volumes: Obras de Guy de Maupassant.
Uma das mais pungentes narrativas natalinas é de O. Henry, pseudônimo de William Sidney Porter: o magistral conto “O Presente dos Magos”, que conta sobre um casal pobre, quando, pelo Natal, cada um deseja intensamente presentear o parceiro. Mas eles não têm dinheiro; no entanto, possuem outros tesouros: ele, um relógio de ouro, que pertencera ao avô, e que levava preso num cordão de couro gasto, fazendo com que sentisse vergonha de consultar as horas; ela, portadora de vasta cabeleira, como uma cascata caindo-lhe nas costas. Sem que um soubesse da angústia do outro para conseguir comprar um presente, acabam provando a mesma intensidade de amor. Ele vende o relógio e compra um jogo de pentes de tartaruga, orlados de pedraria, para os cabelos da amada. Ela vende o cabelo, que é cortado tão rente a ponto de conferir-lhe a aparência de um meninote e adquire uma corrente de platina digna do relógio do marido. Este conto está no volume da Ediouro, com seleção e prefácio de José Paulo Paes, Caminhos do destino e outros contos.
A literatura ocidental vem sendo enriquecida com os contos de Natal desde Charles Dickens, que escreveu sua “Canção de Natal” para iniciar, logo depois, uma série de contos natalinos com a história “Uma Árvore de Natal”, publicada primeiramente em revista, por ocasião do número correspondente à festa. O sucesso foi enorme, aquele número se converteu em verdadeira árvore de Natal, como dizem seus historiadores, porque outros contistas foram colocando adornos, enfeites luminosos e presentes nos ramos literários. Todos os contos de tal série de Dickens parecem ser a primeira chama natalina, que se fará presente na ficção do mundo cristão. A sugestão é o volume O manuscrito de um louco e outras histórias, que contém cinco destas histórias natalinas, também com tradução e seleção de José Paulo Paes para a Ediouro.
No leste, os mestres russos do realismo, refletem a festa cristã em condições adversas, aproveitando para espelhar a realidade dura da nação, seja na trajetória da criança desvalida, do conto “A Árvore de Natal de Cristo”, de Dostoiévski , seja através dos dois velhos abandonados pelo destino, personagens meigos e tímidos diante da vida, do conto “Sonho de uma Noite de Natal”, de Górki, ambas em Histórias de Natal (Boitempo Editorial, 1995).
Entre nós existe uma produção de contos fundados no ambiente natalino, seus sentimentos e expectativas. O conto de Machado de Assis, “Missa do Galo”, parece ser um marco, está em todas as antologias de contos do bruxo. O mestre do conto não descreve uma celebração de Natal, não há uma festa, mas há sentimentos evocados pela data, há um tempo suspenso, a espera pela hora da missa, insinuando uma probabilidade. Lygia Fagundes Telles não resistiu e escreveu “Missa do Galo (variações sobre o mesmo tema), que saiu pela Summus Editorial, 1977, enquanto Antonio Callado homenageou o Natal e a obra-prima de Machado com seu conto “Lembranças de Dona Inácia”. Ainda que fora da linha traçada por Machado, há contos natalinos inesquecíveis na literatura brasileira, como “O Peru de Natal”, presente em Os melhores contos de Mário de Andrade (Global Editora, 1988), ou “A Noite em Que os Hotéis Estavam Cheios”, de Moacyr Scliar, só para citar dois dentre tantos.
Mais exemplos ficam com a prosa dos baianos: João Ubaldo Ribeiro, com seu “Jingobel, Jingobel (Uma história de Natal)”; Hélio Pólvora, com seus “Conto de Natal”, do volume O rei dos surubins (Imago, 2000) e “Natal com Julieta”, que está em Os galos da aurora (Fundação Casa de Jorge Amado, 2002) e Aramis Ribeiro Costa, com “Era Véspera de Natal”, da reunião de contos O mar que a noite esconde (Iluminuras, 1999), que podem ilustrar a fortuna da literatura baiana tratando de tema tão caro. O volume Contos para um Natal brasileiro (Relume- Dumará, 1996) traz as narrativas citadas de Callado, João Ubaldo e Scliar. São sugestões de leitura que podem colocar mais luz no Natal do leitor, ou, no mínimo, podem garantir alguns momentos de prazer literário.

Coluna Olho Crítico da Página Aberta do jornal Tribuna da Bahia, 15/12/2007.

HISTÓRIA DOS MITOS GREGOS


Gerana:
Pygmy woman of great beauty who lived in Egypt, or perhaps India. According to the myth, she despised the gods, and had a special aversion to Artemis and Hera. Gerana married a pygmy man called Nicodemos, and the couple had a son: Mopsos. Hera then turned Gerana into a stork, as a punishment for the woman's hatred of her. From then on, Gerana's only concern was to get her baby back. When the pygmies saw that the bird was trying to abduct Mopsos, they drove it away. From then on the storks and the pygmies were at constant war. It is from this myth we get the vision of the stork carrying a baby.
www.in2greece.com/english/historymyth/mythology/names/gerana.htm

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

SITUAÇÃO

Gerana Damulakis
Para meu amigo que se foi tão cedo: o poeta Daniel Cruz Filho

Onde estou?
Como me situar
se espaço, tempo, energia
são conceitos relativos da teoria do homem?

Onde estou?
Como me geografar
se a equação ilógica
é indemonstrável, complexa questão
da mutabilidade do mundo
a cada segundo?

E, afinal, onde estou?
Como me localizar
se o eu vaga mais que o corpo,
é totalitário e onipotente,
refazendo-se à revelia de mim?

