Aqui não tenho ninguém comigo. Tenho a minha alegria particular. No meio da tarde apanho um chapéu e saio ao sol. Os gravilhões do jardim trincam sob meus pés, venço o jardim onde guardo os meus silêncios e venero as alamandas, as espirradeiras e as buganvílias, pela festa que me oferecem de graça. Caminho sobre areia da rua sem me incomodar com a poeira fina do verão.
A maré que subiu sem justificativa, inaugurando um dezembro qual se fora março, atravessou o cais e, se arrastando até a rua, quase interrompe o meu percurso. Passa límpida e rasa a água franzida, tangida pelo vento, e eu entro por ela, sem descalçar as sandálias, divertindo-me com essa rebeldia infantil extemporânea. Caminho ao ritmo do chap chap que meus passos orquestram, rompendo a corrente, leve, com a água me banhando as panturrilhas. É tão simples esse prazer simplório, mas agora é como se o tivesse pela primeira vez, e descubro o conforto da água fria na pele dos meus pés, que quase afundam na lama fina e clara e limpa da areia inundada. Arde o sol nos braços e no decote. Parece derreter o filtro que me protege. Fico cheirando a um coquetel de bronzeador e maresia, então sorrio de mim. Ando inclinada a me gratificar com esses pequenos grãos de satisfação. Eu já sabia que, às vezes, os grãos são mais saborosos que as fatias generosas. Por isso tento racionalizar o meu momento para possuí-lo inteiro. Raros são os que possuímos inteiros.
Minha filha está em um curso na Espanha, minha irmã em uma excursão com amigas, eu acabo de desistir de uma viagem à Argélia (alô Camus, sem por isso deixar de amá-lo fielmente como aprendi)). Estou plena e tranqüila nesse esconderijo do mundo, uma ponta insignificante do continente, tentativa de voluntário exílio, entre nativos de corpos tisnados e balaios de crustáceos, vivendo solidão sem tédio e sem saudade, a mais que perfeita solidão. E isto também se chama Liberdade. Esta solidão — a que quero reter, cada vez que atravesso a baía retornando, e me enfio indefesa na guerrilha urbana, na qual inevitáveis punhais despertam nas gentes o primitivo impulso de fugir aos predadores, nossos próprios semelhantes.
Aqui descubro o fascínio da fotografia, nas manhãs em que me aventuro pelos troncos cinzentos que a natureza retorce com arte somente sua; pelos arranjos eventuais dos barcos encalhados na maré-baixa, que nem sabem da harmonia e do ritmo que exibem em suas formas; no contraste dos galhos coloridos de hibiscos debruçados por cima dos muros em ruínas limosas. Descubro esse mundo e me apaixono, com a paixão guardada em pequeninos rolos de celulóide. É uma alegria nova, uma paixão solitária que se realiza em si mesma quase egoísta, refletindo para dentro de mim a criação que de mim foi descoberta, no encontro dos detalhes.
Retorno da padaria com os braços cheirando a pão quente. Pão de milho que ainda se faz com gosto de milho. Refaço o percurso da volta, com direito a novo mergulho de pés calçados, no transbordo da maré.
Há duas redes de madras esperando na varanda com a paciência monacal que só as redes nas varandas parecem ter. Chego-me, a concha me abraça. Capitu aproxima-se abanando a cauda e lambendo o sal dos meus pés que estão sobrando pela borda rendada, enquanto aguardo a revoada de periquitos que, a cada fim de tarde, atravessa o espaço no rumo do poente espalhando pelo ar uma longa harmonia barroca em vários diapasões.
Esvoaça uma garriça no beiral da casa, onde adivinho um ninho. Um ninho! É um berço de palhas, uma manjedoura... Natal é quase amanhã.
Fecho os olhos. Lembro-me de que ainda é tempo de acreditar. Acho que acredito em quê... Na tranqüilidade que pode ser. Ainda pode ser. Na alegria que é bonita e, algumas vezes, está guardada em rolos de celulóide. Sobretudo acredito na solidão perfeita. Sem tédio e sem saudade.
Gláucia Lemos é autora de mais de três dezenas de títulos. Entre os premiados estão O riso da raposa, A metade da maçã e As chamas da memória.
3 comentários:
A solidão perfeita foi tocante. Prabéns pelos prêmios. Pereira
Muito legal, Gláucia. Que conto narrado e descrito com suntuosidade e maravilha de quem sabe escrever. Legal, legal, legal...
Bem, não senti o tédio, realmente, mas senti saudade da solidão necessária. E um pouco de tristeza, ainda assim; pensando bem, é a descrição sensibilíssima de um bem estar angustiante. Glaucia conseguiu o mais importante: descrever um estado de alma, que só quem é mestre consegue descrever tão bem.
Flamarion
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