
terça-feira, 30 de junho de 2009
DO BLOG PARA O LIVRO

segunda-feira, 29 de junho de 2009
NASCER É PERTENCER

A questão ressurgirá com a Atualização do Conto Baiano: a questão relacionada ao lugar de nascimento. Haverá outras questões por conta das ausências na nova reunião. O tal viés pessoal traz uma lembrança cara e carrega uma certeza. É a certeza que faz com que eu fique firme no meu critério sobre a necessidade de ter nascido na Bahia para constar da antologia regional.
A lembrança cara: meu avô viveu décadas no Brasil – em Angra dos Reis (RJ), em Santos (SP), em Torres (RS) e em Salvador (BA). Falava português muito bem, porém, jamais conseguiu dizer o “ão”. Até já contei aqui o quanto eu era uma netinha chata, ficava mandando ele dizer “João”, e ele só dizia “Jon”, assim como “pon”, o que seria "pão" etc. Adorava a Bahia, a cor do mar de Salvador (também já contei aqui), não tinha o que dizer dos brasileiros que não fosse elogio. Na hora da morte – ele morreu em casa, com a família ao redor – foi falando e morrendo, falando e morrendo... todo o tempo em grego, como se nunca houvesse conhecido o português.
A certeza: não adianta, a pessoa nasce e morre pertencendo a determinado lugar. O blá-blá-blá de que não pertenço a isso aqui, nasci no lugar errado e variantes (que não eram o caso de meu avô em relação à Grécia) são infantilidades. Os problemas estão dentro, seguirão com a pessoa na mudança de lugar, sem dúvida. O inferno são os outros (de Sartre) é uma bela frase, só que o inferno não são aqueles que estão em certo lugar; o inferno somos nós mesmos, o que trazemos dentro.
Jorge Amado morou na França, morou no Rio de Janeiro. Jorge Amado é um romancista francês? Jorge Amado é um romancista carioca? Ele entrou para a história da literatura como romancista baiano, qualquer questionamento seria ridículo.
sábado, 27 de junho de 2009
SOB A CHUVA LÁ FORA