Como me plantar
nos meus pés
quando se fixar pode significar morte,
o fim absoluto,
renegado sete vezes,
sete vezes injuriado?

E, afinal, o que esperar?
Que um mapa deva limitá-lo
em seu mundo, ó imaginário:
viajante de mim.



De Guardador de Mitos (Edição do Autor, 1993).
O poema é dedicado a Daniel Cruz Filho desde sua feitura, mas na ocasião ele estava vivo.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

FOME

Flamarion Silva

A criança chorava morrendo de fome. O pai não sabia o que fazer. A mãe tentava fazer o filho calar a boca.
– Desde ontem não come, o coitadinho – disse a mãe.
– Vou ver se arranjo algum trabalho – disse o marido, saindo preocupado.
Mais tarde ele voltou e disse:
– Não arranjei nada. Ele dormiu? – perguntou olhando para o bebê, no colchonete, estirado no chão.
– Dormiu, respondeu a mulher. Pelo menos, dormindo, acho que não sente fome. Quem está dormindo sente fome?
– Sei não. Mas, como dizem que todo sonho é a realização de um desejo, ele deve estar comendo no sonho. Sonho de que está numa mesa farta.
– Eu queria que esse sonho fosse realidade – disse a mulher. Seria tão bom... pena que o sonho acaba, se acorda...
Batem à porta e o marido vai ver quem é.
– Como é, senhor, faz onze dias que a casa venceu. Quero receber.
Era o proprietário do barraco.
– Não espero mais um dia! – disse ele, alterado – Ou paga até hoje à noite ou ponho tudo no olho da rua! Pague o que deve! Não estou aqui para sustentar vagabundo!
O homem gritava. A mulher pediu:
– Não grite, a criancinha vai acordar. "Quem sabe se eu pedir. Sou mãe de uma criancinha. Talvez ele fique tocado. Ele deve ter mãe, filhos". Desde ontem nosso bebezinho não come, meu senhor. Meu marido não é vagabundo, não. Todo dia ele sai procurando emprego, mas não acha nada, a coisa está difícil. Por Deus, espere mais um pouco, nós somos honestos, se estamos nesta situação não é por culpa nossa e...
– Ah, não, e de quem é então? – berrou o proprietário.
– Não sei, meu senhor, não sei, mas tenho certeza de que Deus sabe que a culpa não é nossa.
– Tire Deus de suas enrolações – disse, contrariado, o proprietário.
A criança acordou com os gritos, chorando mais do que antes.
– Está vendo, estúpido, acordou nosso bebê – disse o pai do menino.
– Ou sai até às 7h de hoje ou chamo a polícia. Passar bem. Hum, onde já se viu... deve, não paga, e eu que sou estúpido... canalhada!
O homem sai bufando.
– E agora, o que vamos fazer? – perguntou a mulher, aflita.
O marido nada respondeu. Não tinha resposta a lhe dar.
– Se ao menos o bebê calasse a boca – ele disse – Não consigo pensar com toda essa zoada.
– Ele não tem culpa de estar chorando. Ele está morrendo de fome. Não deve ter sonhado nada, o coitadinho...
– Será que algum vizinho não consegue um pouco de leite?
– Já pedi. O último mingau que ele tomou foi uma velhinha que mora lá no fim da rua quem deu. Ela também é necessitada. Outros, dizem: “arranja filho quem pode; tem que agüentar; estamos no mesmo barco, e não tem nada para dar.” Uma humilhação...
A tarde foi morrendo e a hora aprazada chegando. O marido disse:
– Vou sair.
A mulher ainda perguntou para aonde. Não deu tempo de responder. Tinha uma idéia na cabeça e precisava pô-la em prática rápido. Não podia deixar o sangue esfriar, a raiva do mundo passar. Estava com raiva de todo mundo e só havia uma maneira de acabar com tudo isso, com a fome e com a miséria por que estavam passando, ele e a família. Tinha raiva, e um homem com raiva esquece que é homem, vira bicho.
– Tem veneno aí? – ele gritou para a mulher da farmácia.
Rápido a vendedora colocou um pacote de veneno de rato no balcão. Ele pegou o veneno e saiu correndo. Precisava ser rápido.
– Você tem que pagar, moço – gritou a moça da farmácia.
Agora ele não tinha tempo. Precisava ser rápido.
– Tome. Beba! – passou o copo à mulher.
– O que é isso? – perguntou ela, já levando o copo à boca.
– Não! Não! Espere! Primeiro o bebê.
– O que é isso? – ela quis saber de novo.
Ele colocou o líquido na mamadeira do filho e disse:
– Tome, nenezinho, tome que a fome passa. Vai dormir e acordar gordo, num lugar lindo e cheio de comida.
O bebê sugou ávido o líquido da mamadeira. Depois dormiu.
– Agora você. Tome! Rápido!
A mulher ingeriu o líquido de um gole só. Ele fez o mesmo.
Quando o proprietário retornou, viu que todos dormiam.
– Corja de vagabundos! rosnou. Mas, depois, olhando melhor, vendo os três assim, dormindo juntinhos no colchonete, no chão duro, amoleceu. Sentiu pena e decidiu:
– Vou dar mais um tempo.


Flamarion Silva é autor de O Rato do capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, 2006). Coleção Selo Letras da Bahia, 108.

O ÚLTIMO BRINDE


Gerana Damulakis


Solitude, récif, étoile...
Mallarmé

A última vez
aconteceu
por entre pensamentos:
lembranças aguadas
passeando pelas margens.

A última vez;
não a vez final:
verso nenhum finda
a menos que você
pare de encucar.

As lágrimas daqui
não são as da TV,
vídeo, cinema
que pára a cena
e repete a dor.

