sexta-feira, 30 de novembro de 2007

VESTIDO BRANCO


Carlos Vilarinho

Estava embaixo da mesa catando pimenta. Esparramou toda no chão, dizem que é um perigo. Contudo acho que naquele dia desmitifiquei a ação da pimenta, pelo menos sobre mim. Lá embaixo da mesa, de quatro, ouvi os passos. Não eram passos de salto alto, mas eram de mulher. Dizem também que mulher e pimenta se completam. Continuei a catá-las. A pimenta me tomou por inteiro, que entrei em transe picante, ouvi o tilintar dos talheres sendo lavados por minha sobrinha. Ouvi também a louça, presente de minha avó estilhaçar-se. Minha sobrinha achava que eu não sabia, mas era facilmente perceptível o estado de letargia que ficava quando fumava maconha.
— Ai, Amelinha, acho que preciso de um amante.
Voltei do transe imediatamente. Era a voz de Harmonia. Desde que a conheci, o nome me instigava a conversar com ela. Convertia-se num imenso vai-e-vem. Harmonia era uma mulher sexy, tinha trinta e um anos. Madura o suficiente para ser verdadeiramente mulher, diria Balzac. Conversávamos durante horas, sentia um comichão por dentro quando falávamos. Que mesmo do alto dos meus quarenta e quatro anos não sabia discernir com precisão o que aquilo representava. Harmonia uma vez fez queixas coléricas a respeito do marido dela. Segundo me disse ele a qualificou de uma pífia dona de casa.
— Que absurdo!!
Disse pensando em raptá-la.
— E ele não faz nada, Vadinho. Mal sabe fritar um ovo.
Isso tem tempo. Mas a mágoa ainda passeia dentro dela. Pois já me repetiu duas vezes.
Minha sobrinha Amelinha guardava os domingos na minha casa. Eu sabia o que ela fazia escondida. E ela me olhava todas as vezes que eu ia ao sótão, demorava horas e voltava aéreo. Longe dessa desconfiança interativa, tratava-se de uma excelente menina. Conversávamos sobre filosofia e linguagem. Amelinha sempre trazia uma novidade da faculdade que estudava. Comecei sem entender a amizade de Harmonia e Amelinha, dada a diferença de idade. Depois não foi difícil perceber que Harmonia precisava de alguém para conversar. Na verdade desconfiei que ela ia conversar era comigo.
Então de quatro, como estava catando pimentas, ouvi uma boa parte do desejo obscuro de Harmonia embaixo da mesa.
— Ai, Amelinha, não agüento mais aquele cara.
Vi então uma reunião de pimentas vermelhas, caíram todas formando imagem estelar. Aí vi também os pés de Harmonia. Estavam enfiados em uma sandália cheia de miçangas. Uma sandália marrom, toda enfeitada. Eram lindos os pés de Harmonia, tinha as unhas feitas e sem cutículas. Lembrei-me então que Harmonia só andava de salto alto. Me estiquei um pouco mais para a frente e vi a ponta do vestido rodado de Harmonia. Era todo branco. Vi também o começo das pernas, uma canela compacta e bem morena.
— Tio, já catou?
— Quem é?
—Sou eu, Harmonia.
Harmonia abriu um largo sorriso e um brilho piscou em seus olhos. Me ajudou a levantar e comentou até que eu estava mais magro. Fiquei contente e lembrei do chá de ervas emagrecedoras que Amelinha me presenteara. Eu tomava o chá em jejum logo quando acordava. Estava desconfiado que não estava adiantando nada quanto ao emagrecimento, até porque quando dava umas dez, dez e meia, abria a primeira cerveja depois de ter entornado uma folha podre, erva-doce. Comia moela e coraçãozinho de frango. Harmonia comentou ratificando meu peso. Olhei então para ela toda, vestida de branco e de sandálias de miçangas. Estava linda assim e me repreendia envergonhada. Então eu tirava os olhos de mira e deixava os de esconso.
— Não sabia que estava, Vadinho.
Ri satisfeito com o semblante de Harmonia e falei sobre as pimentas.
— Há uma lenda que pimenta no chão é sorte no amor. Dizem que um largo sorriso se abrirá e todo o universo, a partir do ardor da pimenta, se unirá em conjunto com dois casais próximos e que até então não sabem que se amam.
Falei com a cara mais deslavada e num blefe gigantesco. Lembrando instantaneamente de um autor romano, lá pelos séculos do império, que dizia o seguinte: “Qual homem experiente que não combina beijos e palavras de amor?”. Quase que repito a frase subitamente. Parei no meio da oração e olhei Harmonia rindo para mim, esquecendo do conjugue estorvo.
— O quê?
— Nada...
Disse-lhe que tinha escrito um novo poema. E ela mais do que depressa se ajeitou na minha mesa esperando para ouvir.
— Fiz pensando em você.
Blefei de novo, acreditando eu mesmo no meu blefe. Amelinha riu e como se estivesse tudo combinado entre elas. Saiu. Eu notei tudo. Lembrei das sandálias de miçangas e das canelas. Pedi para que pegasse água e quando se voltou para ir à cozinha, fitei em zoom ou raios-X se Harmonia usava algo por baixo do vestido. Era uma calcinha branca bem comportada. Mesmo assim suscitou meu desejo. E agora propositalmente com os olhos de mira, pus as vistas no decote. Harmonia encabulou-se e tentou esconder o volume, mas como? Mesmo encabulada Harmonia sorria e exalava uma suavidade plena que só as grandes mulheres são donas. E eu disse.
— Você tem duas qualidades raríssimas em uma pessoa, sobretudo porque és mulher.
Ela continuou encabulada, mas agora mais curiosa.
— Vou lhe dizer...
Harmonia se desnudou. Senti languidez em seu semblante e um orgasmo singelo de carência. Antes de dizer recordei as falas que tivéramos entre nós. E ali naquela hora percebi que ela só tivera mesmo vontade de ter orgasmo.
— Você é dona de uma autenticidade ímpar e o que é mais importante, talvez em conseqüência disso a sua sabedoria seja tão latente...
Queria continuar a falar algo mais, mas não tinha o que falar. Harmonia então me beijou suavemente passando a mão com cheiro de creme sob a minha face.
— ... e também é doce e suave...
Harmonia colocou o rosto bem em frente ao meu.
— ...e também é...
Sempre andava com metáforas e comparações, achava importante fazer link de uma coisa à outra.
— ...e também é morena como jabuticaba...
Ridículo, me senti. Mas foi tão simples, aliás, simplório, que singelamente Harmonia quedou-se aos meus encantos metafóricos. Me beijou, aí eu disse.
— Que homem experiente não combina beijos com palavras de amor?

25/11/ 2007
Carlos Vilarinho é autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (SCT, FUNCEB, 2005)

Um comentário:

Anônimo disse...

Vou deixar o meu comentário, atrasadíssimo, mas NECESSÁRIO, a mim pelo menos. Fiquei toda prosa com esse conto, e também surpresa. Como você vê coisas, hein? Não havia me dado conta. Insensibilidade minha diante da sua sensibilidade tão vivaz.

Beijos!!!

Harmonia