A rua quieta. O carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho. O gato “Lord” sobre o muro. Começou a chover fininho. O vento agitava com leveza as folhas da roseira branca de Lídia, que àquela noite ainda não voltara para casa. A chuva começou a cair mais forte e o ruído que fez sobre o carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho não incomodou o sono de ninguém. A água da chuva fez um córrego bem no meio da rua. Um pedaço de papel foi levado pela água e foi se desviando de pequenos obstáculos. Destino trágico. A boca negra do bueiro o engoliu faminta. O vento ficou bravo de repente e deu um safanão na roseira branca de Lídia e ela esbateu-se contra o muro. Coitadinha. A luz cor de bronze do poste tremeluziu. De repente, a constatação: a casa do vizinho estava morrendo, de tristeza. Aquela, encostada à casa de Lídia. Suas paredes tão frias! Todo o tempo fechada e nenhuma voz a lhe humanizar. Morria sem gemidos, resignada. A casa de Lídia era amarela, na varanda havia plantas nos caqueiros e no teto balançava um bebedouro de passarinho. Sua borda era vermelha e florida. O portão da casa de Lídia era branco e de ferro. Quando aberto, emitia uma risada. Mas naquele momento ele estava com feição preocupada. Vez ou outra espichava os olhos para fora, ver se Lídia já vinha descendo a rua. Mas a maior parte do tempo ele preocupava-se mesmo era com a segurança da casa. O outro portão, o da casa colada à casa de Lídia, era de madeira e já não esperava ninguém. Outrora fora alegre e muito receptível. Nos vincos de sua madeira apodrecida, a memória de um senhor e uma senhora já velhos que mudaram de casa. Nunca mais voltariam. A partir daí teve início a morte lenta desse portão. – E esta chuva que não passa. Deus queira, Lídia tenha levado a sua sombrinha japonesa e automática que faz “flop!” quando se abre – o homem pensou – Lídia é prevenida. Marluce também toma lá os seus cuidados, mas a sua sombrinha não tem o mesmo espírito alegre que tem o da sombrinha de Lídia. Não se compara. Por esse momento um vulto surgiu crescendo na parede da sala, onde o homem se encontrava, encostado à janela. Era Marluce. – Você não vem dormir? O homem não se assustou com a presença furtiva da mulher. Não era raro ela invadir os seus pensamentos. – Olhe só esta chuva – ele disse. – Vou deitar – disse a mulher, e sua sombra foi-se escorregando pela parede, sumindo-se pelo corredor. Outra vez só, com seus pensamentos e aflições, o homem ansiava por ver Lídia descer a rua, abrir o portão e a porta de casa. Precisava ter a certeza de que ela chegaria bem. Minutos se passaram. O sono já lhe fechava os olhos. – Paciência – ele disse, já dando os primeiros passos em direção ao quarto, onde, com certeza, sua mulher já passeava por sonhos distantes. Mas algo lhe disse para esperar mais um pouco, pois logo Lídia surgiria lá em cima, talvez meio ensopada de chuva, e o portão se abriria com sua habitual risada. – Sim, sim – ele agora tinha certeza, Lídia descia a rua. A sombrinha pequena esforçava-se para proteger sua dona. Não era possível ouvir os passos de Lídia, mas dentro do coração do homem algo começou a bater mais forte. Lídia abriu o portão e ele sorriu. O homem escondido na janela também sorriu tranqüilo. Poderia, enfim, ir dormir. Mas antes, olhou mais uma vez a rua. A água da chuva começou a cair com mais intensidade. Um sentimento, que o homem não compreendeu, perpassou-lhe a alma. Pungentes gotas de chuva caíam sobre o vermelho metálico do carro encostado ao muro da casa defronte. Parecia haver se instaurado um tumulto na solidão das criaturas frias, quase mortas, daquela rua.
DAS DELICADAS FÁBULAS
O visual do livro Fábulas delicadas - muito bem casado ao título - leva a pensar em um projeto para ser presenteado. Reportou-me ao Presente de um poeta de Pablo Neruda, tradução de Thiago de Melo, editora Vergara & Riba, SP 2001, que, não tendo embora reunido o melhor da produção de Neruda, traz um visual na capa como no miolo - ilustrado com pinturas em aquarela sobre papel couché - de um dos mais belos e bem cuidados livros de poesias que já conheci. É aquele volume que a gente olha e diz Lindo! E só depois é que folheia. Assim é a primeira impressão causada pelo Fábulas delicadas de Eliana Mara Chiossi, editora Escrituras SP 2009, recém lançado.
Contos, eu não diria que sejam. A autora tem grande talento para frases curtas, bem inspiradas e metafóricas. Às vezes sentimos uma história que se esconde sob a poesia das sentenças, histórias que não se permitem desvelar, como se tivessem medo ou pudor de romper a névoa sob a qual seu mistério se guarda. Não que a pequena extensão dos textos seja o que lhes negue ingresso ao nicho do gênero da contística. Existem, na boa literatura, inúmeros, incontáveis textos, que sendo embora de pequeno tamanho, não se lhes pode negar a classificação de contos, a partir de que são trabalhados com suficiente engenho na qualidade literária, por isso que nos oferecem obras de arte verdadeiras. Não são contos os textos de Fábulas delicadas porque se revestem de frases, que eu diria versos dispostos em formato de prosa, que mal permitem entrever um ponto de partida e não levam a um enredo , no que pese a agradabilidade da leitura, que conduza o leitor a acompanhar como tal. Senão em raros casos como em "Mãe" por exemplo, no qual um episódio se apresenta, e de uma maneira reveladora para a prosadora não mostrada o bastante neste primeiro livro, neste em qual a autora preferiu colocar-se no seu inspirado pendor poético.
Mais tendente para crônicas e muito mais para prosa-poética, o livro é dividido em nove partes, que a autora nomeou conforme lhe pareceu apropriado para os textos nelas enfeixados.
Sem embargo de não estar procedendo a uma crítica, e sim apenas esboçando uma resenha, não quero deixar de evidenciar o cunho de feminilidade que evola de todas as composições, quer no lirismo de entrega e doação ao ser a quem dedica seu amor, quer ao expressar a mulher no seu desassombro de iras, de angústias e de suas perplexidades. Tudo em que a autora se coloca traz uma carga emocional que, vindo às vezes cifrada nas imagens de águas, de pássaros, da casa, define a atávica e transcendental angústia feminina por libertação, e pelo conhecimento das suas próprias ansiedades e perguntas. Poucas vezes Eliana Mara Chiossi se entrega a filosofar em torno de coisas imergindo para a frieza do intelecto em confronto com o calor da emoção, mas o faz muito bem quando o faz, tal nas reflexões sobre o abacaxi e sobre a laranja. No geral, temos o ser poético se doando a seus momentos de comunicação, necessários e indispensáveis a todos os que vêm a este mundo portando dentro de si um outro mundo de mistérios do qual nem os próprios conhecem a exata decifração.
TRECHO DE "CRIME OCULTO"

quinta-feira, 25 de junho de 2009
quarta-feira, 24 de junho de 2009
APENAS ALGUMAS PALAVRAS