Somos um tanto das
pegadas dessas letras,
bailando pelos séculos
eternos e
últimos. Salut.
Este poema pertence ao livro Guardador de Mitos (Edição do autor, 1993).

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

SONETO DAS SOMBRAS E DOS PASSOS


Aramis Ribeiro Costa


A sombra do teu vulto me entristece
Segue os meus passos, cresce, se agiganta
O menino que em mim por ti se encanta
Soluça no meu peito que envelhece.

A neve que o cabelo te embranquece
Agora em meu cabelo desce tanta
Que a sombra do teu vulto, avô, se espanta
Desta sombra que à tua se parece.

E seguimos, as mãos entrelaçadas
As duas sombras, pela vida atadas
Embora pela morte divididas.

A sombra do teu vulto me abre os braços
Mas eu, avô, sou eu quem segue os passos
Das minhas gentes mortas e queridas.


26/12/1995





Este soneto está no volume Espelho Partido-Sonetos Escolhidos 1971/1996 (FUNCEB, 1996).A foto foi retirada do Flickr e é de Rodrigo Santiago.

TRANSE RITUALÍSTICO



Carlos Vilarinho

Foi quando lambi Eleonora pela primeira vez que a minha memória brilhou. Fingia que dormia e ia, em seguida, espreitar minha mãe e meu pai antes de dormir. Ouvia de mês em mês, meu pai dizer para minha mãe.
— Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.
Ele estava com a cabeça enterrada entre as pernas de mamãe. Sempre tive curiosidade de saber o que aquilo significava e voltava para a cama com o gosto de sangue na lembrança. Ficava intrigado também com o sussurro de pathos que minha mãe emitia. Parecia uma comoção empírica que ela tirava do fundo da alma. Ao mesmo tempo a angústia e o remorso de pecador me perseguiam lado a lado. Sentava na cama e rezava o Pai-Nosso e a Ave-Maria.
— Não me castigues, ó Deus, todo poderoso! Livrai esse filho, ainda menino, da expiação luxuriosa.
E então estudava latim para me tornar padre. Havia um sacerdote estranho e esquisito, contava histórias escabrosas e, em todas as oportunidades, contava num ímpeto irregular olhando para mim. Como se soubesse o que eu seria em poucos anos a partir dali. Tinha uma fundura nos olhos e um olhar penetrante de quem quer hipnotizar. Todos tinham medo, menos eu. Eu ria de través querendo despertar um desejo obscuro. Foi assim que percebi qual a data que meu pai chupava o sangue de minha mãe. Era todo dia vinte e oito. Cresci espionando todo dia vinte e oito do mês. Quando era adolescente, lá pelos quinze, dezesseis, eu olhava e depois me masturbava gozando um prazer estranho. Prazer de ter minha mãe. Queria ser Édipo. Acho que minha mãe chegou a perceber, pois um dia ao andar pela sala, ela baixou os olhos em mim e me viu teso, olhando as suas ancas.
E assim fui crescendo, esperando ter uma mulher e sem conseguir nenhuma.
Eleonora chegou para cuidar de meu pai. Era uma sarará bonita e grande, cheia de sardas pelo corpo. Meu pai ficou estafermo, não servia mais para nada. Minha mãe ia receber o soldo da aposentadoria e deixava a metade na farmácia. Se não fossem as casas de aluguel que construiu, teríamos passado fome. Eu não sabia o que eu mesmo era. Não consegui ser padre. Um dia vi minha mãe conversando e gesticulando muito forte com o sacerdote. Não sei o que houve, mas depois desse dia ela nunca mais foi, nem me deixou, voltar à igreja. Ali, naquele tempo, eu já sabia o que significava a cabeça de meu pai entre as pernas de minha mãe. Era quase um masturbador profissional. Entretanto sabia que ainda faltava algo em mim que por certo se concretizaria algum dia.
— Ah, Luciana! Que maravilha de sangue.
Era um silogismo que faltava a inferência da conclusão. Eleonora então fazia o seu trabalho regiamente, fazia a comida, lavava a roupa e banhava meu pai todos os dias. Eu a olhava com uma fome diferente. E algo grunhia na minha barriga descendo pela virilha. Comecei a pensar qual seria o dia da sangria de Eleonora. Tentei de várias formas olhar o volume entre as suas pernas, mas não conseguia discernir. Eleonora era tão grande quanto o que havia entre as pernas. Não sabia se o volume que via era natural, ou fabricado colado à calcinha. Também ela fechava a porta, durante o banho, bem fechada, além de, ao que parece, tampar a fechadura com papel higiênico.
E eu continuava sem mulher aos vinte nove anos. Eleonora tinha uns trinta e cinco por aí. Um dia vi que me olhava esgueirando-se na porta da cozinha. Passava os dias assistindo televisão e sonhando com as atrizes de novela. Sonhava tanto que às vezes trocava os nomes de minha mãe e até de Eleonora pelo das atrizes. Acho que isso despertou uma certa curiosidade em Eleonora, noveleira que era também. Então começamos a conversar brevemente. E por vezes notava um sorriso meigo de Eleonora para mim. Mas eu sorria pouco, nem sabia direito o que significava sorrir. Quando estava no catecismo o sacerdote dizia que risos e galhofas eram parte do demônio e, em seguida, ele mesmo ria um riso satânico. Que por sinal eu adorava e aprendi a rir só daquele jeito. O riso de Eleonora era diferente, era mais leve e brando. Acho que aquele deveria ser verdadeiramente o riso de uma mulher. Comecei então a ficar mais perto de Eleonora, mesmo sem jeito e acabrunhado. Aos poucos Eleonora acumulou funções. Passou a me servir também, além de os afazeres com meu pai. Minha mãe logo desconfiou e, ao contrário do que eu imaginava, incentivou Eleonora a me seduzir.
Em poucos dias dei o primeiro beijo da minha vida. Meu beiço tremia e meu corpo todo esquentou. Lembrei de meu pai e o sangue de minha mãe. Quando chegava perto de Eleonora sentia uma fome diferente, como já havia dito antes. Sentia a carne quente e macia da sarará cheia de sardas. Como não tinha experiência com mulher, custei a me firmar diante de Eleonora. Meu pai moribundo não me dava instruções sexuais. Nunca dera, não seria agora depois de semimorto que daria. Minha mãe foi que um dia chegou bem perto de mim e me disse com agir com uma mulher. Fiquei muito constrangido e indignado com aquele atrevimento sem pudor de minha mãe. Senti de novo o cheiro de sangue. Dessa vez ele emergia de minha mãe.
Aos poucos então a minha dúvida foi se diluindo. Já sabia mais ou menos o que queria fazer e quem eu era na verdade. Pus-me então a orar dia e noite.
— Não me castigues, ó Deus, todo poderoso! Livrai esse filho, agora homem crescido, da expiação luxuriosa.
E rezava em latim. Um dia ao entrar no quarto de meu pai vi os seios de Eleonora, fiquei vermelho de vergonha e saí. Eleonora veio atrás de mim e, decidida, começou a me acariciar. Disse-lhe que parasse que o pior poderia acontecer. Tentava então avisar, pois já sabia o que eu era de fato. Mas ela não deu ouvidos e disse que tinha sangue entre as pernas. Imediatamente foi acionado dentro de mim o que havia desde criança e só descobri alguns meses atrás. Fui para o quarto com Eleonora e comecei a lamber-lhe as pernas, lembrando das palavras de meu pai com minha mãe quando eu os espreitava. Lambi todo o sangue que saía de Eleonora, suguei tudo. Em seguida fiz minha segunda vítima em três meses de antropofagia delirante. Abocanhei todo o sexo de Eleonora e com uma mordida firme arranquei os lábios vaginais. Eleonora deu um grito de dor lancinante, tentou desvencilhar-se e com minha força descomunal, mordi as nádegas. O sangue então jorrava com mais abundancia. Lembrei do bebê que havia devorado semanas atrás. A carne era diferente. A do bebê era mais deliciosa e suculenta, mais macia. A carne de Eleonora era um pouco mais dura e acho que as sardas davam um gostinho meio acre. Parecia que tinha sido banhado com limão, mesmo assim havia em mim um apetite monstruoso. Entendia então a fome diferente que passei a sentir por Eleonora. Como um lobo faminto, destrocei toda a parte carnuda da mulher que já não respirava e, em êxtase canibalesco, lambia e chupava-lhe as costelas. Ao terminar, voltei a mim, não sabia quem eu era realmente: se esse que voltara do transe antropofágico, ou aquele imbecil que nunca fizera nada na vida. Como me livrar daqueles restos ali? Foi então que vi a figura de meu pai em pé se escorando em alguém, moribundo e rindo o riso dos sádicos.
— Muito bem, pensei que nunca ia aprender...
Vi, então, que quem o escorava era minha mãe, já com um saco para colocar os chupa-molhos que sobraram de Eleonora. Levamos para o quintal e fizemos o ritual de agradecimento ao deus canibal...