Uma coisa puxa a outra. Em se tratando de uma palavra que chama a atenção, por coincidência li um artigo de Roberto Pompeu de Toledo na Veja, de 17 de junho de 2009, intitulado “Palavras no Muro”. Ele mostra como, na frase de um grafiteiro, “O amor é importante, pombas”, a palavra “pombas”, aposta à oração principal, é o que faz que um pensamento banal adquira vísceras. Mas este não é o exemplo que mais me tocou. A observação de Toledo, sobre a diferença que uma palavra pode fazer, fica mais interessante quando ele cita os dois versos do poema de Jorge Luis Borges, La Luna: “Según se sabe, esta mudable vida/ Puede, entre tantas cosas, ser muy bella”. No caso, são três palavras: “entre tantas cosas”. O “entre tantas coisas” abre “o leque de feições que pode assumir a vida”.
Já se disse que o poema “Instantes” (ou “Momentos”, dependendo da tradução) não é de Jorge Luis Borges. É a mais famosa não-autoria. Goulart Gomes sabe contar essa história, disse que o poema foi atribuído a Nadine Stair, mas também não é dela. Manuel Anastácio também já escreveu sobre isto no blog Da Condição Humana. Seja de quem seja, o poema pertence ao meu baú de preferências. Estive lembrando seus versos em conversa com Ana Bárbara Sousa. E junto tudo para concluir. A diferença que faz uma palavra, ou algumas palavras, faz toda a diferença; sinta: “se eu pudesse viver novamente”, nada a acrescentar? Agora, como está no poema: “Se eu pudesse viver novamente a minha vida”. Cuidado, este verso ficará alojado na sua memória e, naqueles momentos, nos quais chega uma vontade louca de começar tudo de novo, ele aparecerá sempre. Ah, se eu pudesse viver novamente a minha vida...
Se eu pudesse novamente viver a minha vida,
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata
Porque se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos;
Se eu pudesse voltar a viver,
terça-feira, 23 de junho de 2009
O SENTIDO

Esta foto é da capa de um dos tantos títulos do poeta Luís Augusto Cassas. Não sei o número exato de livros já publicados, perguntarei ao poeta. Creio que tenho quase todos porque nossa amizade já vem de longa data e nossa troca de livros, poemas, conversas, idem.
O poema que segue abaixo foi lido por ele, por telefone, para mim. Pedi que me enviasse e agora compartilho. Nós, seus leitores, aguardaremos a poesia reunida que já urge ser publicada. Por enquanto, O Sentido.
Luís Augusto Cassas
qual o sentido
de se estar vivo:
viver os cinco sentidos?
acender a luz do espírito?
reedificar o paraíso?
tornar-se do todo amigo?
ser lírio ou narciso?
por que quando o sentido
a face vem mostrar
esconde-se o não-sentido
para o sem-sentido brilhar?
o sentido
é paisagem que aí está?
o não-sentido
é passagem que se abrirá?
o sem-sentido
é viagem sem lugar?
ad-finitum
é o universo:
misterium
tremendum
mas do precipício
seremos salvos
quando a essência
reencontrar o princípio
por enquanto da vida
só captamos os ruídos
mas o verdadeiro sentido
será definitivo
quando o que clama
desde jerusalém
irromper-nos à alma
com o seu amém
domingo, 21 de junho de 2009
O CONTO SERÁ SEMPRE O CONTO

A dinâmica da vida na era da tecnologia, com avanços dia a dia, já quer contaminar os conceitos na literatura. Talvez os conceitos precisem dessa contaminação. Apenas os conceitos, apenas as novas definições, apenas momentos, tudo apenas passageiro.
O conto ganha novas formas de se dizer que é conto. Dá até saudade daquela frase já tão batida de que conto é tudo aquilo que o autor chamar de conto. Atualmente ficou pior, a frase de outrora é uma frase inocente. Ficou pior, mas é passageiro. Passível de ser aceito mas, sabemos, não perdurará. Tudo na base do "agora é assim, agora já não é mais daquele jeito" é, na verdade, um instrumento facilitador para os menos hábeis.
O conto será sempre o conto: o grande conto, o texto que pega o leitor de jeito, não importa se a epifania ou a peripécia que surpreende. Como estou aqui escrevendo sobre o conto que será sempre O Conto, segue o final de um dos grandes contos do escritor Hélio Pólvora.
"Para onde vou? Perdi a minha última certeza. Sei apenas que é preciso remar. Devo estar no meio do rio, o medo vem de novo e me sufoca o peito. Ignoro qual a margem certa, não sei mais como voltar nem aonde ir. Estou remando para a noite definitiva ou para o lívido alvorecer?"
"Do Outro Lado do Rio" in Contos da Noite Fechada (Editus, 2004).
sábado, 20 de junho de 2009
"NOSSO" FERNANDO PESSOA