08/12/07
Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina Coalha & Outras Histórias (FUNCEB, 2005).
A ilustração foi retirada do Flickr e é de La Manzana Digital, tendo por título Vampiro Baudelaire.

domingo, 9 de dezembro de 2007

ENCANTAÇÃO


Gerana Damulakis



Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui

Manuel Bandeira



Diz a lenda que a alcachofra guarda o mistério, todos os segredos do amor pleno, do romance realizado.Com sua aparência de coisa que existe desde a memória dos tempos, exige uma paciência romântica para ser degustada. É preciso despetalá-la até chegar ao coração que, ainda segundo a lenda, além de ser a parte mais saborosa, é a mais nutritiva e a que guarda, afinal, os fluídos afrodisíacos. Um ritual, portanto. Há de ser cumprido o percurso. O percurso é tudo.
O encantamento e a carne são duas palavras que se situam em cantos opostos. O encantamento está mais ligado ao lirismo, seja pela natureza, pela alma, pelo próprio amor, de preferência platônico, distante, com muita dor e sofrimento e saudade e impossibilidade.
A carne, dito assim, lembra um bife suculento; seguramente, se você não é vegetariano, pensa em algo comestível. Há, é certo, os que são movidos à libido e, então, a carne é a palavra para a apetitosa exibição de algum corpo perfeito, uma Vênus saindo da concha ainda com gotas salgadas escorregando por sua pele. De qualquer forma, encantamento e carne têm sonoridades distintas.
E é dessa conceituação que nasce a história de um homem. Um homem plenamente realizado nos setores que criamos para gerar bastante angústia e ansiedade na vida quando não perfeitamente preenchidos. Ele é um sósia apolíneo, com um perfil helênico, maçãs do rosto salientes como as dos corsos e dos sardos e um cérebro privilegiado: ali está tudo desde Zola e Sartre, de Valéry e Foucault, de Proust a Camus. Entende Einstein e sua relatividade, afora outras físicas.
Quanto às mulheres, várias passaram por sua vida, jamais deixou de conseguir aquela que despertou um mínimo de interesse. Até conhecer Maria. Foi daí que surgiu a tal expressão “encantamento pela carne”, encantação.
Ninguém entendia a razão da paixão despertada num homem como ele, primeiramente porque ela, Maria, não é uma mulher que tenha atrativos: tão normal, insípida, apagada, alguém que quase não existe.
Convencido do que queria, ele partiu para conquistar a mulher feita de carne tão especial. No início, chamava-a ao telefone apenas para desejar bom dia, carregando na voz grossa e rouca, daquelas irresistíveis. No final da tarde, mandava-lhe flores; das flores foi um passo para os bombons, chegava um telegrama convidando-a para jantar. Vinha a parte mais difícil, ele ficava horas e horas junto ao aparelho esperando que ela respondesse aos apelos e, nada.
Os amigos tentaram dissuadir o belo homem. Aliás, até os menos próximos se atreveram a distribuir conselhos, e as outras mulheres sequer podiam aceitar o fato de que alguém recebendo orquídeas arrematadas por laços de cetim colorido e caixas de bombons de chocolate, em formato de coração, recheados com licor, e telefonemas com música de Mahler ao fundo, e telegramas urgentes, sim, ninguém podia aceitar o fato da mulher, motivo de tudo isso, ser indiferente a tanta sedução.
Depois das flores e dos doces, seria a vez dos presentes: jóias para as loiras burras, livros raros para as intelectuais chatas — seguindo, claro está, as regras machistas que conceituam a mulher —, mas seria grosseiro enviar-lhe presentes nessa fase, afinal, ela ainda não os merecia. Diante da situação, ele resolveu partir para o diálogo e foi ter com Maria.
Antes do grande dia da confissão, ele prestou uma espécie de justificativa a todos que seguiram o curso dessa paixão unilateral, essa verdadeira “volúpia do inferno”, como disse Nietzsche. A explicação estava na carne de Maria. O homem deixou claro que ela tem uma temperatura diferente, ela é mais quente. Risadas por toda parte. Seriedade. Ela é rosa, mais sangüínea e, por isso, mais quente, enfim, a pele, a carne, é mais macia, daí a encantação nascida desde que com ela dançara numa festa. Confiantes na explanação, restou ao grupo esperar o que Maria diria quando escutasse aquelas baboseiras.
Deu-se o seguinte: ela adiantou que não entendia a perseguição de um homem tão belo e bem sucedido porque tinha uma avaliação correta de si mesma, sabia o quanto é monótona, e sabia mais, sabia sobre ele, um homem dado a grandes aventuras, mulheres sofisticadas ou, pelo menos, inteligentes.
Chegou o momento, ele foi totalmente franco, usou a palavra encantação, usou a palavra carne, juntou tudo, e ela ficou lívida. Maria nunca esperou ouvir algo tão bonito. Tremeu de choque, de emoção. Finalmente alguém reparou na única coisa diferente que ela possuía, somente ela. Acreditou na paixão, ele havia percebido, apenas ele. Permitiu-se despetalar lentamente.

Seduz pelo que é dentro ou será,
quando se abra.
João Cabral de Melo Neto







Este conto está na Revista iararana, n° 1 — outubro, 1998, Salvador - Bahia.
A foto da alcachofra é de Arqstein, retirada do Flickr.

sábado, 8 de dezembro de 2007

CAIXA GÓRKI


Gerana Damulakis




Se há um romance que sempre consta nas listas dos clássicos, este romance é A mãe, de Górki. Alguns contos também são lidos, como os que formam o volume Certo dia de outono & outros contos, encontrado, tal como o romance, no catálogo da Ediouro. Já era notória a maneira como Górki extraiu literatura da vida através das confissões que estão nos ensaios de Três russos e como me tornei um escritor (Martins Fontes, 2006), assim como do volume organizado por Boris Schnaiderman, Carta e LiteraturaCorrespondência entre Tchékhov e Górki (Edusp, 2001), partindo do trabalho de Sophia Angelides.
A novidade fica por conta da Editora Cosac Naify, trazendo neste 2007 a prosa autobiográfica de Górki em reunião na caixa com três volumes: Infância(1913) , Ganhando meu pão (1916) e Minhas universidades (1922), escritos que abarcam mudanças drásticas em sua vida. Boris Schnaiderman e Rubens Figueredo são os tradutores, além de completarem a bela caixa com textos enriquecedores. Górki estava com 45 anos quando escreveu a trilogia no exílio político. A nota pitoresca em Infância é igualmente a nota mais emotiva do volume: a figura da avó. Ela é uma personagem interessantíssima e plenamente envolta numa aura de amor e carinho. Com isto estamos, entretanto, longe de sequer encontrar, quanto mais sentir explicitamente, algum exagero, alguma pieguice. Pois que Górki já tinha naquela altura toda a consciência literária e todo o apuro formal, que não permitiam que uma linha fosse escrita sem seu famoso posicionamento autocrítico, por vezes talvez rigoroso demais, ainda que responsável pela mistura de refinamento e matéria popular bem lograda, como salienta Rubens Figueredo.
Foi uma vida de caminhante, andou quilômetros pela sua vasta terra, podendo experimentar de tudo: padeiro, pintor, estivador, lavador de pratos. Se nos seus primeiros contos, o linguajar rústico era estranho para seus mentores, Korolenko e Tchekhov, foi a trajetória de uma operária rumo ao heroísmo de uma militante em A mãe, que fez deste romance o modelo da prosa do realismo socialista imposto pelo Congresso de Escritores, em 1934, como estilo oficial, ou seja, do agrado de Stálin. Nada, porém, salvou Górki de ser descartado quando não era mais útil ao regime. Daqui em diante são outras histórias.
Da caixa Górki dá para auferir o valor do escritor, o talento somado à experiência enorme de vida, ou dos vários modos de viver vidas numa só, como quem sabe extrair tudo até do que é apenas possibilidade. Quando mais não fosse para confirmar a riqueza da literatura russa, tal trilogia das memórias de Górki seria já por si mesma uma lição de persistência e determinação, necessárias a todo escritor.
Coluna Olho Crítico, da Página Aberta do jornal Tribuna da Bahia, 08/12/2007.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

MARIA



Flamarion Silva

“Se a alma e o coração sujos estão,
dê ao corpo água e sabão.
Se o lado de fora limpo está,
no lado de dentro fica a impressão.”

Remontam o caminho de volta os talhos da tiririca, que iam, de um e outro lados, penitenciando-me docemente. Também dos matos, as suas galhas, largadas num debruço, e o sol, no desmaio da tarde, caíam sobre mim.
Ia ao Apicum, onde me aguardava Maria.
Decerto por estas trilhas imaginais sons: os pés chapechapeando a água e a lama; sururus em suas cantigas estaladas; piados longe; chiados; aqui, mais perto, neste canto da memória, o desejo a sofregar: Maria antecipada, Maria distante, Maria nunca mais.
“De pirraça”, disse ela bem à frente, no caminhar da história. “De pirraça e por pura maldade me manda a mãe lavar o sujo da roupa.”
“Maria!”, chamei-lhe, a que só olhasse para trás.
Virou-se. Viu-me e sorriu-se toda. Dengosa. Porém, o tempo também aí já é outro, mais tarde, depois de tanto antes nos termos tentado na ignorância sabida do caso. Foi o acaso que nos levou, outras desvariadas vezes, pelas mesmas várzeas do caminho.
No Apicum, Maria acocorada. Da bacia as roupas ia tirando. Os pés n’água. Abeirado a ela, puxei conversa, pois Maria, agora, tão calada, aguava a roupa, concentrada.
Puxei um fio:
“E é de maldade que Dona Esterzinha te manda lavar essa roupa, e sempre a esta hora alta, Maria?”
Respondeu, sem dizer palavra, que sim. E esfregava o vestido com sabão e ódio. Porém dele e dela a nódoa não se soltava.
“Tanta raiva tenho dela!”
“Tem raiva dela não, Maria. É tua mãe.”

“Antes-de-ontem me mandou cortar uma gamela de maturi... Olha só o magoado das mãos.”
“Maciazinha”, disse mentiroso, tocando de leve os talhos da mão.
Maria se recolheu diante do afago, como se fosse moça prometida transgredindo contrato.
“O pai me fez um agrado: me deu um corte de pano. Disse:”
‘É para fazer um vestido para a festa de ano; Nossa Senhora das Candeias merece.’
“O pai é bom. Ele me deu a fazenda e saiu para a pescaria. A mãe, afastada, na fonte,
quando voltou e viu o tecido aberto na cama, disse:”
‘Tem dois vestidos do ano passado, Maria.’
‘Mas são desde o ano retrasado, minha mãe; tão ruços’, “disse suplicante.”
Este é meu, Maria, só meu’, “e saía feita dona do corte que me dera o pai.”
‘Conto pro pai’, “afrontei”
“A mãe virou-se, já com a bofetada guardada na mão. Chamou-me de atrevida. Juntos, ao pai se faz doce. Mas a mãe tem um fel no coração, amorzinho... Desde então me castiga...”
Maria se lavava no enxaguar da roupa. E esta foi a última vez que a vi animada. Deu-me seu amor por último e estas palavras, que nunca se me saíram:
“Quero morrer... quero morrer...”
Pensei morria por mim, ensandecida pelo fogo do nosso amor. Qual nada! Intenção escrita no pensamento, arma engatilhada.
E foi, que no outro dia, no mesmo marcado encontro, lá fui eu fazer companhia a Maria. Porém Maria não havia mais. Nem pios nem chios. Tudo silencioso.
“Onde Maria? Terá ela lavado toda a roupa suja e se foi?” intriguei-me.
Mais adiante, num passado marcado, mais lá no fundo do Apicum, onde eram as águas mais profundas e menos confiáveis, eu a vi.
“Maria!”

Fazia-se tarde. O escuro descendo do céu assombrava tudo. Por certo eu não via direito. O corpo dela, assim meio de viés, preso pelos cabelos nas galhas, abandonado no mangue, como se lhe puxasse pelos cabelos a mãe, num último castigo.
“O mal se corta é pela raiz”, diziam os pais duros de antigamente.
Maria ficou em mim, como fica na boca o travo de fruta devez. E nunca me saiu o gosto dela, este grudado na memória e na pele, com toda sua natureza, toda ela no meu eu, este travo que não me sai. Maria.



Flamarion Silva é contista, autor de O Rato do Capitão (Secrataria da Cultura e Turismo, EGBA, 2006 – Coleção Selo Letras da Bahia,108).