Será que posso apontar o estudo introdutório como a causa da necessidade de ter um livro contendo os mesmos poemas que já estão na minha biblioteca? Parece que é plausível.
Não resisti a Fernando Pessoa – O Poeta Fingidor, da Editora Globo, incluindo o DVD dos 120 anos do nascimento do poeta (série da Globo News). Gostei muito das palavras de Claufe Rodrigues na apresentação intitulada “Fernando Pessoa, um poeta brasileiro?”. Ele mostra a nossa intimidade com Pessoa, como nós consideramos o poeta português, ao lado de Drummond, Vinicius, Bandeira, como nosso e diz: "(...) e o gosto mútuo pelo gerúndio não será a única explicação para esse caso de amor". Depois vem um texto de Carlos Felipe Moisés, “O poeta dos heterônimos”: outro prazer. É, acho que posso dizer que compro esses livros porque gosto tanto do ensaio crítico, do parecer da leitura, quanto dos poemas: gosto, enfim, da literatura sobre a literatura. Um outro olhar, agora para o lugar, na biblioteca, que guarda livros de ensaios críticos, vem confirmar a conclusão. Cada qual com suas idiossincrasias.
sexta-feira, 19 de junho de 2009
BAIANO, ASSOCIAÇÃO, YACHT

Quando eu era menino, só existiam três clubes no mundo, Baiano, Associação e Yacht. Cada clube com sua turma, cada turma com seu jeito, as classes médias e altas da Bahia distribuíam-se nestas entidades como a forma mais sofisticada de lazer; a forma mais qualificada de divertimento, desde as tradicionais festas, carnaval, S. João, réveillon; aos esportes praticados com empenho e eficiência – o tênis, o basquete e o vôlei, na Associação e no Bahiano; a natação e o iatismo no Yacht.
Qualquer pessoa que se prezasse tinha que ser sócio dos três. Principalmente porque o ameno carnaval da Bahia se perfazia com os três. O carnaval começava com o corso da Associação no sábado, uma interminável carreata de carros sem capota e de jeeps, polvilhadas de belíssimas donzelas esparramadas por cima dos carros e dos paralamas devidamente lambuzados de cola e entupidos de confete, no ar uma revoada constante de serpentinas e o cheiro provocante dos lança-perfumes. Ah, o carnaval acabou com o fim do confete, pedacinho colorido de saudade, com o desaparecimento da serpentina; com a proibição do lança-perfume. Começava aí outra coisa.
Apesar de baixo, eu tinha mão certa no basquete e estava quase para ser sócio-atleta do Bahiano quando houve um endurecimento nos estatutos. Tinha sócio-atleta demais. Entrei para sócio mesmo aos 18 anos, frequentador mais das festas, bingos, e continuando no basquete com Patinho, (Roberto Lisboa), Marcelo Lisboa que tinha torcida própria – as meninas torciam por ele não pelo time, Deoclides Barreto de Araujo, Bob, Carlito Kruschewsky, Sheldon e seu irmão Leslie e mais as feras do 2° quadro: Fernando Lyra, Aron Kremer, Mimito.
O Bahiano de Tênis era um mundo: o aristocrático. No S. João,as donzelas ocultas por milhares de anáguas rodopiavam no salão circular nos braços ardentes de seus pretendentes, que ali mesmo começavam um périplo de paquera, namoro, noivado, casamento. Para o bem de todos e felicidade geral da nação. Mais tarde entrei para a Associação, atraído pela imensa piscina em cuja inauguração meu amigo Chiquinho Amaral mergulhou do terceiro trampolim e João Gilberto fez o show pelas mãos de seu amigo Coqueijo.
De todos, o mais encantador, o Yacht. Verdadeiro cartão postal engastado na montanha. Típico paraíso do bem viver baiano que pode desfrutar, desde a sinuca, ao iatismo, ao simples velejar, largar o pano e sair em busca do espelho azul da Baía de Todos os Santos ...O Yacht constitui-se numa zona de paz e de relaxamento encravada no coração da vida urbana, por sua localização privilegiada e perfeita integração no ambiente. Assentado com elegância e perfeição arquitetônica sobre o mar, o Yacht é na verdade um imenso veleiro que ancorou na baía e que lá ficou para júbilo de seus marinheiros. Detalhe a parte: o seu bondinho que nos traz do alto da montanha, integrando-se ao passado...
Que estamos fazendo de nossa tradição, minha gente? Acabaram com o Bahiano. A Associaçao resiste. Por Senhor do Bonfim, não toquem no Yacht, que é um patrimônio do mundo.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
PELA LINHA DO TREM

Não conhecia ninguém naquela cidade, se é que podia chamar de cidade, um lugarejo no qual cada fazenda distava da mais próxima às vezes um ou dois quilômetros. Onde a parada do trem era só uma plataforma de paredes sujas e um escritório instalado em um cubículo, e era dirigido por um velhinho magérrimo, que olhava quem chegava por trás de lentes pequeninas e embaçadas, mal escutava o que se falava com ele, e sempre esquecia os horários do trem.
Um recado do meu primo Jaime deu-me conta de que nosso avô Heron estava à morte e era preciso que fosse vê-lo.
Fomos criados pelo nosso avô, Jaime e eu, por circunstâncias que nunca nos ficaram claras, e, assim crescemos na fazenda como irmãos, nos apoiando e amando o velho Heron como se fosse o nosso verdadeiro pai, e sempre aos cuidados do fiel Francisco e de Dazinha, sua mulher gordíssima e calada.
Cada qual por sua vez deixou a fazenda e procurou em cidades grandes estudar mais que o bê-a-bá da escolinha que frequentávamos a umas boas léguas da fazenda, aonde meu avô nos mandava na boleia do caminhão que transportava as canas da lavoura do velho Heron. Assim, saímos para garantir o futuro, primeiro Jaime, depois eu, quando tivemos idade suficiente para decidir. Agora eu ensinava em uma escola na capital, e não sabia de Jaime que rumo teria tomado. Mas alguém, que eu não soube quem, deixara na secretaria da escola um bilhete de Jaime. Sem endereço para resposta, datado de três semanas anteriores, o bilhete era vago e só não deixava dúvidas da sua procedência, por ter sido assinado com o apelido pelo qual eu o tratava desde a infância, e somente eu assim o chamava: Um beijo do seu irmão Jami.
Tomei licença na escola e agora ali estava, naquele fim de mundo de onde partira vinte anos antes, para onde nunca mais retornara.
Era quase um deserto a porteira, distante da parada do trem pouco menos que um quilômetro, de pó e de sol a pino. Era a entrada para um mundo que se me tornara estranho. Parei em frente a ela e meu primeiro impulso foi retornar, tal o silêncio e a solidão que encontrei. Vi que aquilo era o cenário mais fiel para representação da morte. Até os pássaros que pipilavam pelo arvoredo davam a impressão que o faziam a medo, quase imperceptíveis. Pensei em retornar dali mesmo, mas me lembrei de que era preciso ver meu avô. De repente me dei conta de que gostava dele e que tinha sido muito ingrata por nunca ter voltado a procurá-lo, e me bastar com as vagas notícias pelo telefone do posto.
Parada na porteira, com os sapatos e as vestes carregados de uma poeira amarelada e fina, notei quando um homem, saindo de trás da casa, veio a meu encontro. Chegado mais perto, reconheci Francisco, o fiel caseiro em quem meu avô depositava toda a sua confiança, agora de têmporas brancas e rugas no rosto. Olhou para mim, ensaiou um ligeiro sorriso que só se apagou para dizer: - Menina, por que não veio antes?
Não retive o desejo de abraçá-lo, ele era a minha infância naquelas terras. Ele também me abraçou como se eu tivesse ainda oito anos, com a ternura da proteção antiga.
- E ele? – perguntei.
-Não pôde esperar. Por que não veio antes? Falou no seu nome e no de Jaime enquanto guentou falá. Dazinha é testemunha. Pediu pra eu tomá conta da menina.
- Só soube ontem.
- Chegou tarde. Já faz quatro dias. Vocês nunca se importaro com ele.
Fomos andando na direção da casa. Dazinha já se adiantara abrindo portas e janelas para ventilar. Agora estava na cozinha preparando o almoço.
Entrei para a casa onde deixara toda a minha infância e parte de minha juventude. Agora teria que decidir o que faria de tudo o que de repente passara a pertencer só a mim e a meu primo Jaime, que nos tínhamos como irmãos. E estava só, sentindo-me culpada.
- Jaime apareceu?
- Jaime veio quando o patrão tava mal. Mandei recado pelo maquinista meu conhecido que sempre encontra com ele. Mas teve que voltá, falou que era por causo do trabalho, disse que ia lhe avisar.
- Avisou. Mas agora estou sozinha, Francisco. Jaime não vai voltar a morar neste lugar.
- Não tá sozinha não, menina, tá comigo. Eu ainda posso protegê a menina. Eu mais Dazinha.
- Não sou mais menina, Francisco, tenho trinta e sete anos, mas não sei o que vou fazer com esta casa enorme, com a cana, com empregados, com tanta terra, não sei lidar com isso. E não mereço ganhar tudo isso de graça.
- Eu não vou deixá você se atrapalhar. Você pra mim ainda é a menina do patrão, ganhou porque era do patrão. E não vou deixar ninguém lhe fazê mal.
Achei estranhas as palavras de Francisco.
- Por que alguém me faria mal?
- A ambição, menina. O patrão deixou muita terra que agora é sua. E nesta terra seca, a terra do patrão tem uma riqueza que as outra não tem. Daqui até dezoito légua pela linha do trem, isso aqui é o melhor que existe. Esta terra tem uma nascente que nunca secou. Quando as nascente das outra fazenda fica seca, a daqui tá sangrando.
- É verdade. O rio. Eu me lembro que você nos levava para brincar no rio.
- Apois é isso. Enche os olho dos vizinho, das outra fazenda.
- De quem? Você sabe de quem?
- Tem um caseiro aqui, um tal de Tinho, que já andou falando que terra que o dono é mulher é muito fácil de homem tomar.
- Quem é Tinho?
- É o caseiro da fazenda Barro Grosso, duas léguas pra dentro, pela linha do trem. A cerca dela é agarradinha na cerca daqui. É muita terra de um lado e do outro.
À noite o escuro da fazenda era o mais escuro do mundo. Vi Dazinha arrumando a cozinha sozinha, sem Francisco. De manhã o procurei .
- Onde você andou, Francisco, desde ontem que não o vejo.
- Fui fazê um trabalho um pouco longe. Mas já vortei. Tou aqui todo inteiro, com a graça de Deus.
Naquele momento passava pela estrada um cortejo, com pouco mais de uma dezena de acompanhantes. Lentamente, conduziam um caixão enorme.. Alguns levavam pequenos ramos de margaridas e dálias. Outros levavam lenços ao rosto de vez em quando, enxugando o suor e um choro silencioso. O silêncio e a poeira amarela subindo e fazendo uma nuvem leve e incomodativa, quase encobrindo todos os que passavam..
- Para onde é que está indo aquele enterro, Francisco?
- Deve de ir pro cemitério da vila. Quatro légua pra fora, pela linha do trem.
- Você sabe quem morreu?
- Apois não é o dono da fazenda Barro Grosso, menina? Foi onte de noitinha.
- Francisco... De que morte ele morreu?
- Não sei direito não. Mas agora que já morreu, ele não vai mais achá que é fácil tomar terra que o dono é mulher. Eu acho que não, não é, menina?
Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Tem 33 títulos publicados. Em breve terá mais um título, nascido neste blog.
Foto: Linha do Trem, por felipelima, retirada do Flickr.
terça-feira, 16 de junho de 2009
IMORTAL DA ALB