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

MÊS AMARELO




Gláucia Lemos



O jardim de minha avó ficava em frente à casa, passado o portãozinho, e a acompanhava pela lateral, em longos canteiros de margaridas brancas e amarelas, até chegar à garagem no fim do quintal. Ali morria em uma humilde touceira de resedá. Sempre considerei, por conta própria, aquele resedá como se fosse um marco proposital para o fim de jardim. É uma das minhas fixas recordações de infância. Tinha o piso forrado de seixos roliços que faziam ruído semelhante a dentes gigantescos mastigando. Cada vez que eu pisava nas pedras – o que fazia todos os dias, tinha a impressão de que uma bocarra misteriosa, invisível, mastigava ruidosamente imensuráveis grãos de milho seco, ou talvez de pedregulhos. Era impossível transitar pelo jardim sem que se fosse denunciado para as salas e quartos, dos quais as janelas se abriam para a festa das cortinas alvoroçadas pelo vento. E todas se abriam justamente para o jardim. O jardim era uma festa de todos os dias, sem outro motivo que não o prazer de estar entre canteiros, observando a mastigação dos pedregulhos, que mudava o ritmo de acordo com os passos que eu ficava variando por pura diversão. Calada, provocando e ouvindo. Mania minha, muito guardada, jamais revelada a alguém qual valioso segredo.
Havia um pé de acácia amarela – não sei se devo dizer acácia amarela, talvez não exista acácia de outra cor, mas sempre falamos assim. Pois havia um pé de acácia amarela a um canto do jardim, bem na entrada. Debruçava-se para a rua por cima do largo portão verde. Em dezembro floria. Os cachos amarelos eram quase escandalosos, na imodéstia com que esbanjavam ouro e alegria, quando o vento os sacudia na viração vinda do mar, que lá estava, a uns três quarteirões da casa. Então caíam lá do alto pequeninos anéis que eu nunca soube se eram pistilos pecos, ou se tinham o propósito de sujar todo o piso, dobrando o trabalho do rapaz que o limpava.
Penso que foi aquele pé de acácia que me fez, toda a vida, achar que o Natal é uma festa amarela. Sempre tive o costume de atribuir forma aos nomes próprios, e ligar a cores todas as coisas e datas, com uma espontaneidade toda minha. Por isso, entre outras coisas que coloria, o Natal se me afigurou sempre amarelo, como o Carnaval, mais intenso talvez, vermelho e verde conjuntamente. Não sei se por isso, dezembro, que ressuscita todos os anos ora brilhante ora sombrio conforme a minha paisagem interior, na minha percepção aparece através da copa do pé de acácia, generosamente florida, sorrindo em ouro por cima dos seixos roliços do jardim de minha avó. Natal e galhos de acácia têm a proximidade mais íntima, incompreensível a quem deles eu falasse.
Um antigo jardim que hoje só existe no registro permanente ao lado de outros registros que não se apagaram, porque todo o vivido escreve uma história. No seu lugar, agora, há de se ter levantado um edifício de apartamentos, no qual crianças, aglomeradas em caixas superpostas, espiam, com olhos imensos e gulosos, por entre grades com as quais o progresso as defende da sanha urbana. Crianças que vêem Natais de cores metálicas, piscando e fosforescendo em néon, multicoloridamente artificiais, e nunca saberão que existem acácias que florescem nos dezembros. Ou floresciam. Nunca saberão que os jardins forrados de seixos roliços escondem gigantes e monstros enormes que mastigam pedregulhos toda vez que uma criança caminha por cima deles. Nunca saberão como os dezembros podem ter uma cor definida, e se tornar amarelos, e podem até pintar de amarelo todos os Natais de alguém, para sempre. Ainda que o amarelo tenha se tornado menos forte e menos brilhante, continuará sempre amarelo, pois as acácias também podem perder um pouco do vigor da floração com a passagem dos anos, mas jamais deixarão de ser amarelas.



Dezembro de 2007.






Gláucia Lemos é autora, dentre dezenas de outros títulos, de Procissão e Outros Contos (FUNCEB, 1996).