domingo, 14 de junho de 2009
ANA CRISTINA CESAR, PARA SEMPRE

Tanto T. S. Eliot, quanto Jorge Luis Borges e Harold Bloom trataram do tema da influência. É uma delícia mergulhar nesta área, quando nos certificamos de que tudo já foi escrito. Mas - ora, ora - abrimos um livro e outra constatação vem gritar mais forte e diz sobre o quanto a literatura é inesgotável.
Ana Cristina Cesar teve que existir e criou uma obra para ser lida, ser copiada, ser transformada. Abaixo, um exemplo da sua poesia.
Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos
(em Contagem regressiva - Inéditos e Dispersos)
quinta-feira, 11 de junho de 2009
MÍDIA, CINEMA E LITERATURA NA ALB
ROMEU E JULIETA

O nosso amor está ficando velho.
Como a velhice das ruas da infância
que me viram jogar amarelinha.
Mas quando as vejo, passados os anos,
aquelas ruas,
eu as vejo as mesmas,
com as mesmas árvores e os mesmos cães.
Aquelas ruas - ah! nunca envelhecem,
só porque são um tempo de feliz.
Está encanecendo, nosso amor.
Com a velhice dos olhos maduros,
com encontros que não nos viram juntos,
e com as verdades vivas que sabemos.
Ah, nosso amor jamais acontecido!
Esta certeza de que nunca envelhece
o que não teve hora nem espaço.
Se nunca teve início não tem fim.
É assim nosso amor que envelhece
em plena eternidade do não-feito.
Mas continua a brincar de esconde-esconde
com nós dois.
quarta-feira, 10 de junho de 2009
ADELICE SOUZA NO TCA
terça-feira, 9 de junho de 2009
PRÊMIO CAMÕES 2009: ARMÉNIO VIEIRA

Arménio Vieira
Com pauzinhos de fósforo
podes construir um poema.
Mas atenção: o uso da cola
estragaria o teu poema.
Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!
Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.
Quando estiver concluído,
não assines, o poema não é teu.
[Texto retirados de uma antologia, ainda inédita, organizada por José Luiz Tavares]. Encontrei em Bibliotecário de Babel (entrada pelos meus favoritos).
O Prêmio Camões 2009 teve os seguintes jurados:
Júri brasileiro: Marco Lucchesi e Ruy Espinheira Filho
Júri português: José Seabra Pereira e Helena Buescu
Júri de outros países: Corsino Antônio Fortes e Luiz Carlos Patraquim
segunda-feira, 8 de junho de 2009
POEMAS-DIÁLOGO

RETRATO À SUA MANEIRA
(João Cabral de Melo Neto)
Magro entre pedras
Calcárias possível
Pergaminho para
A anotação gráfica
O grafito Grave
Nariz poema o
Fêmur fraterno
Radiografável a
Olho nu Árido
Como o deserto
E além Tu
Irmão totem aedo
Exato e provável
No friso do tempo
Adiante Ave
Camarada diamante!
RESPOSTA A VINÍCIUS DE MORAES
Camarada diamante!
Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz de vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.
domingo, 7 de junho de 2009
O POETA CASSAS: CONVERSA DE DOMINGO
Voltando aos versos que nos arrebatam. Coincidimos em: “Este anseio infinito e vão/ de possuir o que me possui”, que estão no poema “Resposta a Vinícius”; “Na vida inteira que podia ter sido e que não foi”, em “Pneumotórax” e
Seguindo pelos versos inesquecíveis, reproduzo, de “Leilão de poeta”, do próprio Cassas: “Quem doa amor de ouro ou prata/ àquele que à dor o coração ata/ e de amor morre mas não mata?”
Ah, Cassas, como é bom conversar com você. Esqueci de acrescentar aquele verso de T.S.Eliot que vivo me dizendo e que pertence ao longo poema “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”: “Às colherinhas de café andei medindo a minha vida”, na tradução de João Almeida Flor para a edição da Assírio e Alvim.
Nossa sintonia espiritual, como você diz, me enche de alegria. Aguardo sua poesia reunida, sabendo desde logo (o que muito me honra) que estarei lá, na sua fortuna crítica, através de meus textos, reconhecendo a sua arte.
sexta-feira, 5 de junho de 2009
LEMBRANDO DAS SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOIRA

Gerana Damulakis
Certa vez escrevi aqui sobre o primeiro parágrafo de Anna Kariênina, de Tolstói, por conta de ser ele o mais interessante começo de romance: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, na tradução de Rubens Figueiredo para a edição da Cosac Naify.
Sempre trocando ideias com Aramis e sempre constatando e confirmando seu imenso cabedal literário, ele (que também tem muita leitura e muita memória) desfilou o início do conto de Eça de Queiroz, “Singularidades de uma rapariga loira” (loira com "i", mais bonito do que loura), que eu simplesmente adoro:
“Começou por me dizer que o seu caso era simples – e que se chamava Macário...”
Iniciar um texto de ficção - conto, novela ou romance - é equivalente a elaborar um convite, exige que o desejo de persuadir o leitor seja posto em ação, o que, de saída, exige também conhecimento, ou seja, leitura. Para transformar o talento em arte no papel é preciso ler muito. Estou convencida de que todo escritor deve ser, antes de mais nada, um grande leitor. É apenas a minha opinião. Que seja.
quinta-feira, 4 de junho de 2009
CANTIGA DE CRER