O FOTÓGRAFO

Carlos Vilarinho




Sempre quis ser escritor. Quando adolescente lia até com certo furor, mesmo não entendendo muita coisa. Na verdade ficava maravilhado com aquele mundo de letras reunidas num papel dentro de um livro. Ouvi uma vez de um fotógrafo que certo escritor russo delongava-se em explicitar o psicológico humano. Contou-me também uma história do tal russo, que não lembro como se pronuncia o nome. Era a história de um estudante que matava uma velha e se apoderava do dinheiro ou coisa que o valha. Aí, segundo o fotógrafo, o aluno rebelde passava toda a história do livro com remorso. Tentei ler, mas não entendi uma só palavra. Mesmo assim prometi a mim mesmo que seria escritor. O tempo passou e só consegui escrever cartas para uma mulher por quem estava apaixonado. Um dia ela resolveu sair comigo. A criatura, provavelmente pela força da curiosidade estava lá na hora marcada. Eu que cheguei atrasado, pois estava compondo um poema para entregar-lhe. Resolvi recitá-lo, quando abri a boca e consegui ir até a segunda estrofe, a mulher levantou-se num rompante, muxoxou e grunhiu. Foi embora e nem se despediu.
Em tempos conheci outro fotografo. Era um velho tarado. Disse-me que as imagens poderiam ser coladas, para, quem sabe, forjar algum acontecimento. Lembrei da pintura de Dom Pedro primeiro às margens do rio Ipiranga, gritando “Independência ou morte”. Aquela pintura seria burlesca. Lembrei disso, não que eu tenha disponibilidade de raciocínio, mas vivo nos bares dos universitários e ouço muita coisa que falam. Essa é uma delas. O fotógrafo velho e tarado convidou-me para ser seu assistente. Aceitei sem piscar. Ele não tinha uma das vistas em perfeita condição. Precisava então que alguém junto com ele e sob sua coordenação espreitasse as imagens fortuitas da rua. O velho fotografava e mandava para umas revistas. Sei que uma era para turistas. Não entendia porque ele, na maioria das vezes, escolhia umas neguinhas xexelentas para registrar. Não pelas neguinhas, mas pela xexelentologia. Uma vez ele me disse que eu era muito opaco, só porque fiz a pergunta em relação às neguinhas. Achei que era elogio e ri satisfeito.
Um dia ele me disse que se envolvera com duas mulheres distintas. Conheci uma delas. Era uma coroa também, meio pelancuda, mas dava um caldinho, pensei de imediato, depois mudei de idéia. A mulher era muito desbocada, falava cinco palavrões em cinco palavras. Ele, o velho fotógrafo, ria divertindo-se e achando que aquela balbúrdia lexical e semântica era a sensualidade latente da mulher independente. Esquisito. Eu ficava enojado quando aquela criatura aparecia enquanto trabalhávamos. Nunca mais bebi no mesmo copo do velho depravado. Em alguns dias ele me levou e mandou que tirasse fotos dos dois em letargia hipnótica do namoro. Tirei as fotos e eu mesmo as editei. Depois me disse que ia me mostrar as fotos que ele mesmo tirara com a outra criatura. Sempre que chegava à casa do velho me intrigava com a bateria de remédios que ele mesmo tomava. Era um colírio e alguns remédios para a pressão e para alergia. Com tanta droga não sei como agüentava beber do jeito que bebia. Disse-me também que quando acordava ressaquiado só podia beber chá. Perguntei, então, pelos remédios enfim.
— Não posso, alguns ali são de restrita responsabilidade, tenho que tomá-los de vez em quando por causa da alergia.
E assim fiquei sabendo que alergia mata. Nesses tempos destituí a idéia de ser escritor. Decidi ser fotógrafo. Até porque já dominava a técnica satisfatoriamente. E graças ao velho saía aos poucos do meu estado de burrice sólida que me acompanhava desde pequeno. O velho mandou que eu lesse alguns livros e imaginasse as imagens escritas pelo escritor.
— Fotografia também é assim, só que você capta a imagem, registra e ela aparece numa tela de computador.
— As imagens de um livro só aparecem em nossa mente, não é isso?
— Isso mesmo.
E, então, ao conversarmos ele começou a me mostrar umas fotos. Segundo ele, eram clássicas, publicadas em revistas antigas, “O CRUZEIRO” o nome de uma delas. Foi aí que, para meu desespero, havia uma entre tantas, a foto de minha irmã beijando a boca imunda e execrável daquele velho fotógrafo. Senti uma quentura por dentro, fiquei meio cego e não ouvi mais a fala do velho.
— Aaah! Essa é a garota que lhe falei, ela é mais nova do que eu e é quente, quente e quente... Parece um bule de café ou uma chaleira em chamas... Você entende metáforas? Não, é muito opaco para entendê-las.
Ali desconfiei do “ser opaco” e entendi que não se tratava do que eu achava que fosse. Aproveitei a minha falta de transparência e dissimulei o que sentia. Olhei nos olhos do velho fotógrafo e percebi um certo temor. Continuamos, então, a passar fotos e em seguida fomos editar algumas. Minha mente estava ainda confusa e aos poucos absorvi aquele ciúme fraternal que me tomava como uma onda. Não entendia como minha irmã, que não era nenhuma neguinha xexelenta, poderia dependurar-se nos beiços imundo daquele velho chupador de clitóris antigo. Uma vez, ele mesmo me contou uma história a respeito de um rei que matou o pai e casou-se com a mãe. Disse-me que a história era tão antiga que acabou virando complexo. Não entendi direito, mas agora me passava pela mente que aquele velho tinha idade de ser pai de minha irmã. Seria complexo também isso? Comecei a me sentir como o estudante se sentira, menosprezado e cheio de soberba arrodeando meu eu.
— Aqui, achei... Isso aqui é um convite para eu fotografar o grande evento que haverá no palácio dos governantes amanhã... Eu não sei quem é esse cara, mas li nos jornais que será um evento de primeira, é minha chance para erguer-me novamente e ir para o top de linha da fotografia, tenho que colocar minha foto nesse crachá e me apresentar, você vai comigo como assistente...
Tudo veio nitidamente à minha cabeça. Olhei o convite e lembrei-me de ter ouvido algo a respeito daquele evento na televisão. Deixaria de ser opaco. Esperei de fato o momento que colocaria em prática o plano que me tomou de assalto e teria que executá-lo.
— Meu remédio, garoto. Vamos, pegue o meu remédio...
O velho gostava de água bem gelada para entornar a cápsula. Servi-lhe e voltei para a edição das fotos. Ele morreu inchado. O edema de glote tampou a passagem do ar. Senti remorso como Raskolnikof. No outro dia apresentei-me ao palácio dos governantes com a minha foto no crachá. As fotos que tirei foram as mais elogiadas. Deixei de ser opaco e assumi o posto de fotógrafo exclusivo do palácio. Não sabia, mas minha irmã herdou o seguro de vida que o velho tinha feito e colocado o nome dela. Ela e a coroa pelancuda dividiram o dinheiro, as duas juntas extorquiam o velho safado. Não tive mais remorso, mas fiquei com raiva de minha irmã e da coroa. Comecei a achar que essa história de crime e castigo não existe. Só mesmo na cabeça de escritores...




02/12/2007







Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (FUNCEB, 2005).

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

DEZEMBROS


Aramis Ribeiro Costa



A mente lerda, entorpecida, arrasta
Em lentidão o tempo, idéias, membros
A tarde é morna e a própria vida é gasta
Na lassidão completa dos dezembros.

Nas esperanças dos janeiros basta
A vida que desbasta dos novembros
E a tarde se acomoda, lenta e vasta
Na tessitura lorpa dos dezembros.

O mormaço conjuga clima e fados
E em planos inconclusos e adiados
A tarde dezembral planeja e lembra.

São tempos vesperais que sinos plangem
Enquanto idéias poucos ventos tangem
E a mente, mole, sem querer, dezembra.




Este poema está em Espelho Partido - Sonetos Escolhidos - 1971/1996 (FUNCEB, 1996).