Creio em deuses sutis
que podem bem ser um
e ser mais, que podem
ser apenas a luz, ou essa
falta de, essa não. Creio
em deuses senis, em
outros pueris, colibris.
Creio na salvação, na
minha, e na de qualquer
irmão. Creio no meu
amor, e ainda no de
seja quem for. Creio
quase sem crer, como
se fosse assim por
prazer.
Nilson Pedro é o poeta do blog Blag http://nilsonpedro.wordpress.com/
Foto: "Mãos em prece!", por francileide, retirada do Flickr.
quarta-feira, 3 de junho de 2009
MINHA AFILHADA LITERÁRIA: LÚCIA SANTÓRI-CARNEIRO
terça-feira, 2 de junho de 2009
À ESPERA DO TORNADO, DE GLÁUCIA LEMOS
de uma mulher que tinha um homem que a amava
e que um tornado levou.
Escreverei a história de quanto ela esperou.
Contarei como o vento arranhou a face de quem o viu
levando árvores, cães e telhados.
E contarei o caso de, dos homens, só levar os apaixonados.
O vazio no peito dos que não amaram nem amariam
Não compensava o peso dos seus membros estéreis e apagados.
Esses foram poupados.
Poupados ao olho voraz do vazio em que o homem que amava
aquela mulher lhe gritou
Espera por mim, minha amada,
Espera por mim. Um dia voltarei.
E contarei como as mulheres abandonadas
Seguiram, solitárias, pelas estradas, à procura.
E contarei, ó como contarei, enquanto os meus olhos conseguirem disfarçar as lágrimas,
como o rasto dos seus olhos se espalhava pelo chão,
pelo duro bordo dos trilhos, pelo vermelho dos frutos do café,
pelas ondas alvas do algodão
e pelo verde das folhas com que o milho se vestia.
Pudesse eu, e contaria, ó se contaria,
Como os olhos verdes das que tinham olhos verdes
se debotou enquanto o matagal oculto deles se tingia.
Soubesse eu como fazê-lo, e contaria
Como se tornaram mais negras as noites,
Alimentando a sua escuridão com o negro dos olhos,
Das que tinham olhos negros e os viram tornar cinza,
apagando o seu negro brilho na ansiedade que perscruta as sombras.
Todas seguiram os caminhos da esperança desolada.
Todas, menos a mulher de quem contarei
As horas gastas nos trabalhos em que persistia,
Dia após dia, até ao momento em que, recolhida,
Junto à janela,
Novamente ouvia o vento em lamento melancólico e pirracento
Que quezilento, em lento protesto lhe repetia
Espera por mim, minha amada,
Espera por mim.
E, após o pedido, a promessa
Um dia voltarei.
E a mulher esperava, sob a areia prateada da noite,
sob a curva abóbada dos nocturnos violões
Tornados próximos pelo silencioso hálito de Deus, à noite,
Assim esperava a mulher de quem contarei
A espera, a esperança de que na dança dos elementos
Também houvesse o passo da restituição.
De quem contarei a bênção de acreditar
Que não há vento nem maldição que não devolva
O que seria de justiça não levar.
Contaria, ó como contaria,
Como trazia amarradas as dores do seu segredo sagrado.
Contaria, pudesse eu entender o que mais dizem os galhos das amendoeiras
Varados pelo vento,
No seu lamento ao ledo e triste alento
Da mulher que tinha um homem que a amava. E que, um dia, o vento levou.
E por quem ela esperaria,
Depois de esquecidos os sorrisos com que amarrara a dor aos dias,
Presa ao milagre adiado com que o vento, rendido, o devolveria.
Conto-poema de Gláucia Lemos publicado, inédito, na "Antologia Panorâmica do Conto Baiano - Século XX", com organização e introdução de Gerana Damulakis. Alterado, em termos formais apenas, por mim, em alguns pormenores, com a prévia autorização da autora.
Espero que não tenha deturpado muito a intenção original de um conto que já li vezes sem conta e que conto entre os mais belos poemas de amor que já li. A Gláucia, generosa como sempre, disse que, com este poema, estabelecíamos um "condomínio". Confesso que muito me orgulha o beneplácito de tal vizinha, a quem só não ofereço este poema, porque já é dela. MA
segunda-feira, 1 de junho de 2009
"A MORTE ESPACIAL QUE ME ILUMINA"
Mário Faustino
Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nasceram mudas
E o tempo na verdade tem domínio
sobre homens nus ao sul das luas curvas.
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de um cristo preso,
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espacial que me ilumina.
Sinto que o mês presente me assassina
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas
De apóstolos marujos que me arrastam
Ao longo da corrente onde blásfemas
Gaivotas provam peixes de milagre.
Sinto que o mês presente me assassina,
Há luto nas rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia em cada hora
(Na libra escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de imprimir a dura face
À força de suor, de sangue e chaga.
Sinto que o mês presente me assassina,
Os derradeiros astros nascem tortos
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre o morto que enterra os próprios mortos.
O tempo na verdade tem domínio
Amen, amen vos digo, tem domínio
E ri do que desfere verbos, dardos
De falso eterno que retornam para
Assassinar-nos num mês assassino.